quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Ética dos valores

José Renato Nalini

É uma inversão da tese kantiana. Para Kant, o valor de uma ação depende da relação da conduta com o princípio do dever, o imperativo categórico. Para a filosofia valorativa, o valor moral não se baseia na idéia de dever, mas dá-se o inverso: todo dever encontra fundamento em um valor.

deve ser aquilo que é valioso e tudo o que é valioso deve ser. A noção de valor passa a ser o conceito ético essencial. E valor não ar­bitrariamente convencionado. Pois o que é valioso vale por si, ainda quando seu valor não seja conhecido nem apreciado. "A filosofia valo­rativa separa cuidadosamente o problema da intuição dos valores ­que é epistemológico - daquele da existência do valor - que é ontoló­gico".[1] É nossa consciência que nos adverte da existência dos valores. Mas não foram criados por ela, senão por ela descobertos. Só pode ser descoberto o que já existe.

1.  A existência do valor

Estudo elementar como o presente apenas aflora as questões éticas, remetendo os interessados a obras mais vastas. E as há em profusão. Questão recorrente no repensar de uma nova ética é a organização de conceitos ou princípios axiológicos novos, sobre os quais ela se fundará.

"Nenhuma sociedade pode sobreviver sem um código moral fundado em valores compreendidos, aceitos e respeitados pela maioria de seus mem­bros. Nós não temos mais nada disto. As sociedades modernas poderiam dominar indefinidamente os poderes fantásticos que a ciência lhes deu com o critério de um vago humanismo colorido por uma espécie de he­donismo otimista e materialista? Poderiam, nessas bases, resolver suas intoleráveis tensões? Onde vão desmoronar?” [2]

As grandes questões da axiologia clássica podem ser resumidas a quatro, e são elas que merecerão agora ligeiro exame.
Existem os valores? Eles existem e isso é facilmente constatável por qualquer pensante. Não se vinculam a qualquer forma de exteriori­zação. Podem ser meramente sentidos ou intuídos. Isso explica a sim­patia ou antipatia natural diante de uma pessoa ou a emoção perante uma obra de arte.

É longeva a distinção entre o mundo da matéria e a ordem do ideal. Os valores integram a esfera supra-sensível do mundo imaterial que, suscetível de ser intelectualmente concebido, não se pode visualizar ou submeter ao tato.

"A filosofia atual reconhece dois tipos de existên­cia: o ser real e o ser ideal. Pertencem ao primeiro todas as coisas e sucessos que ocupam lugar no espaço ou no tempo. O ser real se en­contra, por isso, espacial e temporalmente localizado. Por sua mesma índole, pode ser objeto de um conhecimento sensível. Na esfera práti­ca têm essa forma de existência os atos humanos, ou, mais precisamente, as variadíssimas manifestações do agir: intenções, propósitos, deci­sões voluntárias, juízos estimativos, sentido de responsabilidade, cons­ciência da culpa etc. "[3].

Já os valores não integram a ordem da realida­de. Diante dela, situam-se como ideais.

O perigo é concluir que só existe o que é real. Assim, o ideal não teria existência. Isso é pensamento ingênuo, como também o seria con­fundir-se idealidade com subjetivismo. Ideal não é só aquilo que é objeto da representação. Na ordem lógica e matemática, a tese da ideal idade tem alicerces consistentes. Quando se afirma: o todo é maior do que a par­te, independentemente de alguém imaginá-lo ou pensar assim, o postu­lado continua válido e existente.

Os valores submetem-se a uma hierarquia. Não que possam ser elei­tos, mas a hierarquia é objetiva. Entre os critérios determinativos dessa escala, indica Scheler os seguintes:

"Um valor é tanto mais alto: a) quan­to mais duradouro é; b) quanto menos participa da extensão e da di­visibilidade; c) quanto mais profunda é a satisfação ligada à intuição do mesmo; d) quanto menos fundamentado se acha por outros valores; e) quanto menos relativa seja sua percepção sentimental à posição de seu depositário".[4]

A durabilidade do valor tem a idéia de permanência. Não teria sentido o amante declarar que ama agora ou durante certo tempo. O va­lor é mais elevado quanto menor a necessidade de dividi-locam outrem. A obra de arte é indivisível. Inimaginável repartir-se uma tela em múlti­plas peças, para que cada destinatário detenha uma parcela de seu valor originário.

Entre os valores também surge a possibilidade de relações de fundamentação. O valor fundamentado em outro é sempre inferior ao fundamentante. Assim, a vida, entre os direitos fundamentais, é o bem por excelência. Todos os demais direitos são bens da vida, nesta funda­mentados e, portanto, inferiores à própria vida.

A satisfação coincide com a vivência de cumprimento, não com o estado de prazer gerado pela posse do valor. E a escala de relatividade dos valores auxilia a aferir o grau de superioridade dele. Há valores vin­culados ao agradável, os valores da vida que são relativos aos seres vi­ventes, e há valores puros, como os valores morais, que têm caráter ab­soluto, não relativo.

Max Scheler esboçou uma classificação dos valores sob enfoque hie­rárquico, distinguindo-os em: a) valores do agradável e do desagradá­vel; b) valores vitais; c) valores espirituais; d) valores religiosos.[5]

2. O conhecimento dos valores

Os valores constituem condição de existência dos bens. Existem bens porque existem valores, não o contrário.

Todo ser humano tem a experiência de conferir a determinadas coi­sas ou ações valoração que as qualifica como boas, más, úteis, agradá­veis, nobres ou belas. Esse experimento pressupõe uma escala estimati­va. Ela propiciará identificar, nas coisas ou atos, os valores compatíveis com essa pauta prévia.

