segunda-feira, 23 de abril de 2012

Elaboração do Plano de Negócio: Plano Financeiro

Investimento total

Nessa etapa, você irá determinar o total de recursos a ser investido para que a empresa comece a funcionar. O investimento total é formado pelos:
  • Investimentos fixos.
  • Capital de Giro.
  • Investimentos pré-operacionais.

Estimativa dos investimentos fixos

O investimento fixo corresponde a todos os bens que você deve comprar para que seu negócio possa funcionar de maneira apropriada.
Relacione os equipamentos, máquinas, móveis, utensílios, ferramentas e veículos a serem adquiridos, a quantidade necessária, o valor de cada um e o total a ser desembolsado.

  • Fique de olho

- Evite imobilizações desnecessárias. Quando possível, alugue ao invés de construir ou
comprar;
- Considere a possibilidade de terceirizar algumas atividades, isso reduzirá a necessidade
de compra de máquinas e equipamentos;
- Pesquise e avalie as diversas opções de aquisição (leilões, classificados, lojas de usados).
Cuidado com o estado de conservação e a garantia do que irá comprar.

Capital de giro

O capital de giro é o montante de recursos necessário para o funcionamento normal da empresa, compreendendo a compra de matérias-primas ou mercadorias, financiamento das vendas e o pagamento das despesas. Ao estimar o capital de giro para o começo das atividades da empresa, você deverá apurar o estoque inicial e o caixa mínimo necessário.

A – Estimativa do estoque inicial
O estoque inicial é composto pelos materiais (matéria-prima, embalagens, etc.) indispensáveis à fabricação de seus produtos ou pelas mercadorias que serão revendidas.
Identifique quais materiais ou mercadorias devem ser comprados, as quantidades, seu preço unitário e o total a ser gasto. Para isso, leve em consideração a sua capacidade de produção, o tamanho do mercado e o seu potencial de vendas.

  • Fique de olho

- Faça uma ampla pesquisa junto a seus fornecedores. Pechinche, negociando bons preços
e condições de pagamento, assim você reduz despesas, oferecendo preços competitivos e
aumentando as receitas e o lucro da empresa.
- Tenha um controle apurado dos seus estoques, assim você saberá qual o momento certo
para adquirir novos produtos.
- Para a formação dos estoques, dê preferência aos itens de maior giro, ou seja, aqueles
que têm maior saída e aceitação. Estoque parado por muito tempo, na maior parte das
vezes, representa prejuízo.

B – Caixa Mínimo
É o capital de giro próprio necessário para movimentar seu negócio. Representa o valor em
dinheiro que a empresa precisa ter disponível para cobrir os custos até que as contas a receber de clientes entrem no caixa. Corresponde a uma reserva inicial de caixa.
Para calcular a necessidade líquida de capital de giro é preciso conhecer os prazos médios
de vendas, compras e estocagem. Essas informações podem ser pesquisadas junto a concorrentes e fornecedores e serão utilizadas na apuração do caixa mínimo, isso porque nas vendas financiamos os clientes por meio dos prazos concedidos e somos financiados pelos fornecedores por meio dos prazos para pagamento negociados.
Acompanhe o exemplo a seguir e aprenda como calcular a necessidade de capital de giro próprio e o caixa mínimo. 

1º Passo: Contas a receber – Cálculo do prazo médio de vendas
É a média do prazo de financiamento a clientes, ou seja, do prazo concedido aos clientes para que estes efetuem o pagamento do que compraram.
Prazo médio de vendas (%) x Número de dias Média Ponderada em dias
a vista 20% x 0 0
a prazo (1) 45% x 30 13,5
a prazo (2) 30% x 60 18
a prazo (3) 5% x 90 4,5
a prazo (4) - x - -
Prazo médio total 36 dias
No exemplo acima, para a política de vendas da empresa, estimou-se que:
- 20% das vendas serão à vista;
- 45% das vendas com 30 dias;
- 30% das vendas com 60 dias e
- 5% das vendas com 90 dias.
Para calcularmos a média ponderada dos prazos de vendas, basta multiplicarmos o percentual das vendas pelo número de dias que serão concedidos aos clientes. O resultado acima indica que em média a empresa leva 36 dias para receber suas vendas a prazo.

2º Passo: Fornecedores – Cálculo do prazo médio de compras
Segue a mesma lógica do item anterior, porém devemos calcular o prazo médio dado pelos fornecedores para o pagamento dos produtos e serviços adquiridos.
Prazo médio de compras (%) x Número de dias Média Ponderada
a vista 50% x 0 0
a prazo (1) 50% x 30 15
a prazo (2) - x - -
a prazo (3) - x - -
a prazo (4) - x - -
Prazo médio total 15 dias
Partindo da premissa que 50% das compras são realizadas à vista e 50% em 30 dias, novamente devemos ponderar os prazos, multiplicando o percentual do volume de compras pelos prazos médios concedidos pelos diversos fornecedores. Nessa situação a empresa tem aproximadamente
15 dias para o pagamento de seus débitos.

3º Passo: Estoques – Cálculo da necessidade média de estoques
É o prazo médio de PERMANÊNCIA da matéria prima ou das mercadorias nos estoques da empresa. Abrange desde a data em que é feito o pedido ao fornecedor até o momento em que os produtos são vendidos. Lembre-se de que um prazo maior de permanência das mercadorias em estoque irá gerar uma necessidade maior de capital de giro.
Necessidade média de estoques - Número de dias = 5 dias
Dando continuidade ao nosso exemplo, foi estimado um prazo médio de permanência em
estoque de 5 dias.

4º Passo: Cálculo da necessidade líquida de capital de giro em dias
É a diferença entre os recursos da empresa que se encontram fora do seu caixa (contas a receber + estoques) e os recursos de terceiros no caixa da empresa (fornecedores). Se positivo, o resultado indica quantos dias em que o caixa ficará descoberto, se negativo aponta que os recursos financeiros das vendas entram no caixa antes que sejam feitos os pagamentos.
Recursos da empresa fora do seu caixa Número de dias
1. Contas a Receber – prazo médio de vendas 36 dias
2. Estoques – necessidade média de estoques 5 dias
Subtotal 1 (item 1 + 2) 41 dias
Recursos de terceiros no caixa da empresa
3. Fornecedores – prazo médio de compras 15 dias Subtotal 2 15 dias
Necessidade Líquida de Capital de Giro em dias (Subtotal 1 – Subtotal 2) 26 dias
Somando o prazo médio de vendas (contas a receber) e o prazo médio de estocagem (estoques) e diminuindo desse resultado o prazo médio de compras (fornecedores) encontraremos a necessidade líquida de capital de giro em dias. Em nosso exemplo, o prazo de 26 dias significa que a empresa irá necessitar de caixa nesse período para cobrir seus gastos e financiar clientes.

B - Caixa Mínimo
Representa a reserva em dinheiro necessária para que a empresa financie suas operações iniciais. É obtida ao multiplicarmos a necessidade líquida de capital de giro em dias pelo custo total diário da empresa.
1. Custo fixo mensal (Quadro 5.11 – Estimativa dos Custos Fixos Operacionais Mensais)
R$ 4.400,00
2. Custo variável mensal (Subtotal 2 do quadro 5.12 – Demonstrativo de Resultados)
R$ 9.000,00
3. Custo total da empresa (item 1 + 2) R$ 13.400,00
4. Custo total diário (item 3 ÷ 30 dias) R$ 446,66
5. Necessidade Líquida de Capital de Giro em dias (vide resultado do quadro anterior)
26 dias
Total de B - Caixa Mínimo (item 4 x 5) R$ 11.613,16

A partir dos dados fornecidos acima o caixa mínimo necessário para a cobertura dos custos
da empresa para um período de 26 dias é de R$ 11.613,16.

