quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Como acontece a formação da consciência moral

Olírio Plínio Colombo 

Como se forma a consciência moral? Se não aceitamos a tese de Rousseau (a de que o ser humano nasce bom, mas é corrompido pela sociedade), então devemos encontrar elementos que nos permitam formar, no ser humano, qualidades que concretizem sua tendência para o bem. E isso através da família, da escola, das igrejas, dos partidos e, enfim, de toda a sociedade. 

Nós vamos utilizar a linguagem da psicanálise. Segundo a psicanálise o psiquismo humano é composto de três instâncias que são constituídas pelo Id, Ego e Superego. Segundo Freud, o ser humano nasce Id. O Id é o princípio do prazer, da libido, a busca do agradável e a rejeição do desagradável. 

O Id 

Por isso, o Id é egocêntrico, anti-social e narcisista. Não possui normas morais, pois é oposto a normas, leis e à reciprocidade. Sem disciplina e educação, o ser humano pode continuar assim por toda a vida, durante a qual só lhe interessará o prazer e utilizará o outro como objeto de seu egocentrismo prazeroso. Temos aí o psicopata, o assassino ou ladrão sem remorsos. É capaz de matar várias pessoas e, depois, ir almoçar tranqüilo. Só vê a si mesmo e quer sempre o bom e o melhor. É o homem infantil e perigoso porque não possui consciência moral e age sempre em proveito próprio. 

O Ego 

O Ego é constituído pelo princípio da realidade. É o psiquismo humano enquanto consciente ou ciente de que vive em sociedade, que conhece, trabalha, tem horário e é responsável. O Ego pode ser rígido demais e então a pessoa está sempre preocupada: trabalha e estuda, leva a vida por demais a sério e é muito sisuda, isto é, incapaz de brincar até com seus filhos. Mas também o Ego pode ser muito flexível e, nesse caso, a pessoa não é muito responsável. Muitas vezes ainda o Ego possui um caráter narcisista e aí estamos novamente no infantilismo. 

O Superego 

É formado pela censura, pelo princípio da restrição, pela proibição, pela medida, pela introjeção de normas morais, regras comuns, leis, ideais coletivos e preferência pelo interesse geral. 

A criança que não sofre nenhuma restrição é satisfeita em todos os desejos e caprichos tende a tornar-se um adulto sem normas, egoísta e anti-social. Sua vida, de modo geral, é pautada pela autopermissividade, isto é, só vê a si mesma e seus interesses particulares. Donde se conclui que a educação também consiste em restrição. Fazer tudo o que uma criança quer é criar um monstro. 

De outro lado, a restrição em excesso, a proibição muito extensa produz a inibição na pessoa humana. Ela sente que é proibida de ser. Isso a torna inibida, anti-social, autoritária e rígida demais nos seus julgamentos morais. É claro que a pessoa humana deve aprender o seu valor, sua dignidade. Precisa de auto-afirmação, mas não de excesso. 

Em geral há dois tipos de pessoas que são racistas e a favor da pena de morte ou da discriminação social: os que não possuem superego e aqueles que o tem, mas é forte demais. 

Na formação do superego é importante o equilíbrio. Mas onde está o equilíbrio e como administrá-lo? Os pais trabalham fora e a TV "trabalha" as crianças. A situação econômica do país deixa os pais em estado de pânico. O Estado brasileiro abandonou a educação. A creche e a escola maternal custam caro. O que fazer? 

Contudo, penso que a educação moral da criança deva começar com os jogos e o conhecimento e observância das leis de cada jogo. O início da formação da consciência moral é lúdica, provém do brinquedo. Aos poucos, através dos jogos, as crianças vão aprendendo seus direitos e deveres, os rudimentos do exercício da cidadania e o fato de conservarem os brinquedos limpos e bem guardados, porque são de todos, isto é o início da idéia da coisa pública. 



Importante, também, é o aprendizado das condições de uma vida democrática: exercício dos direitos e deveres, aplicação dos Direitos Humanos em casos concretos como o racismo, a discriminação social, etária etc. 

Agora, como fazer isso? É difícil dizer. De um lado, são exigidos conhecimentos teóricos e de outro práticos porque a ética, a formação moral, é uma ciência prática. Só sei dizer o seguinte: uma instituição sozinha pouco consegue. É preciso, nessa tarefa, a união da família, da escola, da sociedade e de todos os segmentos que compõem a sociedade como as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as associações de bairro, os meios de comunicação, as empresas, os clubes e aqueles que presidem o Estado através de sua lisura e honestidade moral. Mas isso, no Brasil, parece difícil, embora não impossível. 

Em todo caso, a formação da consciência moral envolve a criação de um povo, de uma nação com ideais coletivos como a honestidade, ideais de beleza, de justiça, de igualdade, liberdade e isonomia (a maior possível), bem como o patriotismo e a soberania, com o devido respeito e convivência cooperativa com outras nações. Por isso a formação da consciência moral é também consciência cívica e humanitária. E isso nos permite ver que é a igualdade que possibilita a liberdade e não vice-versa. 