Essa pauta é apriorística e, embora se afirme baseada na imitação, ou na índole intuitiva e emocional do conhecimento, ela existe em toda sã consciência. A intuição dos valores não é completa, nem perfeita. Hart­mann dá a esse fato o nome de estreiteza do sentido do valor.[6] Nenhuma pessoa é capaz de intuir todos os valores. Quando os intui, nem sem­pre pode fazê-lo de forma nítida. Mas é viável o crescimento nessa arte. A missão do pedagogo e do moralista é desenvolver a sensibilidade para o conhecimento daquilo que é eticamente relevante.

A História tem sido pródiga em exemplos de cegueira valorativa, não apenas em relação aos indivíduos, mas característica a toda uma sociedade ou a toda uma época. Recorda Ortega y Gasset que

"o esti­mar é uma função psíquica real-como o enxergar, como o entender­em que os valores se nos fazem patentes. E vice-versa, os valores não existem senão para sujeitos dotados de capacidade estimativa, do mesmo modo que a igualdade e a diferença existem para seres capa­zes de comparar. Neste sentido, e neste sentido, pode falar-se de certa subjetividade no valor".[7]

Tal estreiteza, mesmo a cegueira valorativa ou a miopia moral, não destrói a doutrina da objetividade dos valores. As variações da intuição estimativa não alteram o valor, que permanece íntegro, à espera da des­coberta. É elucidativa a idéia de García Máynez do cone de luz projetado no horizonte. A consciência de cada homem e de cada época descobre sob essa luz alguns valores. Se não atenta para outros, não é porque eles não existam. O cone de luz ilumina, mas não cria o horizonte.

3. A realização dos valores

O ideal coincide ou não com o real. Na ordem moral essa relação é bastante peculiar. O ser em si dos valores subsiste mesmo se não realiza­dos. Mas os valores são princípios da esfera ética atual, não apenas prin­cípios da esfera ética ideal, observou Hartmann. É a consciência estima­tiva que dá o testemunho da atualidade dos valores. Ela sinaliza o sentido primário do valioso, determina o juízo moral, o sentimento de responsa­bilidade e a consciência da culpa.

Mais ainda, os valores são princípios da esfera ética real. São forças determinantes da conduta humana num sentido criador.

"A possibilida­de que o homem tem de converter as urgências do ideal em forças modeladoras do existente condiciona, segundo Hartmann, a grandeza de nossa linhagem. Como administrador dos valores no mundo, o homem adqui­re uma significação demiúrgica, convertendo-se deste modo em co-partícipe da grande obra de Deus. "[8]

Adquire especial relevo na doutrina da realização de valores a no­ção do dever ser. É uma noção kantiana suprema e, portanto, indefiní­vel. Todo valor ético deriva da subordinação da vontade ao imperativo categórico. Já Scheler e Hartmann invertem a proposição: o valor mo­ral não se funda no dever, mas ocorre o inverso: todo dever pressupõe a existência dos valores.

Para eles, não haveria sentido dizer que algo deve ser, se o que se postula como devido não fosse valioso. Caridade, justiça, temperança e outras virtudes devem ser, enquanto valem. Carecessem de valor e não deveriam ser.

O dever ser hartmanniano tem os seguintes elementos: a) a existên­cia de um valor; b) o dever ser ideal do mesmo; c) a atualização de tal dever (dever ser atual); d) a existência de um ser capaz de realizar o va­lioso. O mundo real não é em si plenamente valioso, nem completamen­te desvalioso. Nele se realizam múltiplos valores e outros quedam irrea­lizados. Mas há sempre a possibilidade de novas realizações valorativas.

Mas como pode o homem realizar o valioso? Realizar o valioso con­siste, para o homem, num dever. E o dever impõe uma conduta teleoló­gica. Se quero acatar uma norma, devo converter tal acatamento em fi­nalidade de minha conduta. A realização dos valores se consuma atra­vés de um processo de dúplice etapa: a determinação primária e a de­terminação secundária. A primeira é a intuição; a segunda, a delibe­ração da vontade.

É verdade que o nexo teleológico é mais complexo do que o nexo causal. O nexo causal é a relação entre dois fenômenos, o primeiro dos quais, chamado causa, determina de forma necessária a produção do outro, chamado efeito. Já o nexo teleológico admite três momentos:

1. Postulação do fim. Alguém se propõe a realizar determinada fi­nalidade. É a projeção interior de seu atuar futuro.
2. Eleição dos meios. A realização dos fins pressupõe a seleção e emprego de procedimentos a eles conducentes: os meios.
3. Realização. Esta a etapa inscrita no fluxo do futuro. Aqui existe uma similitude entre o nexo causal e o nexo teleológico. O meio é causa e o fim é efeito.

Para bem apreender essa possibilidade, a criatura deve ter presente que a realização de fins não é um processo inflexível e imodificável, to­talmente fechado à intervenção de determinações heterogêneas e mais complexas.

"Se o homem é capaz de propor-se um alvo e alcançá-lo, isso se deve a que o acontecer causal não se orienta de maneira inexorável até uma meta estabelecida de antemão, senão que pode ser desviado, ao menos dentro de certos limites. Para desviá-lo só faz falta o conhecimento das relações entre os fenômenos. Isto é o que expressa o velho aforismo: à natureza não se domina, senão obedecendo-a. E obedecê-la é orien­tar suas forças na direção de nossos desígnios. "[9]

A realização individual de valores só se concebe numa visão de mundo em que coexistam a causalidade e a teleologia. Numa existência sem leis, em que tudo fosse fortuito e contingente, não haveria a possibilidade de estipulação de fins e de sua realização. E a pessoa deve ter consciência de que há um momento inicial de liberdade moral, sem o qual nada lhe será possível crescer em termos éticos.