  • Fique de olho

- O custo total corresponde ao somatório dos custos fixos e variáveis. Mais adiante você irá aprender a calcular esses custos. Essas informações poderão ser obtidas no demonstrativo de resultados que é elaborado ao final do plano financeiro, por isso prossiga na leitura do manual e quando estiver com tais informações em mãos retorne ao cálculo do caixa mínimo.
- Você deve ter notado, que quanto maior sua necessidade líquida de capital de giro em dias, maior é o caixa mínimo. Portanto, procure negociar bem os prazos com clientes e fornecedores e não mantenha mercadorias e matérias-primas paradas por muito tempo em estoque.

Investimentos pré-operacionais
Compreendem os gastos realizados antes do início das atividades da empresa, isto é, antes
que ela abra as portas e comece a vender. São exemplos de investimentos pré-operacionais:
despesas com reforma (pintura, instalação elétrica, troca de piso, etc.) ou mesmo as taxas de registro da empresa.

Fonte: Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae. Publicação elaborada pelo Sebrae/MG e atualizada e reeditada pelo Sebrae/NA.  2009. Disponível em: www.sebrae.com.br.  

domingo, 22 de abril de 2012

O mito da modernidade

Ruth Guimarães 

De acordo com a voz do povo, progresso é: emprego para todos, não importa qual, fábricas, não importa de quê, e acesso indiscriminado a bens de serviços e outros. Quantos mais puderem comprar geladeiras, ventiladores, celulares, tapetes, fornos microondas, mais estaremos progredindo (Não se fala em livros). Progresso é nascerem 80 crianças, 10 de parto normal e 70 de cesariana. São os apartamentos, os tri-empregos. A correria. E os etcs. todos. 

Costura, horta, o fundo de quintal, a couve e o mentruz, construção artesanal, galinheiros, bancos e cadeiras feitos em casa, isto já era. 

Sugiro outro conceito de modernidade: 
Modernidade é realmente o treinamento do consumidor para o desfrute do inútil. De onde decorrem n males: 
O hábito de velocidades violentas; 
O estado gerador de padrões de produção; 
A política militarizada, ou o estado policial. 

A verdadeira pobreza consta da ausência de esclarecimentos e da falta de poder profissional. Daí vem a não criatividade. As leis ajudam a abafar no nascedouro as disposições profissionais. 

Ninguém combate a verdadeira pobreza, procura-se, isto sim, disfarçá-la, enganá-la, aliciá-la, com cigarros, modas vistosas, com água e luz elétrica nas favelas. O pobre é mantido, diz-se que está assistido. E como vai se alienando, está justificado por sua inércia e comodismo. O que quer é sossego. É viver em paz. PAZ com todas as letras maiúsculas. E que Paz? A vida é uma guerra. O próprio Cristo, considerado pacífico, e que se dizia manso e humilde de coração, declarou abertamente que não veio trazer a Paz. “Vim trazer a Espada.” 

É dessa guerra que eu falo. A do Cristo. A de Sócrates. A de Oswaldo Cruz. 

O que é necessário combater? Em primeiríssimo lugar, vamos acabar com a insatisfação do pobre em sua pobreza patrocinada, para que, não se sentindo bem, procure sair da lama onde está. 

Sem patrocínio, sem esmolas, sem humilhação. Sem pular de um beco sem saída para cair em outro. O povo está pronto a endossar a pena de morte. Virá a pena de morte. Para quem? Quem sabe sequer os nomes dos responsáveis pelos crimes contra a Previdência, e outros? Não chega o que já nos fazem: - a morte cavilosa e clandestina, nos fundos das delegacias. Agora possivelmente teremos a pena de morte, legalmente. Com efeito. 

Outro mito a combater é a idéia de que nos tornamos importantíssimos com a modernidade e podemos atingir qualquer meta, comprando bens e serviços. Somente bens, e serviços, veja bem. Nada que se possa chamar alma e nada que possa chamar de dignidade, bens que não se compram, mas que temos de aprender a conquistar. Em nenhum dos modelos econômicos, ou não, conseguimos vislumbrar valores não mercantilizáveis. 

As mercadorias podem substituir até certo ponto o que a pessoa criar por si mesma. Além disso, a moda do uso de certo produto se deteriora facilmente. A quantidade de bens entregue diminui o valor desses bens. É tudo igual, o que repugna à criatura humana, mesmo à de cérebro lavado. 

Antes de sermos clientes, somos pessoas. 

E como estamos melhorando a pessoa? Onde a saúde? Onde a Educação?

Pensamentos cínicos

Ruth Guimarães 

Aprendemos muito com a Filosofia de vida solene, séria, com altas lições de moral e também com as parábolas que são recitadas sem sorrir. Com estes pensamentos das criaturas desencantadas da vida e dos homens, aprenderemos também? 

Ninguém se lembraria do Bom Samaritano, se ele tivesse apenas boas intenções. Mas ele tinha dinheiro também. 
Margareth Thatcher – Primeira Ministra britânica 

Eu chorava por não ter sapatos novos. E encontrei alguém que não tinha pés. 
Dale Carnegie – Autor da “Arte de fazer amigos”. 

Escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca as idéias. 
Pablo Neruda - poeta chileno (1904-1973) 

Pelas estatísticas, o lugar mais perigoso do mundo é a cama, pois ali é o lugar onde mais se morre. 
Daina Ruttul - economista 

A coisa mais prazerosa da vida é fazermos o que as pessoas dizem que não podemos fazer. 
Walter Bagehot – economista inglês 

Exemplo de progresso são os computadores: foram inventados para resolver os problemas que a gente não tinha. 
Woody Allen – ator e cineasta norte-americano 

Há sempre quem esteja reclamando porque as rosas não têm espinhos. Eu me sinto grato porque os espinhos não têm rosas. 
Crítico e literato francês, Alphonse Karr (1808-1890) 

Querer convencer os governadores da necessidade de cortar verbas é a mesma coisa que tentar explicar o significado do natal a um peru. 
Governador Ciro Gomes, do Ceará 

Depois das guerras, os homens se preparam para a paz, construindo tanques, aviões, foguetes, submarinos, e bombas atômicas. 
Leon Eliachar – humorista brasileiro 

Política é a arte de conciliar os interesses próprios, fingindo conciliar os alheios. 
Menotti Del Picchia – poeta brasileiro (1892-1988) 

Há três caminhos para cair em desgraça. O mais rápido é o jogo, o mais agradável as mulheres e o mais seguro é consultar um economista. 
Roberto de Campos – diplomata mato-grossense 

Pena que todas as pessoas que sabem como governar bem o país estejam ocupadas, dirigindo táxis ou cortando cabelos. 
Anônimo 

Papai Noel daria um excelente político, pois ele promete sempre muito mais do que o que oferece. 
Jô Soares – apresentador de TV 

Deveríamos poder viver duas vezes. A primeira para cometer todos os erros. A segunda para lucrar com eles. 
D. H. Lawrence – escritor inglês (1885-1930) 

Deus inventou a primeira máquina de falar ao inventar a mulher. Eu inventei a segunda mais aperfeiçoada, porque a minha eu posso parar quando quiser. 
Thomas Edison – célebre físico norte-americano e inventor 

Falência é um procedimento legal que permite pôr dinheiro no bolso das calças e entregar o paletó aos credores. 
Samuel Goldwyn Mayer – industrial da cinematografia americana 

Da ressaca

Ruth Guimarães 

Em casa de enforcado, não falar em corda, lá diz sabiamente o ditado popular. Pois não falemos de ressaca neste momento de grandes festejos, mas da sua cura. 

O jornalista Henry Mc Lemore regressou de uma viagem ao Japão, com um processo extraordinário de cura da ressaca. 

