Muitas vezes, tomamos conhecimento de
movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome. Ficamos sabendo
que, em ou outros países e no nosso, milhares de pessoas, sobretudo crianças e
velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos piedade. Sentimos indignação
diante de tamanha injustiça (especialmente quando vemos o desperdício dos que
não têm fome e vivem na
abundância). Sentimos responsabilidade. Movidos pela solidariedade,
participarmos de campanhas contra a fome. Nossos sentimentos e nossas ações
exprimem nosso senso moral.
Quantas vezes, levados por algum
impulso incontrolável ou por alguma emoção forte (medo, orgulho, ambição,
vaidade, covardia), fazemos alguma coisa de que, depois, sentimos vergonha,
remorso, culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente.
Esses sentimentos também exprimem nosso senso
moral.
Em muitas ocasiões, ficamos contentes
e emocionados diante de uma pessoa cujas palavras e ações manifestam
honestidade, honradez, espírito de justiça, altruísmo, mesmo quando tudo isso
lhe custa sacrifícios. Sentimos que há grandeza e dignidade nessa pessoa. Temos
admiração por ela e desejamos imitá-la. Tais sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral.
Não raras vezes somos tomados pelo
horror diante da violência: chacina de seres humanos e animais, linchamentos,
assassinatos brutais, estupros, genocídio, torturas e suplícios. Com
freqüência, ficamos indignados ao saber que um inocente foi injustamente
acusado e condenado, enquanto o verdadeiro culpado permanece impune. Sentimos
cólera diante do cinismo dos mentirosos, dos que usam outras pessoas corno
instrumento para seus interesses para conseguir vantagens às custas da boa-fé
de outros. Todos esses sentimentos também manifestam nosso senso moral.
Vivemos certas situações, ou sabemos
que foram vividas por outros, como situações de extrema aflição e angústia.
Assim, por exemplo, uma pessoa
querida, com uma doença terminal, está viva apenas porque seu corpo está ligado a máquinas que a conservam.
Suas dores são intoleráveis. Inconsciente, geme no sofrimento. Não seria melhor
que descansasse em paz? Não seria preferível deixá-la morrer? Podemos desligar
os aparelhos? Ou não temos o direito de fazê-lo? Que fazer? Qual a ação correta?
Uma jovem
descobre que está grávida. Sente que seu corpo e seu espírito ainda não estão
preparados para a gravidez. Sabe que seu parceiro, mesmo que deseje apoiá-la, é
tão jovem e despreparado quanto ela e ambos não terão como responsabilizar-se
plenamente pela gestação, pelo parto e pela criação de um filho. Ambos estão
desorientados. Não sabem se poderão contar com o auxilio de suas famílias (se
as tiverem).
Se ela for apenas
estudante, terá que deixar a escola para trabalhar, a fim de pagar o parto e
arcar com as despesas da criança. Sua vida e seu futuro mudarão para sempre. Se
trabalhar, sabe que perderá o emprego, porque vive numa sociedade onde os
patrões discriminam as mulheres grávidas, sobretudo as solteiras. Receia não
contar com os amigos. Ao mesmo tempo, porém, deseja a criança, sonha com ela,
mas teme dar-lhe uma vida de miséria e ser injusta com quem não pediu para
nascer. Pode fazer um aborto? Deve fazê-lo?
Um pai de família desempregado, com
vários filhos pequenos e a esposa doente, recebe uma oferta de emprego, mas que
exige que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão.
Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o tratamento da
esposa. Pode aceitar o emprego, mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deve
recusá-lo e ver os seus filhos com fome e a mulher morrendo?
Um rapaz namora, há tempos, uma moça
de quem gosta muito e é por ela correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se
perdidamente e é correspondido. Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois
amores simultâneos, ou estará traindo a ambos e a si mesmo? Deve magoar uma
delas e a si mesmo, rompendo com uma para ficar com a outra? O amor exige uma
única pessoa amada ou pode ser múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele
lhes contar o que se passa? Ou deverá mentir para ambas? Que fazer? Se,
enquanto está atormentado pela indecisão, um conhecido o vê ora com uma das
mulheres, ora com a outra e, conhecendo uma delas, deverá contar a ela o que
viu? Em nome da amizade, deve falar ou calar?
Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança
maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães numa mercearia. Sabe que o dono da
mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença
para ele. Mas também vê a miséria e a fome da criança. Deve denunciá-la,
julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o
proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá silenciar, pois a
criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para a policia,
ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao homicídio?
Que fazer?
Situações como
essas - mais dramáticas ou menos dramáticas - surgem sempre em nossas vidas.
Nossas dúvidas quanto à decisão a tomar não só manifestam nosso senso moral,
mas também põem à prova nossa consciência
moral, pois exigem que decidamos o que fazer, que justifiquemos para nós
mesmos e para os outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as
conseqüências delas, porque somos responsáveis por nossas opções.
Todos os exemplos
mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral referem-se a
valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade, generosidade),
a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso,
contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e a decisões que conduzem a ações
com conseqüências para nós e para os outros. Embora os conteúdos dos valores
variem, podemos notar que estão referidos a um valor mais profundo, mesmo que
apenas subentendido: o bom ou o bem. Os sentimentos e as ações, nascidos de uma
opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal, também estão referidos a algo
mais profundo e subentendido: nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de
alcançar a felicidade, seja por ficarmos contentes conosco mesmos, seja por
recebermos a aprovação dos outros.
O senso e a consciência moral dizem
respeito a valores, sentimentos, intenções, decisões e ações referidos ao bem e
ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem respeito às relações que mantemos com
os outros e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida
intersubjetiva.
Extrato de: CHAUI, Marilena. A existência ética. In:_______. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1997, p. 334-336.
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