quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Ética dos valores

José Renato Nalini

É uma inversão da tese kantiana. Para Kant, o valor de uma ação depende da relação da conduta com o princípio do dever, o imperativo categórico. Para a filosofia valorativa, o valor moral não se baseia na idéia de dever, mas dá-se o inverso: todo dever encontra fundamento em um valor.

deve ser aquilo que é valioso e tudo o que é valioso deve ser. A noção de valor passa a ser o conceito ético essencial. E valor não ar­bitrariamente convencionado. Pois o que é valioso vale por si, ainda quando seu valor não seja conhecido nem apreciado. "A filosofia valo­rativa separa cuidadosamente o problema da intuição dos valores ­que é epistemológico - daquele da existência do valor - que é ontoló­gico".[1] É nossa consciência que nos adverte da existência dos valores. Mas não foram criados por ela, senão por ela descobertos. Só pode ser descoberto o que já existe.

1.  A existência do valor

Estudo elementar como o presente apenas aflora as questões éticas, remetendo os interessados a obras mais vastas. E as há em profusão. Questão recorrente no repensar de uma nova ética é a organização de conceitos ou princípios axiológicos novos, sobre os quais ela se fundará.

"Nenhuma sociedade pode sobreviver sem um código moral fundado em valores compreendidos, aceitos e respeitados pela maioria de seus mem­bros. Nós não temos mais nada disto. As sociedades modernas poderiam dominar indefinidamente os poderes fantásticos que a ciência lhes deu com o critério de um vago humanismo colorido por uma espécie de he­donismo otimista e materialista? Poderiam, nessas bases, resolver suas intoleráveis tensões? Onde vão desmoronar?” [2]

As grandes questões da axiologia clássica podem ser resumidas a quatro, e são elas que merecerão agora ligeiro exame.
Existem os valores? Eles existem e isso é facilmente constatável por qualquer pensante. Não se vinculam a qualquer forma de exteriori­zação. Podem ser meramente sentidos ou intuídos. Isso explica a sim­patia ou antipatia natural diante de uma pessoa ou a emoção perante uma obra de arte.

É longeva a distinção entre o mundo da matéria e a ordem do ideal. Os valores integram a esfera supra-sensível do mundo imaterial que, suscetível de ser intelectualmente concebido, não se pode visualizar ou submeter ao tato.

"A filosofia atual reconhece dois tipos de existên­cia: o ser real e o ser ideal. Pertencem ao primeiro todas as coisas e sucessos que ocupam lugar no espaço ou no tempo. O ser real se en­contra, por isso, espacial e temporalmente localizado. Por sua mesma índole, pode ser objeto de um conhecimento sensível. Na esfera práti­ca têm essa forma de existência os atos humanos, ou, mais precisamente, as variadíssimas manifestações do agir: intenções, propósitos, deci­sões voluntárias, juízos estimativos, sentido de responsabilidade, cons­ciência da culpa etc. "[3].

Já os valores não integram a ordem da realida­de. Diante dela, situam-se como ideais.

O perigo é concluir que só existe o que é real. Assim, o ideal não teria existência. Isso é pensamento ingênuo, como também o seria con­fundir-se idealidade com subjetivismo. Ideal não é só aquilo que é objeto da representação. Na ordem lógica e matemática, a tese da ideal idade tem alicerces consistentes. Quando se afirma: o todo é maior do que a par­te, independentemente de alguém imaginá-lo ou pensar assim, o postu­lado continua válido e existente.

Os valores submetem-se a uma hierarquia. Não que possam ser elei­tos, mas a hierarquia é objetiva. Entre os critérios determinativos dessa escala, indica Scheler os seguintes:

"Um valor é tanto mais alto: a) quan­to mais duradouro é; b) quanto menos participa da extensão e da di­visibilidade; c) quanto mais profunda é a satisfação ligada à intuição do mesmo; d) quanto menos fundamentado se acha por outros valores; e) quanto menos relativa seja sua percepção sentimental à posição de seu depositário".[4]

A durabilidade do valor tem a idéia de permanência. Não teria sentido o amante declarar que ama agora ou durante certo tempo. O va­lor é mais elevado quanto menor a necessidade de dividi-locam outrem. A obra de arte é indivisível. Inimaginável repartir-se uma tela em múlti­plas peças, para que cada destinatário detenha uma parcela de seu valor originário.