“Quando lhe doer e latejar a cabeça, em conseqüência de excessos de bebida, dispa-se completamente, fique de pé, de pernas abertas sobre a terra nua, numa posição bem ereta, os punhos às costas, presos firmemente pelos dedos. Em seguida peça a uma pessoa que lhe despeje sobre a cabeça quatro ou cinco litros de água gelada. Isso completa o círculo celestial entre o céu e a terra, através do homem, expulsando-lhe do corpo o demônio da ressaca.” 

Suponhamos alguém resida num apartamento, no Rio de Janeiro ou São Paulo, centro, está curtindo uma dor de cabeça que o deixa louco, adquirida nas festas, e então resolve sair para tentar o heróico remédio japonês. Poderá escolher um canteiro florido, num dos parques da cidade, únicos lugares onde ainda poderá pôr pé em terra nua. 

O duro vai ser depois convencer o policial de serviço, a respeito do círculo celestial. 

Nos Estados Unidos os beberrões aconselham uísque com água gelada, para beber, como quem diz: mordida de cão se cura com o pêlo do próprio cão. 

Na mesma linha de pêlo de cão, temos o testemunho de W.C. Fields, o antigo ator cinematográfico, que preferia para tal cura cerveja preta ou branca, embora muitos dos seus conterrâneos prefiram gim e champanha em partes iguais. 

Os magiares, grandes cavaleiros e amantes de bebidas fortes, recomendam uma mistura de tabaco e esterco de andorinha, para beber. Os assírios de antanho usavam um pó de bicos de andorinha, fervido em água, juntamente com ervas aromáticas. Catão recomendava uma refeição sólida, constante de couves cozidas, com amêndoas amargas, amassadas, cruas. Plínio registrou para a ressaca um mingau feito com ovos de coruja, pulmões assados de javali, guisado sobre o qual se esparramaria pó de pedra-pomes. Na Riviera Francesa usa-se suco de limão, com absinto e xerez. 

No Brasil usa-se tudo isto: 

Gemada de cerveja gelada. Cerveja preta com champanha, mistura chamada Veludo Negro. Suco de tomate gelado. Chá de cravo da Índia. Suco de couve com pinga. Água de azeitona de lata. Comer batata cozida, fria. Chucrute frio. E por aí vai. 

Há outros remédios, digamos emocionais. Por exemplo: 

Mergulhar num banho de água gelada, que, com o susto, acaba a sonolência e o turvamento. Alguns recomendam apenas sentar na água gelada. Levar um susto muito grande. Saber uma notícia ou calamitosa ou como comunicado de morte, ou grandemente jubilosa, como ter tirado um prêmio de milhões na loteria. Ou morte da sogra. 

É muito usado um remédio preventivo: beber um litro inteirinho de leite gelado, antes de beber. 

Entretanto, seguro mesmo conhece-se um só remédio. 

NÃO BEBER.

Anúncios desclassificados e epitáfios


Ruth Guimarães
Foi numa dessas noites paulistanas, horripilantes, de pouca luz e muita neblina. O barzinho lá pras bandas de Santana, longe do metrô, chamava-se “Último Gole”, nome nada promissor para viajante que procurava um pouco de calor, de consolo para tanto desconforto.  Era lá que estava num cartaz, na parede, esta delícia:
Se você bebe para esquecer,
por favor, pague antes!
É nos bares – esse clube dos pobres – que se encontram algumas jóias.  Um deles, na zona suburbana, ostenta um aviso com muita suficiência:
“Serve-se com o maior prestígio.”
*
Havia na minha terra uma funerária dirigida por pai e filho, sendo que o mais moço, além de  ajudar em todos os trabalhos do ramo, ainda abria os dizeres nas lápides de mármore e outras.  Rapaz sem grande imaginação, e porque não se tratava de tópicos do muito imaginar, abria todos os epitáfios assim: Aqui jaz...
E tantas vezes escreveu na pedra aquele começo de frase que lhe puseram o apelido de Aqui Jaz.  Ele reagiu sempre com tanta violência e aborrecimento que o apelido pegou.  Todas as vezes em que o chamavam assim, era briga na certa.  Até que, em certo dia de caçoada mais ferina e de briga mais feia, com faca, mataram-no.  Acabou, foi enterrado, abriram-lhe um epitáfio, no mármore e começava assim: Aqui Jaz... Muitos riram, alguns da família choraram.  Num certo dia dois de novembro, uma rapaziada de escola, endiabrada, resolveu fazer uma modificação no epitáfio do pobre Aqui Jaz, que era assim:
Aqui Jaz
Luís Gonzaga dos Santos
Nascido *
Morto +
Esposo, amante, filho exemplar.
E o solene epitáfio ficou assim:
Aqui Jaz o Aqui Jaz
Que por causa de aqui jaz
Aqui jaz.
*
Antigamente, nos bondes da capital  paulistana, havia este anúncio:
Veja ilustre passageiro
O belo tipo faceiro
Que o senhor tem a seu lado.
E, no entanto, acredite:
quase morreu de bronquite.
Salvo-o o rum creosotado.
Animada pelo conselho, a gente ia olhar para o belo tipo faceiro, ao lado, e ah! meu Deus do céu!!!
*
Cruzeiro, cidade de 90.000 habitantes, tem as suas oficinas de desmanche, na estrada, antes dos primeiros casarios. Ali é antes de tudo uma extensa e animada oficina, uma comunidade automobilística de lanternagem, pintura, eletricidade, recauchutagem, recapagem, ressolagem de pneus, e tutti quanti.  Ali mesmo estão  dois cemitérios na cidade, um velhíssimo e outro novo, bonito, cuidado, arborizado.  Em frente ao portão do cemitério velhíssimo uma das oficinas encostou um cartaz que anunciava em letras gordas: VENDEM-SE CARCAÇAS.

A Cobra Grande

Ruth Guimarães 

De vez em quando, por falta de assunto, acende-se uma discussão em torno do índio, de suas terras, dos seus direitos, ou alguém vai fazer pesquisas nas tribos. E há questões de terras e de divisas. Nada sério. Antes da colonização e das catequeses nada se sabia dos índios. E agora sabemos? Tivemos o Marechal Rondon, índio puro, o cacique Juruna que veio diretamente da tribo, Aldemir Martins o pintor universalmente premiado, e que se confessa índio com sua própria imagem – os olhos puxados, os zigomas, a cor, o riso. Nenhum deles selvagem. Nenhum vivendo a vida e a cultura dos nossos irmãos de mata, a não ser como observador, protetor, tendo cada um a seu modo porfiado por eles. De fora, por assim dizer. É de fora. 

Quando se fala de mitos ameríndios, não se trata de indianismo puro, mas de reminiscências. Estas repontam aqui e ali, anônimas e inconscientes, folclorizadas, mas insuficientes. Mais recentemente, houve o movimento local, do Vale do Paraíba, focalizando o Saci e jogando-o contra as festas de bruxedo americano, do dia primeiro de novembro. Providências aleatórias, sem conseqüências, porque sem base folclórica, sem informar que o mito é africanizado, adotado pelas mucamas e redesenhado à moda afra. E nessa roupagem transformadora recomeçou de outra maneira a correr mundo. 

Grandes grupos de indígenas foram dizimados, para que os homens ditos “os que trazem a civilização” trouxessem aos sertões, ou dos sertões cacau, salsaparrilha, urucu, anil, sementes, raízes, castanhas, madeira, minério, ouro, diamante, borracha. Os índios sofreram guerras, doenças, fome. Puros, existirão na Amazônia cerca de 100.000 indivíduos, e cada vez menos. Uns tantos no litoral paulista. Alguns em Goiás. Um punhado no Mato Grosso repartido em dois. Há a questão das terras, a luta dos índios na Constituição e fora dela – o improvável reconhecimento dos direitos territoriais, da demarcação e garantia das terras ameríndias; a tese utópica do usufruto exclusivo, pelos povos indígenas, de riquezas naturais do subsolo das reservas; questionável reconhecimento e respeito às organizações tribais. Tudo isto balela. Conversas eleitoreiras que já sabemos onde vão dar. 

