quarta-feira, 18 de julho de 2012

Nótulas sobre a Revolução de 32

Ruth Guimarães

Durante a revolução de 1932, chamada Revolução Constitucionalista, desencadeada contra a Ditadura de Getúlio Vargas, os aviões governamentais bombardeavam a cidade frequentemente, na parte da tarde. Havia gente que, calculando a hora, ia se enfiar embaixo da ponte de ferro, que ligava a Margem Direita à Margem Esquerda. Lugar perigoso, tanto que a tal ponte foi bombardeada e destruída pouco tempo depois. Onde é o Parque Ecológico era um brejo na parte mais baixa, e, perto da ponte um campo de guanxima.

Quando aparecia o Vermelhinho da Ditadura jogando bomba, a ordem do comando militar acantonado em Cachoeira Paulista era atirar-se a pessoa no chão, estivesse onde estivesse. O pessoal no momento passava pela rua que vai dar na ponte, atirava-se no campinho, de qualquer jeito. Os que caíam no brejo tomavam grandes banhos de lama, para gáudio da molecada para a qual o bombardeio era uma festa. Salvo seja!

Certo dia, um tal Brás Lescura, coveiro, calhou de estar nas proximidades da ponte por ocasião de um bombardeio, eram bombas que caíam, formando boçorocas no meio da rua. O Brás que casualmente estava ali, em vez de espichar no solo, depressa, para escapar das bombas, permaneceu em pé, olhando interessado para cima, seguindo as evoluções do passarão vermelho, diz-que pilotado pelo futuro brigadeiro Eduardo Gomes, da UDN, futuro candidato à presidência da República.

Um oficial, vendo a atitude negligente do homem e inquieto pelo perigo que corria, berrou:

- Deite, homem! Deite! Você está louco? Quer morrer?

E o Brás, sossegadamente:

- Deitar por quê?! Ué! Não tenho nada com essa briga de vocês aí! Eu sou paisano!...

terça-feira, 10 de julho de 2012

Comidas e preconceitos

Ruth Guimarães

Quem quisesse estudar os preconceitos culinários da família brasileira teria assunto para um volume. Pois o que se deixa de comer, ou beber, por motivos que, quando mais não seja, são pitorescos, forma legião. Galinha que tenha os pés pretos, por exemplo, legorne porque é sem sangue, ovos brancos, que não tem sustância, carneiro, porque chora pra morrer, cabrito, porque é “aspre”, chá, não estou doente, verdura, não sou coelho. Nem peixe curimbatá, porque come terra, nem bezerro nonato, nem vísceras, nada.

Comida de brasileiro é leitoa assada, frango de leite, costeleta, lombo de porco, arroz com feijão. Em São Paulo, a experiência com açougue de carne de cavalo resultou em depreciações e os açougueiros da antipática mercadoria foram obrigados a se bandear para a carne de vaca de todos os dias. Os baleeiros japoneses que aqui estiveram nos abastecendo abundantemente de carne de baleia, gostosa, e de bela aparência, houveram por bem levantar âncora, foram embora e nunca mais voltaram. É verdade que existe gente sem nenhuma soberba, que come, torrada com farinha, a içá, a formiga que voa em outubro nos calores depois das tempestades. Também come broto de chuchu, bertralha trepadeira de cerca, umbigo de banana, orelha de pau. Mas esses são uns famintos desprezíveis, uns nhambiquaras, não representam a família brasileira e nada têm que fazer nesta conversa.

Inesperadamente, as inúmeras seitas protestantes contribuíram com um novo tabu: os crentes não comem carne de animal morto por sufocação, cacetada, golpe de macete, torcidela de pescoço. Carece correr sangue, sem o que a carne é impura. E já que falamos em religião, falemos em quaresma, que acaba de passar e que, nos dias que correm, passa, tão despercebida. Comida de quaresma era peixe fresco do Paraíba (menos o tal curimbatá), jaú, pintado, dourado, traíra, piaba gorda, lambari fritinho, torresmo de peixe, muito especial, e o bacalhau que era do cotidiano, para o cardápio do pobre.

Visita chegava, e a gente estava comendo bacalhau da Noruega, cada posta macota, grossa de três dedos, temperada no vinagre de vinho, com cebola roxa do Rio Grande e azeite estrangeiro, Bertoli, mesmo assim era vergonha. Vocês não reparem, almocinho de pobre, bacalhau. Agora nos vem a notícia de que Sua Santidade, o papa, tirou o jejum da quaresma. Moveu-o certamente a ciência de tanta fome no mundo, para que acrescê-la do jejum e da abstinência do preceito? Caridosa que seja a intenção, vai esbarrar, aqui no Brasil, eu sei, com o tremendo conservantismo da tradição. Nas sextas-feiras da quaresma não se comerá carne, e muito menos na sexta-feira maior. Um dia desses, como eu explicasse a uma senhora de poucas luzes essa história toda do jejum e da ausência dele, e que a abstinência o papa abolira, foi ela e me disse muito indignada:

- Então já pode? O papa tirar o que Deus deixou?