A intertextualidade é um tema que tem ocupado o
interesse de pesquisadores de distintas perspectivas teóricas. Falar de
intertextualidade pressupõe partir de uma concepção de texto, conceito que,
segundo Koch, Bentes e Cavalcante (2007), não é de consenso nem entre as
disciplinas teóricas que dele tratam, nem no interior da própria Linguística Textual,
em cujo contexto vem se transformando desde a segunda metade dos anos 1960,
quando essa disciplina tomou corpo nos estudos linguísticos. Assim, para efeito
do presente trabalho, adotaremos o conceito de texto que tem se firmado na
Linguística Textual a partir dos anos 1990, quando da adoção do
sociocognitivismo e do interacionismo bakhtiniano, que prevê cada texto como
constituído pela presença do outro, naquilo que dizemos/escrevemos, ou
ouvimos/lemos: o texto como lugar de constituição e de interação de sujeitos
sociais, como evento, portanto, em que convergem ações linguísticas, cognitivas
e sociais [...] por meio das quais se constroem interativamente os objetos de
discurso e as múltiplas propostas de sentidos, como função de escolhas operadas
pelos co-enunciadores [...] construto histórico e social, extremamente complexo
e multifacetado (KOCH, 2002, p.9).
Introduzido na década de 1970 pela Teoria Literária, através da
crítica francesa Kristeva (1974), e tendo sido estudado sob outros pontos de vista
teóricos como a Análise do Discurso e a Linguística Antropológica, o termo intertextualidade pode, segundo
o dicionário de Trask (2004, apud
KOCH, BENTES; CAVALCANTE, 2007, p.13) “ser
aplicado aos casos célebres em que uma obra literária faz alusão a uma outra
obra literária”, não se referindo apenas a textos que remetem diretamente a
outros já produzidos e citados, mas a todo o processamento de ordem cognitiva
na produção e recepção de sentidos.
Sob esse viés, Koch, Bentes e Cavalcante (2007), que tomaremos como
base para as considerações que seguem, postulam a existência de duas grandes
categorias de intertextualidade, abordando-a nos termos de um diálogo: a intertextualidade em sentido amplo (lato sensu), constitutiva de Linguagem em (Dis)curso, todo e qualquer discurso,
e a intertextualidade em sentido restrito
(stricto sensu), atestada pela presença de um intertexto, que
pode ser repensada em termos da seguinte recategorização: temática, estilística, explícita, implícita e autotextualidade.
A intertextualidade em sentido amplo é um princípio teórico norteador e uma categoria possível de ser
mobilizada para a análise dos processos de produção e recepção de textos. No
que se refere à produção, postulas-se que o produtor do texto (diferentemente
de um caso específico de recepção, como o da análise textual), nem sempre tem
consciência sobre o tipo de diálogo entre textos que ele põe em funcionamento,
já que não podemos construir um texto sem nos ligarmos a outros previamente
enunciados (BAKHTIN, [1977] 1981) – seja pela manipulação de determinados
intertextos (textos efetivamente presentes), seja por meio da manipulação de
modelos, os gêneros do discurso.
Assim, para falar desse princípio de intertextualidade, diversos
autores, sob diferentes perspectivas teóricas, recorrem a designações
específicas, que no fundo remetem a um mesmo fenômeno: mosaico de citações (KRISTEVA,
1974), intertexto (GREIMAS, 1966), diálogo entre
personalidades (BAKHTIN, [1979] 1997), resposta direta ou indireta (PÊCHEUX, 1969), já-dito (GRÉSILLON; MAINGUENEAU, 1984), diferença
(VERÓN, 1980) e heterogeneidade (AUTHIER-REVUZ,
2004).
No limite entre a intertextualidade em sentido amplo e a
intertextualidade em sentido restrito, estão, segundo as referidas autoras, a
intertextualidade (inter)genérica e a intertextualidade tipológica.