O índio, como raça, está perdido. Isto é, em extinção, o que é a mesma coisa. Já há tão poucos indígenas, no Brasil! E esses poucos estão enfurnados pelos matos, jogados nas reservas, ou por aí, como canoeiros, raizeiros, feiticeiros e outros eiros sem importância. Se, como raça, ele vai partir, para não mais voltar, como elemento constituinte do povo brasileiro, continua vivo. Quem poderá eliminar, da nossa etnia de mestiços, sobre mestiços, e mestiços de mestiços, em principal na região nordestina, o bronzeado da pele; os olhos puxados; o corte abulado para cima, na pálpebra; as maçãs do rosto, altas e separadas; o nariz reto, em bico de ave de rapina; o negro opaco dos olhos ditos enluarados; o luzidio dos cabelos escorridos? Como eliminar a parte selvagem, misturada ao branco, dentro dos cabras e dos caboclos, cafusos, mamelucos? Estes são vivos, são imortais. Legião mestiça da nossa Pátria morena. 

O índio, nós o trazemos em nós. 

Contribuição indígena temos pouca, isto é, muito pouco, em quantidade, mas muito muito em poesia, em fantasia, em imaginação, em beleza. Veja-se a história da Cobra Grande, que exigiu a pena de um poeta como Raul Bopp para desencantar. 

O começo é assim, e com esse começo é-nos permitido sonhar: 


A Cobra Grande ia se casar com a filha da rainha Luzia. Tinha mil olhos espalhados por dentro do corpo, por causa de devorar olhos de bichos selvagens, que tinham ido beber no lago verde em que vivia. Era cobra-macho, grandona, cruel, correndo mundo. Mboi-Açu chamada, em língua de índio, também chamada Boiúna, porque negra como o pecado. 

Consta que o mundo começou em águas. Em água toda a gente morava. Era bem nos começos. No brejão o sol não entrava, nem carecia. O fundo do lago era verde claro, musguento, cheio de faíscas da luz que vinha de cima. 

Por via do casamento, lá em baixo começou a aprontação. O derredor do palácio da rainha foi calçado com pedrinhas brancas, redondas de tanto rolar. Tudo foi lavado e esfregado, tudo ficou relumeando: a areia dourada, os camarões de casaca vermelha, o baratão cascudo, escurão, preto-pixa, os sapos de lombo rajado. O véu-de-noiva da cachoeira sacudiu uns adejos de espuma no ar. E escachoava, numa canção sem tamanho, antiga, antiga. Tudo para o casamento da filha da rainha Luzia. 

Sem mais nem menos, correu uma notícia estranha. A princesa não queria mais casar. 

A Cobra Grande piscou os molhos do avesso e se apagou. Da Boiúna que era ainda ficou mais preta, carvão. Resfolegava, coleando abaixo e acima. Os peixes se enfurnaram nas locas, saparia calou a boca. A lagoa se tornou taciturna. As águas se encolheram de medo. Nem a tempestade, riscando barulhão no ar e mandando flechas de fogo pra baixo trouxe tanto pavor, como o descontentamento da Cobra Grande. Nisto, a cachoeira pegou a cantar, sem-vergonha: 

A filha da rainha Luzia sssssssssssshiiiiiii! 

Não quer casas sssssssssssshhhiiiiiiaaaaa!

Release: Água Funda


um dos mais importantes romances regionalistas da geração de 45, é relançado pela Nova Fronteira
“A gente passa nessa vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada. E quando alguém mexe com varejão no lodo e turva a correnteza, isso também não tem importância. Água vem, água vai, fica tudo no mesmo outra vez.”

Romance de estreia de Ruth Guimarães, Água Funda teve sua primeira edição em 1946, recebendo imediata acolhida pela crítica literária e conquistando a admiração de autoridades em estudos da literatura brasileira, como Antonio Candido, autor do prefácio que introduz a edição lançada pela editora Nova Fronteira.
Ex-aluna de Mário de Andrade e ela mesma escritora versada em leituras sobre folclore e cultura popular brasileira, Ruth Guimarães nos oferece neste Água Funda uma intensa e deliciosa viagem pelo universo caipira de Olhos D’Água, localizada em uma cidadezinha do interior mineiro, ao pé da serra da Mantiqueira.
No microcosmos de Olhos D’Água passeiam os personagens que compõem o típico painel da vida no interior do Brasil da época, remontando aos tempos em que o negro ainda era escravo. Um mundo de atmosfera mágica, por onde desfilam sinhôs e sinhás, contadores de casos, e no qual a superstição e o sobrenatural muitas vezes orientam a vida cotidiana.
Obra que faz lembrar O tronco do ipê, de José de Alencar, Água Funda nota-se ainda pela prosa ágil e despretensiosa, sem os modismos de ocasião que apenas fariam do texto água rasa e ordinária. Conciso e envolvente, porém, o livro evidencia o fôlego dessa autora que é, nas palavras de Antonio Candido, servida “por uma expressão clara e elegante, própria dos bons escritores”. E o próprio Candido continua, ao assegurar ao leitor que “a fluência da narrativa, a felicidade dos achados estilísticos e a densidade humana do todo fazem da leitura de Água Funda uma experiência válida e um grande prazer”. 

Pedro Malazarte, como você nunca viu

Pedro Malazarte é um personagem cravado no imaginário popular brasileiro. 


Estradeiro, andarilho, raposo, “senvergonho”, em princípio ele se realiza em histórias que o definem como criatura comum, magro, amarelo, pé-no-chão, paracaboclo. Nada de especial. Gente. “Gente de unha e dente, de bunda atrás e nariz na frente”, definição popular, quando se trata do ser autêntico, sem distorções. 

Conhecemos poucas estórias dele. Mas Ruth Guimarães, pesquisando no Vale do Paraíba, registrou mais de cem, e as conta como ninguém em seu livro “Calidoscópio – a saga de Pedro Malazarte”, recolhidas entre autênticos caipiras admiradores desse seu herói, cheio de espertezas, capaz de enganar qualquer esperto e precavido, e de – sendo um autêntico pé-rapado – dividir a cama com donzelas maravilhosas, mulheres de nobres e até princesas, tendo como cabedal pra chegar a isso a imaginação, a cara-de-pau, a capacidade de pôr em prática os planos e ardis mais inusitados. 

A autora, Ruth Guimarães, nascida em 1920, em Cachoeira Paulista, formou-se em Letras pela Universidade de São Paulo, onde foi aluna de gente como Roger Bastide e Florestan Fernandes. Trabalhou como professora e jornalista, é autora de vários livros, além de tradutora de Dostoievski, Balzac, Alexandre Dumas entre outros. Já no seu primeiro romance, Água Funda, escrito aos 22 anos de idade, teve destacada por Antônio Candido a habilidade em unir o português clássico à linguagem da gente humilde. 

Ruth consegue juntar nas 326 páginas deste “Calidoscópio” seu lado caipira com o de intelectual, sem perder a graça nem a qualidade literária. Profunda conhecedora da cultura brasileira, ela mostra na linguagem escrita a mesma fluência e sabedoria com que tem participado dos muitos debates e palestras promovidos pela SOSACI – Sociedade dos Observadores de Saci, da qual é uma verdadeira musa e sacióloga decana. 

Discípula de Mário de Andrade, Ruth Guimarães segue explorando o universo brasileiro e os mais diversos traços da cultura popular do país: “Conheçamos as histórias brasileiras que nos integrarão à nossa cultura, ao nosso pensar, agir, sentir e fazer de brasileiros. Elas constituem lições profundas, verdadeiras e indispensáveis de brasilidade”. 