TEXTO EXTRAÍDO DE: NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.55-60


[1] EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, Ética ... , cit., ideln, p. 46.
[2] JACQUES MONOD, "La science et ses valeurs", in Pour une éthique de Ia connaissance, La découverte, p. 146, apud JACQUELINE RUSS, op. cit .. p. 19.
[3] EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, Ética ..... , cit., idem, p. 217.
[4] EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, Ética ..... , cit., idem, p. 229.
[5] MAX SCHELER, O formalismo na Ética e a Ética Material Valorativa,citada por EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, Ética ... , cit., idem, p. 233.
[6] EDUARDO GARCÍA MÁ YNEZ, Ética ... , cit., idem, p. 246.
[7] ORTEGA Y GASSET, "Que são valores", in As etapas do cristianismo ao raciona!ismo e outros ensaios, Santiago do Chile: Editorial Pax, p. 56, apud EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, Ética ... , cit., idem, p. 247.
[8] HARTMANN, Ethik, p. 149, apud EDUARDO GARCÍAMÁYNEZ, Éti­ca ... , cit., idem, p. 256.
[9] EDUARDO GARCÍAMÁYNEZ, invocando HARTMANN, IN Ética..., cit, idem, p.266.

Senso moral e consciência moral


Muitas vezes, tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome. Ficamos sabendo que, em ou outros países e no nosso, milhares de pessoas, sobretudo crianças e velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos piedade. Sentimos indignação diante de tamanha injustiça (especialmente quando vemos o desperdício dos que não têm fome e vivem na abundância). Sentimos responsabilidade. Movidos pela solidariedade, participarmos de campanhas contra a fome. Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral.

Quantas vezes, levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção forte (medo, orgulho, ambição, vaidade, covardia), fazemos alguma coisa de que, depois, sentimos vergonha, remorso, culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente. Esses sentimentos também exprimem nosso senso moral.
Em muitas ocasiões, ficamos contentes e emocionados diante de uma pessoa cujas palavras e ações manifestam honestidade, honradez, espírito de justiça, altruísmo, mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios. Sentimos que há grandeza e dignidade nessa pessoa. Temos admiração por ela e desejamos imitá-la. Tais sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral.

Não raras vezes somos tomados pelo horror diante da violência: chacina de seres humanos e animais, linchamentos, assassinatos brutais, estupros, genocídio, torturas e suplícios. Com freqüência, ficamos indignados ao saber que um inocente foi injustamente acusado e condenado, enquanto o verdadeiro culpado permanece impune. Sentimos cólera diante do cinismo dos mentirosos, dos que usam outras pessoas corno instrumento para seus interesses para conseguir vantagens às custas da boa-fé de outros. Todos esses sentimentos também manifestam nosso senso moral.

Vivemos certas situações, ou sabemos que foram vividas por outros, como situações de extrema aflição e angústia. Assim, por exemplo, uma pessoa querida, com uma doença terminal, está viva apenas porque seu corpo está ligado a máquinas que a conservam. Suas dores são intoleráveis. Inconsciente, geme no sofrimento. Não seria melhor que descansasse em paz? Não seria preferível deixá-la morrer? Podemos desligar os aparelhos? Ou não temos o direito de fazê-lo? Que fazer? Qual a ação correta?

Uma jovem descobre que está grávida. Sente que seu corpo e seu espírito ainda não estão preparados para a gravidez. Sabe que seu parceiro, mesmo que deseje apoiá-la, é tão jovem e despreparado quanto ela e ambos não terão como responsabilizar-se plenamente pela gestação, pelo parto e pela criação de um filho. Ambos estão desorientados. Não sabem se poderão contar com o auxilio de suas famílias (se as tiverem).

Se ela for apenas estudante, terá que deixar a escola para trabalhar, a fim de pagar o parto e arcar com as despesas da criança. Sua vida e seu futuro mudarão para sempre. Se trabalhar, sabe que perderá o emprego, porque vive numa sociedade onde os patrões discriminam as mulheres grávidas, sobretudo as solteiras. Receia não contar com os amigos. Ao mesmo tempo, porém, deseja a criança, sonha com ela, mas teme dar-lhe uma vida de miséria e ser injusta com quem não pediu para nascer. Pode fazer um aborto? Deve fazê-lo?

Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente, recebe uma oferta de emprego, mas que exige que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego, mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deve recusá-lo e ver os seus filhos com fome e a mulher morrendo?

Um rapaz namora, há tempos, uma moça de quem gosta muito e é por ela correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se perdidamente e é correspondido. Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois amores simultâneos, ou estará traindo a ambos e a si mesmo? Deve magoar uma delas e a si mesmo, rompendo com uma para ficar com a outra? O amor exige uma única pessoa amada ou pode ser múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele lhes contar o que se passa? Ou deverá mentir para ambas? Que fazer? Se, enquanto está atormentado pela indecisão, um conhecido o vê ora com uma das mulheres, ora com a outra e, conhecendo uma delas, deverá contar a ela o que viu? Em nome da amizade, deve falar ou calar?

Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães numa mercearia. Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença para ele. Mas também vê a miséria e a fome da criança. Deve denunciá-la, julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para a policia, ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao homicídio? Que fazer?

Situações como essas - mais dramáticas ou menos dramáticas - surgem sempre em nossas vidas. Nossas dúvidas quanto à decisão a tomar não só manifestam nosso senso moral, mas também põem à prova nossa consciência moral, pois exigem que decidamos o que fazer, que justifiquemos para nós mesmos e para os outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as conseqüências delas, porque somos responsáveis por nossas opções.

Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso, contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e a decisões que conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros. Embora os conteúdos dos valores variem, podemos notar que estão referidos a um valor mais profundo, mesmo que apenas subentendido: o bom ou o bem. Os sentimentos e as ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal, também estão referidos a algo mais profundo e subentendido: nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade, seja por ficarmos contentes conosco mesmos, seja por recebermos a aprovação dos outros.

O senso e a consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos, intenções, decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva.

Extrato de: CHAUI, Marilena. A existência ética. In:_______. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1997, p. 334-336.

Como acontece a formação da consciência moral

Olírio Plínio Colombo 

Como se forma a consciência moral? Se não aceitamos a tese de Rousseau (a de que o ser humano nasce bom, mas é corrompido pela sociedade), então devemos encontrar elementos que nos permitam formar, no ser humano, qualidades que concretizem sua tendência para o bem. E isso através da família, da escola, das igrejas, dos partidos e, enfim, de toda a sociedade. 

Nós vamos utilizar a linguagem da psicanálise. Segundo a psicanálise o psiquismo humano é composto de três instâncias que são constituídas pelo Id, Ego e Superego. Segundo Freud, o ser humano nasce Id. O Id é o princípio do prazer, da libido, a busca do agradável e a rejeição do desagradável. 

O Id 

Por isso, o Id é egocêntrico, anti-social e narcisista. Não possui normas morais, pois é oposto a normas, leis e à reciprocidade. Sem disciplina e educação, o ser humano pode continuar assim por toda a vida, durante a qual só lhe interessará o prazer e utilizará o outro como objeto de seu egocentrismo prazeroso. Temos aí o psicopata, o assassino ou ladrão sem remorsos. É capaz de matar várias pessoas e, depois, ir almoçar tranqüilo. Só vê a si mesmo e quer sempre o bom e o melhor. É o homem infantil e perigoso porque não possui consciência moral e age sempre em proveito próprio. 

O Ego 

O Ego é constituído pelo princípio da realidade. É o psiquismo humano enquanto consciente ou ciente de que vive em sociedade, que conhece, trabalha, tem horário e é responsável. O Ego pode ser rígido demais e então a pessoa está sempre preocupada: trabalha e estuda, leva a vida por demais a sério e é muito sisuda, isto é, incapaz de brincar até com seus filhos. Mas também o Ego pode ser muito flexível e, nesse caso, a pessoa não é muito responsável. Muitas vezes ainda o Ego possui um caráter narcisista e aí estamos novamente no infantilismo. 

O Superego 

É formado pela censura, pelo princípio da restrição, pela proibição, pela medida, pela introjeção de normas morais, regras comuns, leis, ideais coletivos e preferência pelo interesse geral. 

A criança que não sofre nenhuma restrição é satisfeita em todos os desejos e caprichos tende a tornar-se um adulto sem normas, egoísta e anti-social. Sua vida, de modo geral, é pautada pela autopermissividade, isto é, só vê a si mesma e seus interesses particulares. Donde se conclui que a educação também consiste em restrição. Fazer tudo o que uma criança quer é criar um monstro. 

De outro lado, a restrição em excesso, a proibição muito extensa produz a inibição na pessoa humana. Ela sente que é proibida de ser. Isso a torna inibida, anti-social, autoritária e rígida demais nos seus julgamentos morais. É claro que a pessoa humana deve aprender o seu valor, sua dignidade. Precisa de auto-afirmação, mas não de excesso. 

Em geral há dois tipos de pessoas que são racistas e a favor da pena de morte ou da discriminação social: os que não possuem superego e aqueles que o tem, mas é forte demais. 

Na formação do superego é importante o equilíbrio. Mas onde está o equilíbrio e como administrá-lo? Os pais trabalham fora e a TV "trabalha" as crianças. A situação econômica do país deixa os pais em estado de pânico. O Estado brasileiro abandonou a educação. A creche e a escola maternal custam caro. O que fazer? 

Contudo, penso que a educação moral da criança deva começar com os jogos e o conhecimento e observância das leis de cada jogo. O início da formação da consciência moral é lúdica, provém do brinquedo. Aos poucos, através dos jogos, as crianças vão aprendendo seus direitos e deveres, os rudimentos do exercício da cidadania e o fato de conservarem os brinquedos limpos e bem guardados, porque são de todos, isto é o início da idéia da coisa pública. 



Importante, também, é o aprendizado das condições de uma vida democrática: exercício dos direitos e deveres, aplicação dos Direitos Humanos em casos concretos como o racismo, a discriminação social, etária etc. 

Agora, como fazer isso? É difícil dizer. De um lado, são exigidos conhecimentos teóricos e de outro práticos porque a ética, a formação moral, é uma ciência prática. Só sei dizer o seguinte: uma instituição sozinha pouco consegue. É preciso, nessa tarefa, a união da família, da escola, da sociedade e de todos os segmentos que compõem a sociedade como as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as associações de bairro, os meios de comunicação, as empresas, os clubes e aqueles que presidem o Estado através de sua lisura e honestidade moral. Mas isso, no Brasil, parece difícil, embora não impossível. 

Em todo caso, a formação da consciência moral envolve a criação de um povo, de uma nação com ideais coletivos como a honestidade, ideais de beleza, de justiça, de igualdade, liberdade e isonomia (a maior possível), bem como o patriotismo e a soberania, com o devido respeito e convivência cooperativa com outras nações. Por isso a formação da consciência moral é também consciência cívica e humanitária. E isso nos permite ver que é a igualdade que possibilita a liberdade e não vice-versa. 