Entre os valores também surge a possibilidade de relações de fundamentação. O valor fundamentado em outro é sempre inferior ao fundamentante. Assim, a vida, entre os direitos fundamentais, é o bem por excelência. Todos os demais direitos são bens da vida, nesta funda­mentados e, portanto, inferiores à própria vida.

A satisfação coincide com a vivência de cumprimento, não com o estado de prazer gerado pela posse do valor. E a escala de relatividade dos valores auxilia a aferir o grau de superioridade dele. Há valores vin­culados ao agradável, os valores da vida que são relativos aos seres vi­ventes, e há valores puros, como os valores morais, que têm caráter ab­soluto, não relativo.

Max Scheler esboçou uma classificação dos valores sob enfoque hie­rárquico, distinguindo-os em: a) valores do agradável e do desagradá­vel; b) valores vitais; c) valores espirituais; d) valores religiosos.[5]

2. O conhecimento dos valores

Os valores constituem condição de existência dos bens. Existem bens porque existem valores, não o contrário.

Todo ser humano tem a experiência de conferir a determinadas coi­sas ou ações valoração que as qualifica como boas, más, úteis, agradá­veis, nobres ou belas. Esse experimento pressupõe uma escala estimati­va. Ela propiciará identificar, nas coisas ou atos, os valores compatíveis com essa pauta prévia.

Essa pauta é apriorística e, embora se afirme baseada na imitação, ou na índole intuitiva e emocional do conhecimento, ela existe em toda sã consciência. A intuição dos valores não é completa, nem perfeita. Hart­mann dá a esse fato o nome de estreiteza do sentido do valor.[6] Nenhuma pessoa é capaz de intuir todos os valores. Quando os intui, nem sem­pre pode fazê-lo de forma nítida. Mas é viável o crescimento nessa arte. A missão do pedagogo e do moralista é desenvolver a sensibilidade para o conhecimento daquilo que é eticamente relevante.

A História tem sido pródiga em exemplos de cegueira valorativa, não apenas em relação aos indivíduos, mas característica a toda uma sociedade ou a toda uma época. Recorda Ortega y Gasset que

"o esti­mar é uma função psíquica real-como o enxergar, como o entender­em que os valores se nos fazem patentes. E vice-versa, os valores não existem senão para sujeitos dotados de capacidade estimativa, do mesmo modo que a igualdade e a diferença existem para seres capa­zes de comparar. Neste sentido, e neste sentido, pode falar-se de certa subjetividade no valor".[7]

Tal estreiteza, mesmo a cegueira valorativa ou a miopia moral, não destrói a doutrina da objetividade dos valores. As variações da intuição estimativa não alteram o valor, que permanece íntegro, à espera da des­coberta. É elucidativa a idéia de García Máynez do cone de luz projetado no horizonte. A consciência de cada homem e de cada época descobre sob essa luz alguns valores. Se não atenta para outros, não é porque eles não existam. O cone de luz ilumina, mas não cria o horizonte.

3. A realização dos valores

O ideal coincide ou não com o real. Na ordem moral essa relação é bastante peculiar. O ser em si dos valores subsiste mesmo se não realiza­dos. Mas os valores são princípios da esfera ética atual, não apenas prin­cípios da esfera ética ideal, observou Hartmann. É a consciência estima­tiva que dá o testemunho da atualidade dos valores. Ela sinaliza o sentido primário do valioso, determina o juízo moral, o sentimento de responsa­bilidade e a consciência da culpa.

Mais ainda, os valores são princípios da esfera ética real. São forças determinantes da conduta humana num sentido criador.

"A possibilida­de que o homem tem de converter as urgências do ideal em forças modeladoras do existente condiciona, segundo Hartmann, a grandeza de nossa linhagem. Como administrador dos valores no mundo, o homem adqui­re uma significação demiúrgica, convertendo-se deste modo em co-partícipe da grande obra de Deus. "[8]

Adquire especial relevo na doutrina da realização de valores a no­ção do dever ser. É uma noção kantiana suprema e, portanto, indefiní­vel. Todo valor ético deriva da subordinação da vontade ao imperativo categórico. Já Scheler e Hartmann invertem a proposição: o valor mo­ral não se funda no dever, mas ocorre o inverso: todo dever pressupõe a existência dos valores.