Mouzar Benedito da Silva

Poesias de Gilberto Amado

Ruth Guimarães

Inesperadamente, relendo “Poesias” de Gilberto Amado, vejo-me diante de uma nova “História de minha Vida”. Ali vemos a história da evolução literária do Autor, no terreno da Poesia, , como num espelho mágico, desfilarem as sucessivas imagens do que foi e do que é Gilberto Amado, o magnífico. É tão evidente esse característico que não sei se deva opor restrições contra a inclusão de algumas poesias que são excelentes exercícios de metrificação e rima, ou se louvar o corajoso desprendimento do Autor, arriscando-se a diminuir a qualidade do seu livro. Realmente, alguns poetas, por uma razão sentimental, que eu absolutamente não compreendo, conservam versos escritos há vinte anos, ou aos vinte anos. Quando são bons, não há objeção, é claro. Entretanto, ao que parece, em Gilberto Amado a sequência dos poemas obedece a um plano em linha ascendente, a uma história da sua poesia, contada sutilmente, implacavelmente, e em que ele se desnuda, modesto e arrojado a um tempo, e aparece em toda a sua plenitude, desvendando o seu processo de crescimento e de aprendizado, soberbo e inacessível, sem pudores literários e sem mistério, poeta ao natural como era homem ao natural um grego coroado de rosas.

É por isso que encontro em seu livro muitas poesias e algumas poesias e encontro ora poemas, ora a poesia, e encontro suas experiências e a sua experiência. E encontro ainda, inevitavelmente, um conglomerado de produções, meio caótico, onde se misturam escolas, ou melhor, onde as escolas se sucedem, o que não condiz com a serenidade olímpica do Autor.

O livro todo se compõe de seis partes, divididas não por assuntos, nem em versos tradicionais ou livres, mas por épocas. Épocas de vida, ao que parece. “Suave ascensão”, a primeira, é de 1917. As outras não têm data. Vêm depois: “Imagem do Brasil “, “Meu coração cresceu”, uma 4ª parte bipartida em “Visões e anseios” e “Instantâneos”, uma 5ª parte composta somente de “Sonetos” do mais puro parnasianismo, “Canção das Águas Claras”, sexta e última parte, um poema só, de metros misturados, quatro, cinco, seis e sete sílabas, o que lhe dá um ritmo, um embalo gostoso de canção.O que nos surpreende ao ler Gilberto Amado é encontrar um fenômeno muito raro no Brasil: um espírito helênico, impregnado do culto da Beleza. Ele tem o amor da claridade, e o culto da forma. Encarna bem o trinômio do classicismo, o Bem, o Belo e a Verdade, tudo em doses racionais, iguais, atuantes, e tem o poder de renovar e de ressuscitar, acompanhando pari passu a evolução, e mesmo indo adiante dela. Desses espíritos que jamais envelhecem.

Tradições

Ruth Guimarães


“Lembra-te, homem, que és pó e em pó te tornarás, mas lembra-te também que és luz e luz tornarás a ser, porque o pó e a luz nasceram no mesmo dia e da mesma semente”. (O que não sei se é verdade, ninguém sabe, mas soa bem). 

Os santos se recolheram silenciosamente aos seus nichos e ali ficaram à espera de nova oportunidade. Não serão chamados tão cedo, uma peste está fora de cogitação devido às providências dos serviços de Higiene. Quando cai uma bomba atômica, não dá tempo de chamar. Tomar cinzas virou uma coisa tão fora de moda! 

A civilização está mudando demasiadamente depressa, amadurecendo, e não podemos apanhar com fidelidade o seu novo sentido. É como esses frutos temporões, sazonados com muito sol. Bonitos são, e nocivos. Frutos envenenados de bela casca brilhante, são até muito saborosos ao paladar afeito às dádivas levemente corrompidas da nossa cultura. Quem sabe lá o que se esconde na polpa macia e cheirosa? Quem sabe lá o que resulta de provar um fruto desses? 

Com todas essas alterações, os pobres dos santos se desatualizaram, se é que essa palavra existe. Santo Antonio ficou imortalizado nas palavras de Vieira que lhe relembrou o sermão aos peixes. O velho e profano Vieira. Demais servia à esperança das moças casadoiras (o padroeiro das velhas é São Gonçalo) e a sua própria função não deixa que o abandonem. A trezena das terças-feiras, na igreja do Patriarca é testemunha; mas os outros santos, que tristeza! Quem mais os chama? Quem se lembra de Santa Bárbara? Quem faz promessas a Santa Luzia? A Santa Luzia que passou por aqui sem cavalinho e comendo capim (o cavalo evidentemente). Senhoras de mais de 40 não desanimeis, primeiro porque a vida realmente começa aos 40, segundo porque São Gonçalo continua dispensando milagres. 

Conta-se de certa senhorita que depois de muitas rezas para Santo Antonio tinha já se passado para São Gonçalo, mas este se fazia de surdo a seus apelos e ela já estava perdendo a paciência. Meio cansada, meio desiludida, meio conformada. Estava viva, que diacho! E então num acesso de cólera e impávida, arrastou consigo o santo ofendido. Não arrumar noivo nenhum e ela ficar solteirona para sempre, que leve a breca! Mandou a imagem do santo pela janela. 

E os três gritos e três pulinhos a São Longuinho, era para encontrar o perdido? E o farelo de pão a Santa Clara, para fazer voltar o sol? E a palha benta queimada em dias de tempestade? E os pedidos absurdos a Santa Rita dos Impossíveis? E o jantar oferecido aos cachorros em honra de São Roque, que cura o mardelanço? E a invocação a São Bento contra mordedura de cobra? 

Todos nós sabemos que a igreja é a maior de todas as forças conservadoras. Pois ainda é menos conservadora do que o povo. Assim é que, enquanto ela aceita e modifica uma série de coisas, o povo ainda se empedra em tradições não raro milenares, não raro absurdas, pois perderam há muito tempo sua razão de ser – porém atuantes, receitas de vida para uma parte sensível da multidão, e válidas, como nada mais poderia fazê-las a não ser o tempo. Assim a ausência do hábito nos religiosos, trocado por roupa mais cômoda, que o próprio religioso considera útil e funcional, facilitando-lhes em muito a tarefa, é raro alguém aceitar isso com naturalidade. As mulheres, vestais dessas tradições, são as que mais protestam. As freiras resistem mais que os padres e ainda as vemos e as veremos por muito tempo levando com graça e dignidade os seus trajes tão lindos, mas tão inadequados. A missa em português encontra fortes opositores que não sabem sequer porque se opõem. Como resistem sem um motivo apresentável a qualquer alteração repentina às descobertas da ciência, às injeções, ao tratamento pré-natal, ao exame pré-nupcial, à vitória do Corinthians sobre o Santos, e a outras atualizações necessárias. Até a mudança de hora do relógio, uma hora só, que nem altera nada à ordem das coisas, é motivo de ataque. Uma das coisas que mais mereceu desaprovação do povo foi a mudança do sábado de aleluia para o domingo da ressurreição, embora em certa época deva ter havido alteração contrária, isto é, o domingo de ressurreição passou a começar no sábado ao meio-dia. Na capital essas comemorações há muito inexistem. Nos bairros há ainda um ou outro Judas malhado entre muitos gritos e algazarra muita. Mas era no interior que se faziam as, digamos, comemorações, com malhação de Judas, e molecada na rua pedindo aleluia. 

As festas iam pelo dia a fora, aleluia! 