No início, a formação da consciência moral é heterônoma (vem de fora). As crianças aprendem o que é bom e o que é mau a partir dos pais, dos professores, da sociedade da mídia. Ainda não sabem escolher, decidir por conta própria. Podem preferir um brinquedo a outro, ter um alimento preferencial etc. Mais tarde, mais ou menos aos 13 anos de idade mental, as pessoas vão formando suas próprias convicções assimilam experiências e assumem livremente as noções e prática do bem. Aí a consciência moral se torna autônoma (vem de dentro e está ligada ao discernimento e à liberdade da pessoa). E a autonomia é decisiva na formação da consciência moral porque se a pessoa não estiver convencida de suas atitudes e comportamentos ela estará sempre pronta a transgredir as normas e as leis. A convicção interior é necessária para a prática das normas e das leis. 

E essa passagem da imposição (heteronomia) para a liberdade (autonomia) dá segurança e endereço ao jovem. Tem parâmetros para organizar sua vida, possui idéias sociais e estrutura para enfrentar a existência. Se a formação moral permanecer somente na imposição do moralismo autoritário (caso do Brasil), os adolescentes sentem-se desnorteados, vazios e preenchem tais lacunas os principais vícios da sociedade na qual vivem. Por isso não adianta somente impor, ser autoritário. O melhor método, desde Sócrates e Platão, é o diálogo. 

O diálogo permite o progresso moral da humanidade. Primeiro, porque possibilita o crescimento consciente e livre e, portanto, responsável do comportamento moral dos indivíduos e grupos sociais. Segundo, porque a moralidade passa a ser uma questão não só individual, mas também social e assim os interesses individuais e os da sociedade convergem. Desse modo se forma uma tradição onde certas normas ultrapassadas são reformuladas segundo as circunstâncias e os novos tempos. 

Os agentes da formação da consciência moral 

Em primeiro lugar, eu diria que o principal agente na formação da consciência moral é o adolescente o qual, em torno dos 13 anos em diante, vai passando da heteronomia (normas impostas de fora) para a autonomia (normas assumidas consciente, livre e responsavelmente pelo próprio sujeito). No início, a criança age segundo normas morais porque assim agrada os pais e os professores e, dessa forma, conquista seu amor. 

Depois, introjeta padrões de comportamento, modelos de ação por convicção própria. 

Mas antes e durante essa transição há momentos de rebeldia e conflito. E isso é normal. 

Porque, de um lado, o fato de obedecer acomoda a vida do ser humano e a torna mais fácil. De outro lado, assumir a liberdade torna-se um momento difícil, cheio de conflitos e indecisões, incertezas e angústias. E, de fato, vivemos numa sociedade pluralista onde os grupos diversos possuem convicções políticas, estéticas, religiosas e morais diferentes. Aí as idéias morais, de bem e de mal, tornam-se uma questão grupal ou do foro íntimo das pessoas. De fato, o último critério (fundamental) para decidir o que é bom e o que é mau é a consciência moral da pessoa e não a cópia e a imitação. Só que, se as consciências morais individuais não criarem princípios morais coletivos, então podemos cair no relativismo ou, mesmo, na ausência de princípios morais. Cada um faz o que bem entende, desobedece as leis, lesa o próximo sempre que pode e não lhe interessa o bem comum. 

No Brasil, vivemos essa situação de individualismo extremo, de medo do outro, desconfiança no Judiciário, no Executivo, no Legislativo. Também nos protegemos dos outros com grandes cães, sistemas de alarme, armas e até fios elétricos. Vivemos no narcisismo familiar e em estado de defesa relativo à guerra civil camuflada. Não há consciência social. E não existem certas condições. Por exemplo, diálogo é fundamental e o exercício da responsabilidade (o adolescente não deve sentir medo de assumir seus comportamentos) e da liberdade verdadeira. No diálogo o adolescente irá aprender o conhecimento avaliativo e estimativo dos comportamentos, o que constitui o verdadeiro saber moral embora esse não seja só teórico mas, sobretudo, prático. 

A família 

O segundo agente formador é a família. E para essa tarefa ela necessita de um clima afetivo bom, onde pai, mãe e filhos formem um círculo de bem-querer mútuo, de sinceridade, ausência do medo, mesmo para abordar certos temas. É importante também que os pais, quando erram, reconheçam sua culpa diante dos filhos. Isso é decisivo porque dessa forma os filhos sabem que não somente eles erram e aprendem a reconhecer a autoridade dos pais e a amá-los. O farisaísmo, a hipocrisia e a mentira de nada servem, pois os filhos vêem na cara dos pais o descompasso entre seu comportamento e suas exigências. 

Os filhos introjetam o modelo dos pais e seus respectivos papéis. Por isso, não podem ser autoritários, mas gozarem de autoridade. Devem fazer com que os filhos distingam entre sentimento de culpa e culpa. Culpa é o reconhecimento do erro e sua possível reparação. O sentimento de culpa é interno, inconsciente, muitas vezes, e nasce por diversos motivos: os pais proíbem as crianças de serem, fundamentam a formação moral na proibição, escoram sua educação na reprimenda. Outras vezes os pais vivem em estado de guerra e quando muito referem-se um ao outro de modo impessoal e sem respeito. Muitos casais se separam. Outros vivem numa situação repleta de desvios comportamentais fora de casa. Ora, as crianças, inconscientemente, sentem-se culpadas pelo problema e com isso surge nelas o sentimento de culpa. 

Mas há outros problemas. Os pais trabalham, os filhos estudam e a casa se torna uma espécie de pensão, e pensão não é família. Depois, os Meios de Comunicação invadiram a casa e quem mais fala e mais autoridade possui é a TV, apresentando pseudo-valores, modelos estranhos à cultura local, ídolos, consumismo e muita besteira. Assim, os pais perdem seu lugar e sua função. 

