quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O fenômeno da intertextualidade


A intertextualidade é um tema que tem ocupado o interesse de pesquisadores de distintas perspectivas teóricas. Falar de intertextualidade pressupõe partir de uma concepção de texto, conceito que, segundo Koch, Bentes e Cavalcante (2007), não é de consenso nem entre as disciplinas teóricas que dele tratam, nem no interior da própria Linguística Textual, em cujo contexto vem se transformando desde a segunda metade dos anos 1960, quando essa disciplina tomou corpo nos estudos linguísticos. Assim, para efeito do presente trabalho, adotaremos o conceito de texto que tem se firmado na Linguística Textual a partir dos anos 1990, quando da adoção do sociocognitivismo e do interacionismo bakhtiniano, que prevê cada texto como constituído pela presença do outro, naquilo que dizemos/escrevemos, ou ouvimos/lemos: o texto como lugar de constituição e de interação de sujeitos sociais, como evento, portanto, em que convergem ações linguísticas, cognitivas e sociais [...] por meio das quais se constroem interativamente os objetos de discurso e as múltiplas propostas de sentidos, como função de escolhas operadas pelos co-enunciadores [...] construto histórico e social, extremamente complexo e multifacetado (KOCH, 2002, p.9).

Introduzido na década de 1970 pela Teoria Literária, através da crítica francesa Kristeva (1974), e tendo sido estudado sob outros pontos de vista teóricos como a Análise do Discurso e a Linguística Antropológica, o termo intertextualidade pode, segundo o dicionário de Trask (2004, apud KOCH, BENTES; CAVALCANTE, 2007, p.13) “ser aplicado aos casos célebres em que uma obra literária faz alusão a uma outra obra literária”, não se referindo apenas a textos que remetem diretamente a outros já produzidos e citados, mas a todo o processamento de ordem cognitiva na produção e recepção de sentidos.

Sob esse viés, Koch, Bentes e Cavalcante (2007), que tomaremos como base para as considerações que seguem, postulam a existência de duas grandes categorias de intertextualidade, abordando-a nos termos de um diálogo: a intertextualidade em sentido amplo (lato sensu), constitutiva de Linguagem em (Dis)curso, todo e qualquer discurso, e a intertextualidade em sentido restrito (stricto sensu), atestada pela presença de um intertexto, que pode ser repensada em termos da seguinte recategorização: temática, estilística, explícita, implícita e autotextualidade.

A intertextualidade em sentido amplo é um princípio teórico norteador e uma categoria possível de ser mobilizada para a análise dos processos de produção e recepção de textos. No que se refere à produção, postulas-se que o produtor do texto (diferentemente de um caso específico de recepção, como o da análise textual), nem sempre tem consciência sobre o tipo de diálogo entre textos que ele põe em funcionamento, já que não podemos construir um texto sem nos ligarmos a outros previamente enunciados (BAKHTIN, [1977] 1981) – seja pela manipulação de determinados intertextos (textos efetivamente presentes), seja por meio da manipulação de modelos, os gêneros do discurso.

Assim, para falar desse princípio de intertextualidade, diversos autores, sob diferentes perspectivas teóricas, recorrem a designações específicas, que no fundo remetem a um mesmo fenômeno: mosaico de citações (KRISTEVA, 1974), intertexto (GREIMAS, 1966), diálogo entre personalidades (BAKHTIN, [1979] 1997), resposta direta ou indireta (PÊCHEUX, 1969), já-dito (GRÉSILLON; MAINGUENEAU, 1984), diferença (VERÓN, 1980) e heterogeneidade (AUTHIER-REVUZ, 2004).

No limite entre a intertextualidade em sentido amplo e a intertextualidade em sentido restrito, estão, segundo as referidas autoras, a intertextualidade (inter)genérica e a intertextualidade tipológica.