É proibido proibir

Ruth Guimarães


De onde surgiu tão depressa essa questão do plebiscito para o desarmamento? Por quê não nos ensinaram, primeiro, como portar uma arma, como usá-la, como nos defendermos com uma arma, como legalizar o porte de armas, como cuidar para que as crianças e os desavisados nunca a alcancem? Sabe-se que certo país, que nunca foi invadido, não tem exército, nem soldados aquartelados. Cada cidadão é treinado em atividades marciais e aí vai pra casa levando a sua arma. Em casos extremos, esses cidadãos, treinados, estão prontos em doze horas. 

Não nos ensinaram coisa alguma. Mas, de acordo com a nossa etnia, temos uma longa experiência, em arcos e flechas. 

Cabe aqui a pergunta: A quem interessa o nosso desarmamento? 

Somos um país rico, é verdade. Quem jamais nos ensinou como devemos usar, preservar e defender de assaltos as nossas minas, as nossas selvas, o nosso ouro, o nosso urano. Com todas as fronteiras abertas, desguarnecidas, temos somente a coragem, grandes espaços, populações desarmadas. 

A quem interessa o nosso desarmamento? 

Dirão que, conforme as estatísticas a maioria dos crimes com arma de fogo, dolosos ou culposos, a maioria, vejam, não é cometida por bandidos, mas por aqueles cidadãos que não sabem nem de que lado se pega um revólver. Então a providência não é desarmar esse cidadão, é armá-lo de tantos valores que nos faltam, cidadania entre outros, coragem, liberdade, educação. 

Compreendo que os poderes estejam tão confiantes na ação do desarmamento, até irem a o ponto de gastar um dinheirão, que não temos, para fazê-lo. Mas a ação deveria ser completa. Por quê não estendemos a ação proibitiva para as outras armas? : faca de cozinha, facão de mato, enxada, foice, cordão de amarrar sapato, chaleira de água fervendo, carros, bicicletas, veneno de rato, travesseiros de sufocar. E que dizer das armas do corpo? das mãos, dos pés, das cabeçadas? 

Depois de votarmos pelo desarmamento, os milagres acontecerão? Serão tomadas providências sobre as prioridades? Ou apenas acrescentaremos um item ao que já temos, ou melhor, não temos? Pois que, então: doentes, analfabetos, abandonados, ignorantes, inseguros, desempregados e desarmados. 

Mas pelo menos que nos elucidem: quem se aproveitará do nosso desarmamento? 

Ninguém pediu ao povo brasileiro um sim ou não para o Mensalão nem para a qualidade da merenda escolar, que se resolve por umas bolachas duras e um suco feito de um pozinho sem-vergonha. Mas tudo bem, vamos concordar mais uma vez. Faremos tudo que o nosso senhor e mestre mandar. Vamos esquecer o México, o Haiti, o Iraque e ficar concentrados no nosso por enquanto Brasilzão. Vamos vencer no drible (pois que somos o país do Futebol), o dragão, os marcianos, as bombas nucleares e outros que tais. Sem esperar pelo Super-Man, de que Deus nos livre! 

Enquanto esperamos para ver quem lucra com o desarmamento, como somos o país do jeitinho (também entre outras coisas), vamos intensificando a nossa produção de estilingues.

Mensalão?

Ruth Guimarães


Havia uma família de pouca ou nenhuma ambição, cujo mensalão era constituído do parco leite de meia dúzia de vaquinhas, herdadas de um avô pecuarista. E disso eles viviam. Minto. Viviam também de invocar Santo Antônio, santo varão português, que, quando se lhes pede, em cinco minutos atende, fazendo o milagre. 


À míngua de boa alimentação, as vaquinhas davam pouco leite, mas a família se contentava com pouco. Casa de chão - barro, bambu e sapé, prateleiras de caixote, vassouras para limpeza apanhadas no mato. Por que vocês não ampliam a criação? A gente vive bem com o que tem. E Santo Antônio nos ajuda. 

Ora, se deu que Santo Antônio, um dia de lazer, fazendo estatísticas dos seus chamados, verificou que na região onde assistia a tal família havia quem o chamasse dezenas de vezes. 

- Por que será que tanto me chamam? – indagou de si para si. 

Embarcou num raio de sol e veio. Ficou impressionado com a nudez da casa, a louça pouca, desbeiçada, o quintal devastado. E com os homens e as mulheres fortes, flanando por ali, sem terem o que fazer, e nem procuravam o que fazer. 

- Eles têm razão, coitadinhos! Estão mesmo precisados da minha ajuda. 

Foi ao campo, onde as bonitas vaquinhas pastavam à beira do barranco, deu um empurrãozinho em cada uma, elas rolaram perambeira abaixo e todas morreram. 

- Vamos ver! – disse o santo, esfregando as mãos, muito satisfeito. – Vamos ver!... 

Naquele dia a família procurou as vaquinhas, não encontrou nenhuma. Onde andarão? Santo Antônio nos ajudará a procurá-las. Com efeito ajudou porque não tardaram a achá-las, tão fundo no despenhadeiro, que não aproveitaram nem o couro. 

Ainda havia alguns grãos nas latas de mantimento, cataram gravetos, fizeram o jantar. No segundo dia, pela manhã, fizeram o café. No terceiro dia não houve o que comer. Tentaram raízes, frutos, insetos, como içá torrada com farinha. Não deu para viverem à moda dos sapos e dos passarinhos. Depois de mais de dois dias de fome, saíram à procura de serviço, cada um para seu lado. Encontraram o que fazer e, aos poucos, entrou-lhes a fartura em casa. 

Que se saiba, ninguém está rezando para Santo Antônio, ou talvez o santo tenha mudado de nome e responda agora por São Vesúvio ou São Tibério ou São Dilúvio, esses nomes antigos, de mais do que antigas usanças. 

Acontece que, depois que a vaca foi pro brejo, as nossas casas legislativas, que raramente davam quorum, exceção feita na época de aumentar o próprio salário, de uns tempos pra cá, apresentam casa cheia todos os dias.

A Negritude e eu

Ruth Guimarães

Tantos já fizeram o diagnóstico da situação do negro em nosso meio, que não vou repetir. É necessário admitir que não se trata da situação do negro, propriamente, mas do pobre, na acepção mais completa do termo. Isto é, do negro na situação de desvalido. Sobre o assunto temos os inolvidáveis documentários de Gilberto Freire, Nina Rodrigues, Edson Carneiro, Artur Ramos e muitos outros, como o recente Clóvis de Moura. Etnólogos, antropólogos, sociólogos.

Há tempos, por meio do jornalista Fernando Góes, fiquei conhecendo agremiações, clubes, sociedades, o gueto negro do Baixo Piques, as rodas de prosa da rua Direita aos domingos, família de negros, as gafieiras, o Bixiga dos cortiços, a favela do Saracura, tudo.

Na grande luta a favor da igualdade e da dignidade humanas, em especial do negro, dizia ele que há duas espécies de negros omissos: aqueles que fazem zumbaias para os brancos e vivem em clientela com eles, e se fazem de alegres, de agradáveis, de palhaços, para obterem favores, e o favor de serem tolerados. E aqueles que por toda parte ficam muito quietos e muito discretos, para ninguém perceber ou para ninguém reparar que eles são pretos. Negro, meu irmão, em qual dessas categorias, você se inclui? Em que terreno se dará a luta?

Agora vem a indefinição: lutar para obter o quê? “Igualdade” entre aspas, diante da lei nós temos. Do que precisamos é de sermos livres, principalmente dentro de nós mesmos, e liberdade ninguém pode nos dar, a não ser cada um conseguir a sua.

Liberdade não é apenas uma palavra, um item, uma lei; mas é rumo, é programa, é meta. E para que a tenhamos, cada um tem que conquistar a sua, com unhas e dentes, com fé e tenacidade, e lutar centímetro a centímetro do seu espaço. Sem lamúrias e sem queixumes. E obedecendo apenas à voz da consciência.