Dessa forma, também, os pais da classe média estão numa situação de falência e sentem-se como uma espécie de geração-sanduíche. Estão entre duas fatias de pão. De um lado reconhecem que o passado, em muitos aspectos, é rejeitado pelos filhos e, de outro, sabem que o futuro não é claro, mas antes incerto e preocupante. Além disso, devido à recessão, achatamento salarial e o futuro econômico incerto, os pais entram em estado de pânico e sua cabeça tornou-se apenas uma máquina calculadora e, com as poucas economias, refugiam-se no narcisismo. Vêem apenas a si mesmos e não a sociedade e os problemas sociais. Não transmitem mais a reciprocidade social, mas somente o medo do outro. 

A escola 

A escola é outra instituição importante na formação moral. Ela pode servir como exercício da prática da cidadania, da consciência da idéia e do respeito à coisa pública. 

Mas ela não deve se deter numa exposição de normas morais, com caráter autoritário, dogmático e atrasado. As questões morais (éticas) e as normas devem partir de um debate que se fundamente nas perguntas dos jovens e na situação do país. Uma coisa é o professor(a) dizer o que deve ser (norma), outra coisa é o adolescente descobrir o dever ser. É necessário que, a partir de uma realidade como a nossa, os nossos estudantes formulem os princípios éticos, redijam um código. Isso lhes dá autonomia e o senso do dever. É importante discutir em que consiste a imoralidade e a moralidade, não se fixar obsessivamente na questão sexual (não é o problema moral mais importante), mas ater-se às coisas mais decisivas. 

É pena que a escola parece ter sido abandonada pelo Estado. As poucas que existem são barracos e os professores são mal remunerados, grande parte dos alunos subnutridos e praticamente incapazes para o aprendizado, para o trabalho e para a vida social. Estão no caminho do lumpesinato, do crime das sociedades paralelas. Além disso, mesmo nas escolas particulares, muitos professores não se preocupam com a formação moral, cívica e política (não-partidária). 

A sociedade 

Uma quarta instituição que pode ser formadora de consciência moral do jovem é a sociedade. Mas, para isso, ela deve possuir objetivos comuns, interesses e ideais coletivos, valores éticos, regras comuns, poucas leis, mas observadas por todos. Onde essas coisas acontecem, há sociedade. Onde não, só temos anti-sociedade, sociedades paralelas e guerra civil camuflada. É importante também o bom exemplo das autoridades, a tentativa honesta da solução dos problemas e a união do discurso com a palavra. 

Por isso, não vou falar do Estado brasileiro porque ele não procede e não pertence à sociedade civil como um todo. É propriedade das elites e serve para cobrar impostos e doar esse dinheiro aos grandes empresários nacionais e estrangeiros. É uma entidade deformadora e até o dia em que não for tomado e formulado a partir da política que representa a sociedade civil, como um todo é carta fora do baralho. Não é criador de ideais coletivos, de princípios éticos e de leis válidas para todos, não é juiz, mas algoz das causas dos menos favorecidos. Isso é afirmado embora reconheça que dentro dos aparelhos do Estado brasileiro existem pessoas e agências que trabalham de modo excelente. 

Com um Estado irracional e anti-social e outros problemas não apontados, o brasileiro criou a seu respeito uma imagem negativa, de incapacidade, de passividade e acomodação, de desinteresse pela formação moral, de preferência pela malandragem, de desprezo pelo trabalho (proveniente do senhor da casa grande), pelo jogo, pela sorte e por uma vida imediatista, oportunista, inobservância e burla das leis e de mútua desconfiança. Onde não existe nada em comum, o que pode acontecer senão a ausência da cidadania, o desprezo da coisa pública, pelo trabalho e pelo patriotismo? E isso é, profundamente, a morte de uma nação e o auto-aniquilamento dos indivíduos através da perda de sua dignidade e do desinteresse social. 

COLOMBO, Olírio Plínio. Pistas para filosofar (I). Temas de Antropologia. Porto Alegre: Evangraf, 1997.)

O fenômeno da intertextualidade


A intertextualidade é um tema que tem ocupado o interesse de pesquisadores de distintas perspectivas teóricas. Falar de intertextualidade pressupõe partir de uma concepção de texto, conceito que, segundo Koch, Bentes e Cavalcante (2007), não é de consenso nem entre as disciplinas teóricas que dele tratam, nem no interior da própria Linguística Textual, em cujo contexto vem se transformando desde a segunda metade dos anos 1960, quando essa disciplina tomou corpo nos estudos linguísticos. Assim, para efeito do presente trabalho, adotaremos o conceito de texto que tem se firmado na Linguística Textual a partir dos anos 1990, quando da adoção do sociocognitivismo e do interacionismo bakhtiniano, que prevê cada texto como constituído pela presença do outro, naquilo que dizemos/escrevemos, ou ouvimos/lemos: o texto como lugar de constituição e de interação de sujeitos sociais, como evento, portanto, em que convergem ações linguísticas, cognitivas e sociais [...] por meio das quais se constroem interativamente os objetos de discurso e as múltiplas propostas de sentidos, como função de escolhas operadas pelos co-enunciadores [...] construto histórico e social, extremamente complexo e multifacetado (KOCH, 2002, p.9).