A intertextualidade (inter)genérica se dá quando o produtor do texto, contando com o conhecimento prévio dos interlocutores a respeito dos gêneros textuais possíveis na nossa sociedade, apresenta, no lugar próprio de determinada prática social, um gênero pertencente a uma outra, com o objetivo de produzir determinados efeitos de sentido. Marcuschi (2002) chamou isso de “configuração híbrida”, ou seja, quando um gênero exerce a função de outro – como ocorre, por exemplo, com o uso de fábulas, contos de fada, cartas etc. em colunas de jornais, funcionando como artigos de opinião, ou como gêneros irônicos ou argumentativos tal como as charges políticas. Nesses casos, a mobilização de modelos cognitivos de contexto (VAN DIJK, 1983) – responsáveis pela competência metagenérica, que possibilita o reconhecimento das relações intertextuais de semelhança entre textos de um mesmo gênero, no que diz respeito à forma composicional, ao conteúdo temático e ao estilo – é essencial para a detecção, pelo interlocutor, da ironia, da crítica, do humor e, portanto, para a construção de um sentido que se aproxime da proposta do produtor do texto. Caberá a ele fazer esse exercício para descobrir os intertextos nele presentes.

Os modelos de contexto são usados para monitorar os eventos comunicativos. Eles representam intenções, propósitos, expectativas, opiniões e outras crenças dos interlocutores sobre a interação em curso, ou sobre o texto que está sendo lido ou escrito, bem como sobre as propriedades do contexto (tais como tempo, lugar, circunstâncias, condições, objetos e outros fatores situacionais) que possam ser relevantes para a realização adequada do discurso. Encerram todo o conhecimento sociointeracional mobilizado nos diversos contextos interacionais, inclusive o conhecimento relativo ao formato, estilo, tipo e conteúdo dos diversos gêneros textuais e sua adequação aos múltiplos tipos de práticas sociais.

A intertextualidade tipológica, por sua vez, decorre do fato de se poder reconhecer um conjunto de características comuns entre determinadas sequências ou tipos textuais (narrativos, expositivos, argumentativos etc.), em termos de estruturação, seleção lexical, uso de tempos verbais, advérbios (de tempo, lugar, modo etc.) e outros elementos dêiticos, e assim agrupá-las em uma determinada classe. É pela recorrente representação na memória de tais características que os falantes constroem modelos mentais tipológicos específicos (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981), as superestruturas (VAN DIJK, 1983), que vão lhes permitir reconhecer sequências de diversos tipos.

Cada gênero seleciona para a sua constituição uma ou algumas dessas sequências, o que faz com que um conto, por exemplo, apresente, ao lado das sequências narrativas responsáveis pelo enredo, sequências descritivas com apresentação de características de ambientes e personagens e sequências expositivas com apartes do narrador.

A par da intertextualidade em sentido amplo, a intertextualidade em sentido restrito ocorre quando em um texto se insere outro texto, anterior e efetivamente produzido, que faz parte da memória discursiva dos interlocutores, e com o qual estabelece algum tipo de relação. Trata-se, pois, de uma retextualização (MARCUSCHI, 2000), que implica uma alteração da força ilocucionária e do efeito perlocucionário do texto de origem. Nessa ótica, diversos tipos de intertextualidade têm sido propostos pelos estudiosos, cada qual com características próprias, entre as quais as principais: intertextualidade temática, intertextualidade estilística, intertextualidade explícita, intertextualidade implícita e autotextualidade.

A intertextualidade temática é encontrada entre textos que partilham os mesmos temas, como, por exemplo, as matérias jornalísticas de um mesmo dia ou período, os textos literários de uma mesma escola, os textos acadêmicos de uma mesma área ou corrente do conhecimento, as histórias em quadrinhos de um mesmo autor, as canções de um mesmo compositor, um livro e seu filme, as várias encenações de uma peça de teatro etc.

Já a intertextualidade estilística ocorre quando se repetem, imitam, parodiam certos estilos ou variedades linguísticas em um texto, em função de diversos objetivos, como é o caso da reprodução da linguagem bíblica, de jargões profissionais, de dialetos, do estilo de um determinado gênero, autor ou esfera de atividade humana.

Tem-se intertextualidade explícita quando no próprio texto se faz menção ao intertexto, ou seja, quando outro texto é citado e atribuído a outro enunciador, reportado como tendo sido dito por outro. É o caso das traduções, citações, referências e menções; ou do recurso ao argumento de autoridade, para dar maior credibilidade ao que se diz; ou das retomadas do texto do parceiro, em situações de interação face a face, para encadear sobre ele, contraditá-lo, ou demonstrar interesse na interação.