Quero ver claro nesse assunto. Que é que na verdade queremos? Ser absorvidos por uma civilização branca, e tolerados como os estrangeiros que já fomos, tendo que nos conformarmos com o que nos queira oferecer o dono da bola? O dono da terra? O dono do mundo? Ou o que? Quem nos deu dono? Por que aceitamos os donos?

O que temos realmente é um problema de classe, centrado no negro, por muitas razões políticas e econômicas. O negro não saiu e não sai da senzala não é por sua pele negra, mas por falta de conhecimento.

Repetindo e parafraseando Brecht: se o negro tem fome, se está vexado, humilhado, ofendido, agarre o livro: é uma arma.

Eu venho aos negros pregar o orgulho: de sua pele de bronze ou de ébano. Do seu trabalho. Da sua inteligência, da sua bondade, de sua alegria do seu samba, do seu lugar no mundo.

Sem escola e sem orgulho, o que nos resta? Porteiro, contínuo, cama, cozinha, fundo de quintal, porta dos fundos, elevador de serviço. Resta apenas irmos para onde nos empurram.

Estamos aqui. Já que nos trouxeram, só o que falta é sermos. Era só o que faltava, sermos estrangeiros em nossa própria terra! Não queremos bondade, nem tolerância, nem paternalismo. Não queremos nem que falem por nós. Queremos igualdade não concedida, mas conquistada. Esta terra é nossa.

Pois eu vim hoje aos negros que me lêem, pregar o orgulho.

De macacos e papagaios

Ruth Guimarães


Um número cada vez maior de brasileiros, ditos alfabetizados e alguns de beca e capelo, escreve e fala cada vez pior. Não me venham dizer que se trata de evolução da língua. Que já mudamos os tempos e modos dos verbos. Que alteramos a significação. Que a época é outra. Que não é para falar bonito, porque hoje não é domingo. Que a colocação dos pronomes... que Portugal... que o Brasil. Não é nada disso. Trata-se pura e simples de empobrecimento. Também não estou falando de adolescentes, de mocinhos, de alunos, nem da televisão. Falo do brasileiro em geral. O empobrecimento da linguagem dificulta e acaba por impedir o pensamento. Como poderemos distinguir, discernir, compreender, pensar, sem palavras? Precisamente o grande Paulo Rónai situa o mal de não saber ler, de não gostar de ler, no fato de se sucederem às gerações sem palavras. 

A palavra nos tornou humanos. A palavra nos eleva até Deus, que era o verbo, antes de se fazer carne. Claro que falo da palavra rica, variada, justa, exata, própria, única, expressão perfeita do pensamento e não de tá-legal, paquerar, ficar, e mais os adjetivos televisivos espetacular e má-ra-vilhoso, expressões que qualquer papagaio decora e repete e fica repetindo. Assim poderá conversar em sociedade várias horas, antes que descubram que se trata de um papagaio. 

Claro que falo da palavra expressão do pensamento individual e não da que se usa para encobrir a falta de expressão coletiva. 

Realmente é muito mais prático e mais fácil usar meia dúzia de chavões, como é mais fácil não pensar do que pensar, mais fácil andar de quatro do que de dois pés, uma vez que engatinhamos, para depois andar. 

Goëthe disse que não estamos no mundo para ser felizes, mas para pensar, se é isso que nos distingue dos animais. A verdade talvez seja outra: é que temos que pensar e sermos conscientes, para sermos felizes. 

De qualquer maneira, descemos há muito tempo da árvore, é o que Darwin afirma. Que não nos aconteça subir outra vez, por excesso de simplificação.

Resenha do livro Asno de Ouro

São Paulo, 12 de julho de 1965 

Senhora Ruth Guimarães. 

Desde que li sua magistral tradução do “Asno de Ouro” De Apuleio, acalentava o desejo de resenhar seu trabalho na Revista de Letras da Faculdade, onde tenho a honra de reger a Cadeira de Língua e Literatura Latina. 

Cotejadas as traduções nos idiomas ao eu alcance, constatei sua honestidade intelectual, pelo que empreendi a resenha com aquele estado de alma que seu trabalho mereceu. E o fiz com tanto mais ardor quanto mais pobres e superficiais tem sido as lacônicas resenhas que um ou outro crítico literário lhe tem feito. Fato, aliás, compreensivo, caso os seus autores não conheçam profundamente a língua latina. 

Sua obra merece mais do que o distantismo de uma crítica eventualmente encomendada pelas Casas Editoras. 

Intentei assim realizar uma resenha criteriosa e objetiva porque julguei que seu trabalho não poderia ficar à margem dos seus reais méritos. 

Acolha, pois, minha crítica como prova de consideração e apreço, lamentando não poder contá-la nas lides de um corpo docente universitário. 

Com respeito e profunda deferência, subscrevo-me 

Dr. Enio Aloisio Fonda 

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis – SP (EFS) 


Resenha: APULEIO – O Asno de Ouro. Introdução, tradução e notas de RUTH GUIMARÃES. São Paulo, Editora Cultrix, 1963, 235 p. 

As letras latinas legaram-nos sob o tríplice e tradicional título Lúcio, Metamorfoses, Burro ou Asno de Ouro um dos romances mais curiosos, da autoria de Apuleio de Madaura, cujo encanto principal repousa, ao que parece, na sua composição. Apesar da sua antiguidade, o livro do madaurense continua extraordinariamente vivo e encantador. A parte mais extensa (8 livros) coincide na matéria com outro romance, atribuído a Luciano, escrito em grego, e também intitulado Lúcio. 

O romance de Apuleio é uma coleção de novelas, coligidas sob a forma de extensa narração do tipo do Satiricon de Petrônio, onde são narradas as façanhas de um certo Lúcio, transformado por magia em burro e finalmente levado à primitiva semelhança humana meses depois, quando devora uma grinalda de rosas consagradas à deusa Ísis. Ao argumento principal se juntam muitas outras aventuras, ora trágicas e austeras, ora cômicas e mundanas, ora fesceninas e devotas, oras sentimentais e líricas, mas sempre aventurosas. O último livro (XI) narra a iniciação do protagonista nos Mistérios de Ísis; é, por ventura, a fonte mais abundante de que dispomos para o conhecimento desse culto famoso. Enfim, na extensão de dois livros (parte do IV e do VI e todo o livro V) dá-nos Apuleio o único relato do mito de Eros e Payche. 

Na composição do Asno de Ouro tem incidido os mais diversos juízos críticos, prevalecendo, todavia, o que resulta da composição das versões de Apuleio e Luciano. Neste caso, a opinião da crítica, tanto desfavorece o escritor latino, censurando-o de haver desfigurado a fábula com impertinente misticismo, quanto louva o escritor grego porque soube convertê-la em deliciosa sátira dos costumes da sociedade antiga. 

Ao lermos o Lúcio latino, compreendemos que dificilmente se possa harmonizar o jeito grotesco das primeiras páginas com a solenidade hierática das últimas. Compreendemos, portanto, a censura que resulta da comparação com o Lúcio grego, onde a tonalidade humorística se mantém da primeira à última página, e que quanto mais se assemelham as aventuras do asno, paralelamente desenvolvidas nos dois romances, tanto mais díspares se nos afiguram o mito de Psique e a iniciação isíaca, de modo que no romance de Apuleio chegarão estes episódios a ser considerados como supérfluos e até artificiais e artificiosos. Sê-lo-iam, de fato, se o fito do escritor latino coincidisse com o do escritor grego; mas não se pode crer que Apuleio pretendesse apenas divertir os leitores. Correndo embora o risco de exceder o autêntico significado do romance, devemos presumir que as deficiências estruturais ocultam o propósito coesivo daquelas suas partes heterogêneas, e que sendo assim, o problema literário converte-se num problema fenomenológico. 