Introduzido na década de 1970 pela Teoria Literária, através da crítica francesa Kristeva (1974), e tendo sido estudado sob outros pontos de vista teóricos como a Análise do Discurso e a Linguística Antropológica, o termo intertextualidade pode, segundo o dicionário de Trask (2004, apud KOCH, BENTES; CAVALCANTE, 2007, p.13) “ser aplicado aos casos célebres em que uma obra literária faz alusão a uma outra obra literária”, não se referindo apenas a textos que remetem diretamente a outros já produzidos e citados, mas a todo o processamento de ordem cognitiva na produção e recepção de sentidos.

Sob esse viés, Koch, Bentes e Cavalcante (2007), que tomaremos como base para as considerações que seguem, postulam a existência de duas grandes categorias de intertextualidade, abordando-a nos termos de um diálogo: a intertextualidade em sentido amplo (lato sensu), constitutiva de Linguagem em (Dis)curso, todo e qualquer discurso, e a intertextualidade em sentido restrito (stricto sensu), atestada pela presença de um intertexto, que pode ser repensada em termos da seguinte recategorização: temática, estilística, explícita, implícita e autotextualidade.

A intertextualidade em sentido amplo é um princípio teórico norteador e uma categoria possível de ser mobilizada para a análise dos processos de produção e recepção de textos. No que se refere à produção, postulas-se que o produtor do texto (diferentemente de um caso específico de recepção, como o da análise textual), nem sempre tem consciência sobre o tipo de diálogo entre textos que ele põe em funcionamento, já que não podemos construir um texto sem nos ligarmos a outros previamente enunciados (BAKHTIN, [1977] 1981) – seja pela manipulação de determinados intertextos (textos efetivamente presentes), seja por meio da manipulação de modelos, os gêneros do discurso.

Assim, para falar desse princípio de intertextualidade, diversos autores, sob diferentes perspectivas teóricas, recorrem a designações específicas, que no fundo remetem a um mesmo fenômeno: mosaico de citações (KRISTEVA, 1974), intertexto (GREIMAS, 1966), diálogo entre personalidades (BAKHTIN, [1979] 1997), resposta direta ou indireta (PÊCHEUX, 1969), já-dito (GRÉSILLON; MAINGUENEAU, 1984), diferença (VERÓN, 1980) e heterogeneidade (AUTHIER-REVUZ, 2004).

No limite entre a intertextualidade em sentido amplo e a intertextualidade em sentido restrito, estão, segundo as referidas autoras, a intertextualidade (inter)genérica e a intertextualidade tipológica.

A intertextualidade (inter)genérica se dá quando o produtor do texto, contando com o conhecimento prévio dos interlocutores a respeito dos gêneros textuais possíveis na nossa sociedade, apresenta, no lugar próprio de determinada prática social, um gênero pertencente a uma outra, com o objetivo de produzir determinados efeitos de sentido. Marcuschi (2002) chamou isso de “configuração híbrida”, ou seja, quando um gênero exerce a função de outro – como ocorre, por exemplo, com o uso de fábulas, contos de fada, cartas etc. em colunas de jornais, funcionando como artigos de opinião, ou como gêneros irônicos ou argumentativos tal como as charges políticas. Nesses casos, a mobilização de modelos cognitivos de contexto (VAN DIJK, 1983) – responsáveis pela competência metagenérica, que possibilita o reconhecimento das relações intertextuais de semelhança entre textos de um mesmo gênero, no que diz respeito à forma composicional, ao conteúdo temático e ao estilo – é essencial para a detecção, pelo interlocutor, da ironia, da crítica, do humor e, portanto, para a construção de um sentido que se aproxime da proposta do produtor do texto. Caberá a ele fazer esse exercício para descobrir os intertextos nele presentes.

Os modelos de contexto são usados para monitorar os eventos comunicativos. Eles representam intenções, propósitos, expectativas, opiniões e outras crenças dos interlocutores sobre a interação em curso, ou sobre o texto que está sendo lido ou escrito, bem como sobre as propriedades do contexto (tais como tempo, lugar, circunstâncias, condições, objetos e outros fatores situacionais) que possam ser relevantes para a realização adequada do discurso. Encerram todo o conhecimento sociointeracional mobilizado nos diversos contextos interacionais, inclusive o conhecimento relativo ao formato, estilo, tipo e conteúdo dos diversos gêneros textuais e sua adequação aos múltiplos tipos de práticas sociais.

A intertextualidade tipológica, por sua vez, decorre do fato de se poder reconhecer um conjunto de características comuns entre determinadas sequências ou tipos textuais (narrativos, expositivos, argumentativos etc.), em termos de estruturação, seleção lexical, uso de tempos verbais, advérbios (de tempo, lugar, modo etc.) e outros elementos dêiticos, e assim agrupá-las em uma determinada classe. É pela recorrente representação na memória de tais características que os falantes constroem modelos mentais tipológicos específicos (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981), as superestruturas (VAN DIJK, 1983), que vão lhes permitir reconhecer sequências de diversos tipos.

Cada gênero seleciona para a sua constituição uma ou algumas dessas sequências, o que faz com que um conto, por exemplo, apresente, ao lado das sequências narrativas responsáveis pelo enredo, sequências descritivas com apresentação de características de ambientes e personagens e sequências expositivas com apartes do narrador.

A par da intertextualidade em sentido amplo, a intertextualidade em sentido restrito ocorre quando em um texto se insere outro texto, anterior e efetivamente produzido, que faz parte da memória discursiva dos interlocutores, e com o qual estabelece algum tipo de relação. Trata-se, pois, de uma retextualização (MARCUSCHI, 2000), que implica uma alteração da força ilocucionária e do efeito perlocucionário do texto de origem. Nessa ótica, diversos tipos de intertextualidade têm sido propostos pelos estudiosos, cada qual com características próprias, entre as quais as principais: intertextualidade temática, intertextualidade estilística, intertextualidade explícita, intertextualidade implícita e autotextualidade.