A intertextualidade implícita, por outro lado, ocorre quando se introduz intertexto alheio no próprio texto sem que haja qualquer menção explícita da fonte, seja com o objetivo de seguir-lhe a orientação argumentativa, com paráfrases mais ou menos próximas do texto fonte – intertextualidade das semelhanças (SANT’ANNA, 1985) ou captação (GRÉSILLON; MAINGUENEAU, 1984) –, seja de problematizá-la com enunciados parodísticos e/ou irônicos, apropriações, reformulações de tipo concessivo, inversão de polaridade afirmação/negação, entre outros – intertextualidade das diferenças, para Sant’Anna, e subversão, para Grésillon e Maingueneau.

No caso da intertextualidade implícita com valor de captação, o produtor do texto espera que o leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer, durante o processamento textual, a presença do intertexto, pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva. Em casos de plágio, essa recuperação é indesejável por parte do produtor, que espera que o interlocutor não tenha em sua memória o intertexto e sua fonte, ou não venha a proceder à sua ativação, razão pela qual procura camuflá-lo por meio de pequenas operações de ordem linguística, na materialidade linguística do texto, como apagamentos, substituições de termos, alterações de ordem sintática, transposições etc.

Em se tratando de intertextualidade implícita com valor de subversão, é vital a descoberta do texto-fonte pelo interlocutor, para a produção do sentido, embora não haja garantia de que isso ocorra – se não ocorrer, estará prejudicada a construção do sentido pretendido.

Nesses casos, trata-se de fontes de intertextos que fazem parte da memória coletiva da comunidade falante: trechos de obras literárias, músicas populares, bordões de programas humorísticos, provérbios, ditos populares etc.

Por fim, cabe a categoria de autotextualidade, atribuída ao caso de um autor ou compositor inserir em seu texto trechos de outras obras de sua autoria, muito embora haja teóricos que não a reconheçam como sendo intertextualidade, reservando este termo para os casos em que se recorre a intertextos alheios e não próprios. As autoras nas quais nos baseamos não distinguem, contudo, tais categorias.

A noção de détournement, formulada por Grésillon e Maingueneau (1984), se ampliada, poderia, segundo Koch, Bentes e Cavalcante (2007), dar conta de uma grande parte de casos de intertextualidade implícita: consiste em se produzir um enunciado que possui marcas de uma enunciação proverbial, mas que não pertence ao estoque de provérbios conhecidos. Seu valor é militante (não meramente lúdico), pois sempre visa a orientar a construção de novos sentidos pelo interlocutor, dando autoridade ao intertexto (captação) ou destituindo-o de tal autoridade  (ironizando-o, contraditando-o, reorientando-lhe o sentido etc.), em nome de interesses das mais diversas ordens (subversão). O détournement ocorre por meio de operações linguísticas de várias espécies, como substituição (Quem espera nunca alcança), adição (Devagar se vai ao longe, mas leva muito tempo), supressão (Para bom entendedor, meia palavra bas) ou transposição (Aja duas vezes antes de pensar). Sua maior frequência de ocorrência está na publicidade, no humor, na música popular e em charges políticas, e seu valor argumentativo vai depender, também, do cotexto e do entorno visual (ilustrações, gráficos), em função do contexto situacional mais amplo em que se insere.

Finalmente, uma pequena palavra sobre as relações entre intertextualidade e polifonia, segundo as autoras citadas. Há entre ambas uma relação de inclusão: a polifonia engloba todos os casos de intertextualidade, mas seu espectro é bem mais amplo que o desta, pois a intertextualidade requer a presença de um intertexto. O conceito de polifonia, tal como proposto por Ducrot (1980), a partir de Bakhtin, diz respeito a que se representem, ou encenem, em dado texto, perspectivas ou pontos de vista representados por enunciadores reais ou virtuais diferentes, sem que se trate, necessariamente, de textos efetivamente existentes. A polifonia, portanto, é um fato constante no discurso.

Acreditamos que essa perspectiva adotada por Koch, Bentes e Cavalcante (2007), de compreender a intertextualidade em termos de diálogo, que aqui retomamos a título de fundamentação teórica para a análise que segue, é bastante produtiva, pois, ao mesmo tempo em que explicita as diferenças, revela as semelhanças de pontos de vista.

RUIZ; FARIA – A intertextualidade no gênero resenha
Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 12, n. 1, p. 99-128, jan./abr. 2012

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