Luciano, ou outro que seja o autor de Lúcio grego, explorou somente o lado ridículo de um sortilégio malogrado e das subseqüentes aventuras de um mago aprendiz; mas o autor do Lúcio latino quis trazer à tona um dos abismais enigmas do ser. Os confins do cômico e do trágico, do riso e das lágrimas, da vida e da morte só se fixam no quotidiano. Mas o lado da “história” ficou sinalado no Asno de Ouro pelo mito de Amor e Psique: Lúcio e Psique, ambos vítimas da curiosidade e da ignorância, da ingênua aspiração humana ao “alargamento” e “aprofundamento” do horizonte natural, percorrem juntos trajetórias paralelas do Destino. 

A característica mais notável desse livro esquisito é a espontaneidade de um estilo vivacíssimo, harmônico e adaptado aos tipos dos diversos episódios. Seu autor, como a sua época, é cheio de contraste e contradições: sério e frívolo, devoto e libertino ao mesmo tempo, e grande apreciador dos jogos de palavras, custosos para se traduzirem. 

O leitor encontrava até bem pouco tempo o romance do ilustre africano de Madaura na única tradução de Francisco Antonio de Campos, Barão de Vila-Nova de Fóscoa, sob o título Burro de Ouro publicada anonimamente, em 1847, em Lisboa, e que escrevera quando homiziado por motivos políticos. Era, salvo grave erro do resenhista, a primeira tradução em vernáculo do romance apuleiano até o momento em que uma nova e magnífica tradução d’O Asno de Ouro veio surpreender de certa forma os amantes das letras latinas no Brasil. De fato, traduções de textos clássicos já não se faziam mais no Brasil desde que duas editoras, Atena e Cultura, tentaram, debalde, há alguns lustros, despertar o interesse pelas obras imortais dos mais eminentes escritores latinos. 

O romance de Apuleio lançado pela Editora Cultrix em tradução da conhecidíssima professora Ruth Guimarães é, indubitavelmente, um livro frívolo. Mas não é minha intenção enfrentar aqui a questão da moral na arte literária, nem pretendo demorar-me na definição daquilo que nas belas letras seja pornográfico, porque defendo a opinião de que se devam publicar obras de arte e de pensamento cuja excelência seja tal que consigam resistir ao tempo e que se presuma continuem a resistir. 

Está fora de dúvida que o romance do madaurense constitua, ainda hoje, uma notável e interessante obra de arte, porque, não se sentisse a necessidade presente de dar no Brasil divulgação em vernáculo de uma obra como esta, teríamos vastas provas nas inúmeras traduções que dela se fizeram e se fazem repetidamente nas principais línguas européias. 

Ruth Guimarães veio assim restabelecer em nossa terra o louvável empreendimento de traduzir páginas de literatura que inegavelmente perfazem a criação romanesca mais amena, intercalada com o erótico-fantastico e sensual-místico, e que junto com o Burro de Luciano, obra escrita em língua grega, e o Satiricon do romano Petrônio, representa para a crítica literária da atualidade o mais antigo modelo desta modalidade literária na longa história do romance universal. 

Escusar-me-ia em debater os problemas que a tradutora brasileira, sem dúvida, terá encontrado ao longo das páginas de Apuleio para reproduzi-las em linguagem moderna, mas, como poucos leitores talvez conheçam a espinhosa arte de traduzir, dificilmente distinguiriam os méritos ou os defeitos que a tradução duma obra clássica possa ter, caso não se lhes apresentassem os óbices que o romance de Apuleio oferece até ao mais exímio latinista. 

Na tradução de Ruth Guimarães encontrará o leitor não só uma narrativa de amor como também uma “história” romanceada. Encontrá-la-á com o vigor que só a proximidade da fonte proporciona, e sem as dificuldades do original latino. 

Foi árdua a missão da tradutora, porque a linguagem, a fraseologia e o estilo de Apuleio precisam de luzes exteriores para serem traduzidos e retransmitidos em sua plenitude original. Mas Ruth Guimarães soube refundir isso tudo e cristalizar o trinômio com uma interpretação genuína que reflete os sinais expressivos nos quais o romance apuleiano se atua. 

Palavras obsoletas e até ousadamente inventadas; arcaísmos, vulgarismos, diminutivos usados em profusão; circunlocuções por meio de abstratos; amplificação de adjetivos; aliterações, assonâncias e rimas; longa série de termos morfológica e harmonicamente paralelos; complexa articulação de fraseados, empolação, estilo desigual e barroco: esses são em geral os defeitos que os críticos atribuem ao original latino. Mas apesar disso reconhecem-lhe, contudo, virtudes compensatórias: parte descritiva de grande efeito, alcançado na busca e obtenção desejada pela riqueza de palavras que traduzem vivíssimo colorido, a luz que refletem certas frases, a agudeza surpreendente de certas expressões. 

Como se acaba de ver, defeitos e méritos estão de tal modo fundidos e amalgamados entre si que com fantasia quase oriental do conteúdo resultou dessa geminação um “todo” atraente, um “conjunto” genial e grandioso. 

A rigor, numa tradução deveriam se reproduzir inclusive os defeitos da obra, porque os defeitos e os próprios erros materiais fazem parte do conjunto estético duma composição literária e constituem sua própria característica; suprimi-los, pois, mesmo por juízo crítico, significaria mutilar, deformar, trair substancialmente o espírito integral do texto. Vê-se quão impossível seria pretender que a tradutora tivesse alcançado a meta no caso presente. Ricas em demasia são as criações léxicas de Apuleio para que a tradutora as reproduzisse ad litteram em condições filológicas bem diversas, e com faculdades emotivas e intelectuais díspares. 

Outro problema era a superabundância dos diminutivos que Ruth Guimarães soube resolver graças à riqueza e variedade das modalidades que a língua portuguesa oferece para produzir sensação idêntica à da pretendida no original. Compreensível é também a questão dos arcaísmos, e evidente a impotência da vernaculização em suas precisões léxicas das longas séries de termos morfológica e fonicamente paralelos e que se enquadram na categoria das aliterações, rimas e assonâncias; versos intercalados e fórmulas propiciatórias; os carmina e cantamina, e as palavras taumatúrgicas da arte mágica, tão difíceis enfiem de se conciliarem com as exigências do gosto moderno. 

Não fique, por ultimo, inobservado o insolúvel problema das cláusulas métricas com que os escritores latinos soíam fechar os períodos e às quais Apuleio consagrara toda a sua arte. Por ser isso propriedade “toda latina”, compreende-se a virtual impossibilidade de reproduzi-la. 

O que mais importava na presente tradução era a tonalidade original do texto latino em nada traída por Ruth Guimarães, porque Apuleio, logo na introdução diz: Lector laetaberis. A tradutora conseguiu-a através de um estilo puro, simples e fluente e, no limite do possível, correspondendo sempre à forma expressiva do original, sem contudo ater-se demasiadamente à letra, mas ao seu espírito. 

Com esta tradução, a palavra do escritor antigo veio até nós na manifestação escrita com bom gosto e senso e na disciplina mental e formal exigida de um tradutor que deseje tonar moderna uma obra antiga e clássica. 

Só quem conhece Apuleio no texto original do romance poderá sentir e perceber de perto as qualidades excepcionais desta tradução e honrar a infatigável Ruth Guimarães não só com a leitura, mas sobretudo com o apreço justo e merecido da obra que traduziu; os demais poderão, quando muito, gostar ou não do conteúdo do romance, sem jamais ver nele o intrincado problema que uma obra da Antiguidade Clássica como esta constitui para quem, como ela, se arrojou à uma tarefa que considero das mais árduas e difíceis. 

Esta resenha, à qual arrogo todas as limitações e deficiências humanas, seja para a tradutora o preito de gratidão, reconhecimento e apreço de um simples homem de letras, como também de estímulo para novos empreendimentos.