No início, a formação da consciência moral é heterônoma (vem de fora). As crianças aprendem o que é bom e o que é mau a partir dos pais, dos professores, da sociedade da mídia. Ainda não sabem escolher, decidir por conta própria. Podem preferir um brinquedo a outro, ter um alimento preferencial etc. Mais tarde, mais ou menos aos 13 anos de idade mental, as pessoas vão formando suas próprias convicções assimilam experiências e assumem livremente as noções e prática do bem. Aí a consciência moral se torna autônoma (vem de dentro e está ligada ao discernimento e à liberdade da pessoa). E a autonomia é decisiva na formação da consciência moral porque se a pessoa não estiver convencida de suas atitudes e comportamentos ela estará sempre pronta a transgredir as normas e as leis. A convicção interior é necessária para a prática das normas e das leis. 

E essa passagem da imposição (heteronomia) para a liberdade (autonomia) dá segurança e endereço ao jovem. Tem parâmetros para organizar sua vida, possui idéias sociais e estrutura para enfrentar a existência. Se a formação moral permanecer somente na imposição do moralismo autoritário (caso do Brasil), os adolescentes sentem-se desnorteados, vazios e preenchem tais lacunas os principais vícios da sociedade na qual vivem. Por isso não adianta somente impor, ser autoritário. O melhor método, desde Sócrates e Platão, é o diálogo. 

O diálogo permite o progresso moral da humanidade. Primeiro, porque possibilita o crescimento consciente e livre e, portanto, responsável do comportamento moral dos indivíduos e grupos sociais. Segundo, porque a moralidade passa a ser uma questão não só individual, mas também social e assim os interesses individuais e os da sociedade convergem. Desse modo se forma uma tradição onde certas normas ultrapassadas são reformuladas segundo as circunstâncias e os novos tempos. 

Os agentes da formação da consciência moral 

Em primeiro lugar, eu diria que o principal agente na formação da consciência moral é o adolescente o qual, em torno dos 13 anos em diante, vai passando da heteronomia (normas impostas de fora) para a autonomia (normas assumidas consciente, livre e responsavelmente pelo próprio sujeito). No início, a criança age segundo normas morais porque assim agrada os pais e os professores e, dessa forma, conquista seu amor. 

Depois, introjeta padrões de comportamento, modelos de ação por convicção própria. 

Mas antes e durante essa transição há momentos de rebeldia e conflito. E isso é normal. 

Porque, de um lado, o fato de obedecer acomoda a vida do ser humano e a torna mais fácil. De outro lado, assumir a liberdade torna-se um momento difícil, cheio de conflitos e indecisões, incertezas e angústias. E, de fato, vivemos numa sociedade pluralista onde os grupos diversos possuem convicções políticas, estéticas, religiosas e morais diferentes. Aí as idéias morais, de bem e de mal, tornam-se uma questão grupal ou do foro íntimo das pessoas. De fato, o último critério (fundamental) para decidir o que é bom e o que é mau é a consciência moral da pessoa e não a cópia e a imitação. Só que, se as consciências morais individuais não criarem princípios morais coletivos, então podemos cair no relativismo ou, mesmo, na ausência de princípios morais. Cada um faz o que bem entende, desobedece as leis, lesa o próximo sempre que pode e não lhe interessa o bem comum. 

No Brasil, vivemos essa situação de individualismo extremo, de medo do outro, desconfiança no Judiciário, no Executivo, no Legislativo. Também nos protegemos dos outros com grandes cães, sistemas de alarme, armas e até fios elétricos. Vivemos no narcisismo familiar e em estado de defesa relativo à guerra civil camuflada. Não há consciência social. E não existem certas condições. Por exemplo, diálogo é fundamental e o exercício da responsabilidade (o adolescente não deve sentir medo de assumir seus comportamentos) e da liberdade verdadeira. No diálogo o adolescente irá aprender o conhecimento avaliativo e estimativo dos comportamentos, o que constitui o verdadeiro saber moral embora esse não seja só teórico mas, sobretudo, prático. 

A família 

O segundo agente formador é a família. E para essa tarefa ela necessita de um clima afetivo bom, onde pai, mãe e filhos formem um círculo de bem-querer mútuo, de sinceridade, ausência do medo, mesmo para abordar certos temas. É importante também que os pais, quando erram, reconheçam sua culpa diante dos filhos. Isso é decisivo porque dessa forma os filhos sabem que não somente eles erram e aprendem a reconhecer a autoridade dos pais e a amá-los. O farisaísmo, a hipocrisia e a mentira de nada servem, pois os filhos vêem na cara dos pais o descompasso entre seu comportamento e suas exigências. 