A intertextualidade (inter)genérica se dá quando o produtor do texto, contando com o conhecimento prévio
dos interlocutores a respeito dos gêneros textuais possíveis na nossa
sociedade, apresenta, no lugar próprio de determinada prática social, um gênero
pertencente a uma outra, com o objetivo de produzir determinados efeitos de
sentido. Marcuschi (2002) chamou isso de “configuração híbrida”, ou seja,
quando um gênero exerce a função de outro – como ocorre, por exemplo, com o uso
de fábulas, contos de fada, cartas etc. em colunas de jornais, funcionando como
artigos de opinião, ou como gêneros irônicos ou argumentativos tal como as
charges políticas. Nesses casos, a mobilização de modelos cognitivos de
contexto (VAN DIJK, 1983) – responsáveis pela competência metagenérica, que
possibilita o reconhecimento das relações intertextuais de semelhança entre
textos de um mesmo gênero, no que diz respeito à forma composicional, ao conteúdo
temático e ao estilo – é essencial para a detecção, pelo interlocutor, da
ironia, da crítica, do humor e, portanto, para a construção de um sentido que
se aproxime da proposta do produtor do texto. Caberá a ele fazer esse exercício
para descobrir os intertextos nele presentes.
Os modelos de contexto são usados para monitorar os eventos
comunicativos. Eles representam intenções, propósitos, expectativas, opiniões e
outras crenças dos interlocutores sobre a interação em curso, ou sobre o texto
que está sendo lido ou escrito, bem como sobre as propriedades do contexto
(tais como tempo, lugar, circunstâncias, condições, objetos e outros fatores
situacionais) que possam ser relevantes para a realização adequada do discurso.
Encerram todo o conhecimento sociointeracional mobilizado nos diversos contextos
interacionais, inclusive o conhecimento relativo ao formato, estilo, tipo e
conteúdo dos diversos gêneros textuais e sua adequação aos múltiplos tipos de
práticas sociais.
A intertextualidade tipológica, por sua vez, decorre do fato de se poder
reconhecer um conjunto de características comuns entre determinadas sequências
ou tipos textuais (narrativos, expositivos, argumentativos etc.), em termos de
estruturação, seleção lexical, uso de tempos verbais, advérbios (de tempo,
lugar, modo etc.) e outros elementos dêiticos, e assim agrupá-las em uma
determinada classe. É pela recorrente representação na memória de tais
características que os falantes constroem modelos mentais tipológicos específicos
(BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981), as superestruturas (VAN DIJK, 1983), que vão lhes
permitir reconhecer sequências de diversos tipos.
Cada gênero seleciona para a sua constituição
uma ou algumas dessas sequências, o que faz com que um conto, por exemplo, apresente,
ao lado das sequências narrativas responsáveis pelo enredo, sequências descritivas
com apresentação de características de ambientes e personagens e sequências
expositivas com apartes do narrador.
A par da intertextualidade em sentido amplo, a intertextualidade em sentido restrito ocorre quando em um texto se insere outro texto, anterior e efetivamente
produzido, que faz parte da memória discursiva dos interlocutores, e com o qual
estabelece algum tipo de relação. Trata-se, pois, de uma retextualização
(MARCUSCHI, 2000), que implica uma alteração da força ilocucionária e do efeito
perlocucionário do texto de origem. Nessa ótica, diversos tipos de
intertextualidade têm sido propostos pelos estudiosos, cada qual com
características próprias, entre as quais as principais: intertextualidade
temática, intertextualidade estilística, intertextualidade explícita,
intertextualidade implícita e autotextualidade.
A intertextualidade temática é encontrada entre textos que partilham os
mesmos temas, como, por exemplo, as matérias jornalísticas de um mesmo dia ou
período, os textos literários de uma mesma escola, os textos acadêmicos de uma
mesma área ou corrente do conhecimento, as histórias em quadrinhos de um mesmo
autor, as canções de um mesmo compositor, um livro e seu filme, as várias
encenações de uma peça de teatro etc.
Já a intertextualidade estilística ocorre quando se repetem, imitam, parodiam certos estilos ou
variedades linguísticas em um texto, em função de diversos objetivos, como é o
caso da reprodução da linguagem bíblica, de jargões profissionais, de dialetos,
do estilo de um determinado gênero, autor ou esfera de atividade humana.
Tem-se intertextualidade explícita quando no próprio texto se faz menção ao intertexto, ou seja, quando
outro texto é citado e atribuído a outro enunciador, reportado como tendo sido
dito por outro. É o caso das traduções, citações, referências e menções; ou do
recurso ao argumento de autoridade, para dar maior credibilidade ao que se diz;
ou das retomadas do texto do parceiro, em situações de interação face a face,
para encadear sobre ele, contraditá-lo, ou demonstrar interesse na interação.