Para eles, não haveria sentido dizer que algo deve ser, se o que se postula como devido não fosse valioso. Caridade, justiça, temperança e outras virtudes devem ser, enquanto valem. Carecessem de valor e não deveriam ser.

O dever ser hartmanniano tem os seguintes elementos: a) a existên­cia de um valor; b) o dever ser ideal do mesmo; c) a atualização de tal dever (dever ser atual); d) a existência de um ser capaz de realizar o va­lioso. O mundo real não é em si plenamente valioso, nem completamen­te desvalioso. Nele se realizam múltiplos valores e outros quedam irrea­lizados. Mas há sempre a possibilidade de novas realizações valorativas.

Mas como pode o homem realizar o valioso? Realizar o valioso con­siste, para o homem, num dever. E o dever impõe uma conduta teleoló­gica. Se quero acatar uma norma, devo converter tal acatamento em fi­nalidade de minha conduta. A realização dos valores se consuma atra­vés de um processo de dúplice etapa: a determinação primária e a de­terminação secundária. A primeira é a intuição; a segunda, a delibe­ração da vontade.

É verdade que o nexo teleológico é mais complexo do que o nexo causal. O nexo causal é a relação entre dois fenômenos, o primeiro dos quais, chamado causa, determina de forma necessária a produção do outro, chamado efeito. Já o nexo teleológico admite três momentos:

1. Postulação do fim. Alguém se propõe a realizar determinada fi­nalidade. É a projeção interior de seu atuar futuro.
2. Eleição dos meios. A realização dos fins pressupõe a seleção e emprego de procedimentos a eles conducentes: os meios.
3. Realização. Esta a etapa inscrita no fluxo do futuro. Aqui existe uma similitude entre o nexo causal e o nexo teleológico. O meio é causa e o fim é efeito.

Para bem apreender essa possibilidade, a criatura deve ter presente que a realização de fins não é um processo inflexível e imodificável, to­talmente fechado à intervenção de determinações heterogêneas e mais complexas.

"Se o homem é capaz de propor-se um alvo e alcançá-lo, isso se deve a que o acontecer causal não se orienta de maneira inexorável até uma meta estabelecida de antemão, senão que pode ser desviado, ao menos dentro de certos limites. Para desviá-lo só faz falta o conhecimento das relações entre os fenômenos. Isto é o que expressa o velho aforismo: à natureza não se domina, senão obedecendo-a. E obedecê-la é orien­tar suas forças na direção de nossos desígnios. "[9]

A realização individual de valores só se concebe numa visão de mundo em que coexistam a causalidade e a teleologia. Numa existência sem leis, em que tudo fosse fortuito e contingente, não haveria a possibilidade de estipulação de fins e de sua realização. E a pessoa deve ter consciência de que há um momento inicial de liberdade moral, sem o qual nada lhe será possível crescer em termos éticos.

TEXTO EXTRAÍDO DE: NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.55-60


[1] EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, Ética ... , cit., ideln, p. 46.
[2] JACQUES MONOD, "La science et ses valeurs", in Pour une éthique de Ia connaissance, La découverte, p. 146, apud JACQUELINE RUSS, op. cit .. p. 19.
[3] EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, Ética ..... , cit., idem, p. 217.
[4] EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, Ética ..... , cit., idem, p. 229.
[5] MAX SCHELER, O formalismo na Ética e a Ética Material Valorativa,citada por EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, Ética ... , cit., idem, p. 233.
[6] EDUARDO GARCÍA MÁ YNEZ, Ética ... , cit., idem, p. 246.
[7] ORTEGA Y GASSET, "Que são valores", in As etapas do cristianismo ao raciona!ismo e outros ensaios, Santiago do Chile: Editorial Pax, p. 56, apud EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, Ética ... , cit., idem, p. 247.
[8] HARTMANN, Ethik, p. 149, apud EDUARDO GARCÍAMÁYNEZ, Éti­ca ... , cit., idem, p. 256.
[9] EDUARDO GARCÍAMÁYNEZ, invocando HARTMANN, IN Ética..., cit, idem, p.266.

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