A intertextualidade temática é encontrada entre textos que partilham os mesmos temas, como, por exemplo, as matérias jornalísticas de um mesmo dia ou período, os textos literários de uma mesma escola, os textos acadêmicos de uma mesma área ou corrente do conhecimento, as histórias em quadrinhos de um mesmo autor, as canções de um mesmo compositor, um livro e seu filme, as várias encenações de uma peça de teatro etc.

Já a intertextualidade estilística ocorre quando se repetem, imitam, parodiam certos estilos ou variedades linguísticas em um texto, em função de diversos objetivos, como é o caso da reprodução da linguagem bíblica, de jargões profissionais, de dialetos, do estilo de um determinado gênero, autor ou esfera de atividade humana.

Tem-se intertextualidade explícita quando no próprio texto se faz menção ao intertexto, ou seja, quando outro texto é citado e atribuído a outro enunciador, reportado como tendo sido dito por outro. É o caso das traduções, citações, referências e menções; ou do recurso ao argumento de autoridade, para dar maior credibilidade ao que se diz; ou das retomadas do texto do parceiro, em situações de interação face a face, para encadear sobre ele, contraditá-lo, ou demonstrar interesse na interação.

A intertextualidade implícita, por outro lado, ocorre quando se introduz intertexto alheio no próprio texto sem que haja qualquer menção explícita da fonte, seja com o objetivo de seguir-lhe a orientação argumentativa, com paráfrases mais ou menos próximas do texto fonte – intertextualidade das semelhanças (SANT’ANNA, 1985) ou captação (GRÉSILLON; MAINGUENEAU, 1984) –, seja de problematizá-la com enunciados parodísticos e/ou irônicos, apropriações, reformulações de tipo concessivo, inversão de polaridade afirmação/negação, entre outros – intertextualidade das diferenças, para Sant’Anna, e subversão, para Grésillon e Maingueneau.

No caso da intertextualidade implícita com valor de captação, o produtor do texto espera que o leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer, durante o processamento textual, a presença do intertexto, pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva. Em casos de plágio, essa recuperação é indesejável por parte do produtor, que espera que o interlocutor não tenha em sua memória o intertexto e sua fonte, ou não venha a proceder à sua ativação, razão pela qual procura camuflá-lo por meio de pequenas operações de ordem linguística, na materialidade linguística do texto, como apagamentos, substituições de termos, alterações de ordem sintática, transposições etc.

Em se tratando de intertextualidade implícita com valor de subversão, é vital a descoberta do texto-fonte pelo interlocutor, para a produção do sentido, embora não haja garantia de que isso ocorra – se não ocorrer, estará prejudicada a construção do sentido pretendido.

Nesses casos, trata-se de fontes de intertextos que fazem parte da memória coletiva da comunidade falante: trechos de obras literárias, músicas populares, bordões de programas humorísticos, provérbios, ditos populares etc.

Por fim, cabe a categoria de autotextualidade, atribuída ao caso de um autor ou compositor inserir em seu texto trechos de outras obras de sua autoria, muito embora haja teóricos que não a reconheçam como sendo intertextualidade, reservando este termo para os casos em que se recorre a intertextos alheios e não próprios. As autoras nas quais nos baseamos não distinguem, contudo, tais categorias.

A noção de détournement, formulada por Grésillon e Maingueneau (1984), se ampliada, poderia, segundo Koch, Bentes e Cavalcante (2007), dar conta de uma grande parte de casos de intertextualidade implícita: consiste em se produzir um enunciado que possui marcas de uma enunciação proverbial, mas que não pertence ao estoque de provérbios conhecidos. Seu valor é militante (não meramente lúdico), pois sempre visa a orientar a construção de novos sentidos pelo interlocutor, dando autoridade ao intertexto (captação) ou destituindo-o de tal autoridade  (ironizando-o, contraditando-o, reorientando-lhe o sentido etc.), em nome de interesses das mais diversas ordens (subversão). O détournement ocorre por meio de operações linguísticas de várias espécies, como substituição (Quem espera nunca alcança), adição (Devagar se vai ao longe, mas leva muito tempo), supressão (Para bom entendedor, meia palavra bas) ou transposição (Aja duas vezes antes de pensar). Sua maior frequência de ocorrência está na publicidade, no humor, na música popular e em charges políticas, e seu valor argumentativo vai depender, também, do cotexto e do entorno visual (ilustrações, gráficos), em função do contexto situacional mais amplo em que se insere.

Finalmente, uma pequena palavra sobre as relações entre intertextualidade e polifonia, segundo as autoras citadas. Há entre ambas uma relação de inclusão: a polifonia engloba todos os casos de intertextualidade, mas seu espectro é bem mais amplo que o desta, pois a intertextualidade requer a presença de um intertexto. O conceito de polifonia, tal como proposto por Ducrot (1980), a partir de Bakhtin, diz respeito a que se representem, ou encenem, em dado texto, perspectivas ou pontos de vista representados por enunciadores reais ou virtuais diferentes, sem que se trate, necessariamente, de textos efetivamente existentes. A polifonia, portanto, é um fato constante no discurso.

Acreditamos que essa perspectiva adotada por Koch, Bentes e Cavalcante (2007), de compreender a intertextualidade em termos de diálogo, que aqui retomamos a título de fundamentação teórica para a análise que segue, é bastante produtiva, pois, ao mesmo tempo em que explicita as diferenças, revela as semelhanças de pontos de vista.

RUIZ; FARIA – A intertextualidade no gênero resenha
Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 12, n. 1, p. 99-128, jan./abr. 2012

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