A intertextualidade implícita, por outro lado, ocorre quando se introduz
intertexto alheio no próprio texto sem que haja qualquer menção explícita da
fonte, seja com o objetivo de seguir-lhe a orientação argumentativa, com
paráfrases mais ou menos próximas do texto fonte – intertextualidade das semelhanças (SANT’ANNA, 1985) ou captação (GRÉSILLON; MAINGUENEAU, 1984) –, seja de
problematizá-la com enunciados parodísticos e/ou irônicos, apropriações,
reformulações de tipo concessivo, inversão de polaridade afirmação/negação,
entre outros – intertextualidade
das diferenças, para Sant’Anna, e subversão, para Grésillon e Maingueneau.
No caso da intertextualidade implícita com valor
de captação, o produtor do texto espera que o
leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer, durante o processamento textual, a
presença do intertexto, pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva.
Em casos de plágio, essa recuperação é indesejável por parte do produtor, que
espera que o interlocutor não tenha em sua memória o intertexto e sua fonte, ou
não venha a proceder à sua ativação, razão pela qual procura camuflá-lo por meio
de pequenas operações de ordem linguística, na materialidade linguística do
texto, como apagamentos, substituições de termos, alterações de ordem sintática,
transposições etc.
Em se tratando de intertextualidade implícita
com valor de subversão, é vital a descoberta do texto-fonte pelo
interlocutor, para a produção do sentido, embora não haja garantia de que isso
ocorra – se não ocorrer, estará prejudicada a construção do sentido pretendido.
Nesses casos, trata-se de fontes de intertextos que fazem parte da memória
coletiva da comunidade falante: trechos de obras literárias, músicas populares,
bordões de programas humorísticos, provérbios, ditos populares etc.
Por fim, cabe a categoria de autotextualidade,
atribuída ao caso de um autor ou compositor
inserir em seu texto trechos de outras obras de sua autoria, muito embora haja
teóricos que não a reconheçam como sendo intertextualidade, reservando este termo
para os casos em que se recorre a intertextos alheios e não próprios. As
autoras nas quais nos baseamos não distinguem, contudo, tais categorias.
A noção de détournement, formulada por Grésillon e Maingueneau (1984), se ampliada, poderia,
segundo Koch, Bentes e Cavalcante (2007), dar
conta de uma grande parte de casos de intertextualidade implícita: consiste em
se produzir um enunciado que possui marcas de uma enunciação proverbial, mas
que não pertence ao estoque de provérbios conhecidos. Seu valor é militante
(não meramente lúdico), pois sempre visa a orientar a construção de novos
sentidos pelo interlocutor, dando autoridade ao intertexto (captação) ou
destituindo-o de tal autoridade (ironizando-o,
contraditando-o, reorientando-lhe o sentido etc.), em nome de interesses das
mais diversas ordens (subversão). O détournement ocorre por meio de operações linguísticas de várias espécies, como substituição
(Quem espera nunca
alcança), adição (Devagar se vai ao longe, mas leva
muito tempo), supressão (Para bom entendedor, meia palavra bas) ou transposição (Aja duas vezes antes de pensar). Sua maior frequência de ocorrência está na
publicidade, no humor, na música popular e em charges políticas, e seu valor
argumentativo vai depender, também, do cotexto e do entorno visual
(ilustrações, gráficos), em função do contexto situacional mais amplo em que se
insere.
Finalmente, uma pequena palavra sobre as
relações entre intertextualidade e polifonia, segundo as autoras citadas. Há entre ambas uma relação de inclusão: a
polifonia engloba todos os casos de intertextualidade, mas seu espectro é bem
mais amplo que o desta, pois a intertextualidade requer a presença de um
intertexto. O conceito de polifonia, tal como proposto por Ducrot (1980), a
partir de Bakhtin, diz respeito a que se representem, ou encenem, em dado
texto, perspectivas ou pontos de vista representados por enunciadores reais ou
virtuais diferentes, sem que se trate, necessariamente, de textos efetivamente existentes.
A polifonia, portanto, é um fato constante no discurso.
Acreditamos que essa perspectiva adotada por
Koch, Bentes e Cavalcante (2007), de compreender a intertextualidade em termos
de diálogo, que aqui retomamos a título de fundamentação teórica para a análise
que segue, é bastante produtiva, pois, ao mesmo tempo em que explicita as
diferenças, revela as semelhanças de pontos de vista.
RUIZ;
FARIA – A intertextualidade no gênero resenha
Linguagem
em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 12, n. 1, p. 99-128, jan./abr. 2012
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