Os filhos introjetam o modelo dos pais e seus respectivos papéis. Por isso, não podem ser autoritários, mas gozarem de autoridade. Devem fazer com que os filhos distingam entre sentimento de culpa e culpa. Culpa é o reconhecimento do erro e sua possível reparação. O sentimento de culpa é interno, inconsciente, muitas vezes, e nasce por diversos motivos: os pais proíbem as crianças de serem, fundamentam a formação moral na proibição, escoram sua educação na reprimenda. Outras vezes os pais vivem em estado de guerra e quando muito referem-se um ao outro de modo impessoal e sem respeito. Muitos casais se separam. Outros vivem numa situação repleta de desvios comportamentais fora de casa. Ora, as crianças, inconscientemente, sentem-se culpadas pelo problema e com isso surge nelas o sentimento de culpa. 

Mas há outros problemas. Os pais trabalham, os filhos estudam e a casa se torna uma espécie de pensão, e pensão não é família. Depois, os Meios de Comunicação invadiram a casa e quem mais fala e mais autoridade possui é a TV, apresentando pseudo-valores, modelos estranhos à cultura local, ídolos, consumismo e muita besteira. Assim, os pais perdem seu lugar e sua função. 

Dessa forma, também, os pais da classe média estão numa situação de falência e sentem-se como uma espécie de geração-sanduíche. Estão entre duas fatias de pão. De um lado reconhecem que o passado, em muitos aspectos, é rejeitado pelos filhos e, de outro, sabem que o futuro não é claro, mas antes incerto e preocupante. Além disso, devido à recessão, achatamento salarial e o futuro econômico incerto, os pais entram em estado de pânico e sua cabeça tornou-se apenas uma máquina calculadora e, com as poucas economias, refugiam-se no narcisismo. Vêem apenas a si mesmos e não a sociedade e os problemas sociais. Não transmitem mais a reciprocidade social, mas somente o medo do outro. 

A escola 

A escola é outra instituição importante na formação moral. Ela pode servir como exercício da prática da cidadania, da consciência da idéia e do respeito à coisa pública. 

Mas ela não deve se deter numa exposição de normas morais, com caráter autoritário, dogmático e atrasado. As questões morais (éticas) e as normas devem partir de um debate que se fundamente nas perguntas dos jovens e na situação do país. Uma coisa é o professor(a) dizer o que deve ser (norma), outra coisa é o adolescente descobrir o dever ser. É necessário que, a partir de uma realidade como a nossa, os nossos estudantes formulem os princípios éticos, redijam um código. Isso lhes dá autonomia e o senso do dever. É importante discutir em que consiste a imoralidade e a moralidade, não se fixar obsessivamente na questão sexual (não é o problema moral mais importante), mas ater-se às coisas mais decisivas. 

É pena que a escola parece ter sido abandonada pelo Estado. As poucas que existem são barracos e os professores são mal remunerados, grande parte dos alunos subnutridos e praticamente incapazes para o aprendizado, para o trabalho e para a vida social. Estão no caminho do lumpesinato, do crime das sociedades paralelas. Além disso, mesmo nas escolas particulares, muitos professores não se preocupam com a formação moral, cívica e política (não-partidária). 

A sociedade 

Uma quarta instituição que pode ser formadora de consciência moral do jovem é a sociedade. Mas, para isso, ela deve possuir objetivos comuns, interesses e ideais coletivos, valores éticos, regras comuns, poucas leis, mas observadas por todos. Onde essas coisas acontecem, há sociedade. Onde não, só temos anti-sociedade, sociedades paralelas e guerra civil camuflada. É importante também o bom exemplo das autoridades, a tentativa honesta da solução dos problemas e a união do discurso com a palavra. 

Por isso, não vou falar do Estado brasileiro porque ele não procede e não pertence à sociedade civil como um todo. É propriedade das elites e serve para cobrar impostos e doar esse dinheiro aos grandes empresários nacionais e estrangeiros. É uma entidade deformadora e até o dia em que não for tomado e formulado a partir da política que representa a sociedade civil, como um todo é carta fora do baralho. Não é criador de ideais coletivos, de princípios éticos e de leis válidas para todos, não é juiz, mas algoz das causas dos menos favorecidos. Isso é afirmado embora reconheça que dentro dos aparelhos do Estado brasileiro existem pessoas e agências que trabalham de modo excelente. 

Com um Estado irracional e anti-social e outros problemas não apontados, o brasileiro criou a seu respeito uma imagem negativa, de incapacidade, de passividade e acomodação, de desinteresse pela formação moral, de preferência pela malandragem, de desprezo pelo trabalho (proveniente do senhor da casa grande), pelo jogo, pela sorte e por uma vida imediatista, oportunista, inobservância e burla das leis e de mútua desconfiança. Onde não existe nada em comum, o que pode acontecer senão a ausência da cidadania, o desprezo da coisa pública, pelo trabalho e pelo patriotismo? E isso é, profundamente, a morte de uma nação e o auto-aniquilamento dos indivíduos através da perda de sua dignidade e do desinteresse social. 

COLOMBO, Olírio Plínio. Pistas para filosofar (I). Temas de Antropologia. Porto Alegre: Evangraf, 1997.)

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