quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Visão geral do gênero resenha

Quando o tema são os gêneros do discurso, não há como deixar de fazer remissão à clássica definição de Bakhtin ([1979] 1997, p.279), reiterada em diversos trabalhos acadêmicos, de que:

“cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso.”

Tais formas-padrão relativamente estáveis de estruturação dos enunciados são portadoras de valores de uso determinados por uma dada formação social e são selecionadas pelo agente produtor em função da ação de linguagem que este deseja executar numa situação específica de enunciação e em uma determinada esfera de atividade humana. Como aponta Bronckart (1994), cabe ao agente produtor, numa situação definida, tomar uma série de decisões que levam em conta os objetivos visados, o lugar social, os papéis dos participantes, e que dizem respeito à escolha não só do gênero mais adequado, mas também da organização sequencial ou linear do conteúdo temático, dos mecanismos de textualização e dos mecanismos enunciativos.

A escolha do gênero configura-se, pois, como uma decisão estratégica por parte do agente produtor, que envolve uma confrontação entre os valores por ele atribuídos aos parâmetros da situação (mundos físico e sociosubjetivo) e os usos atribuídos aos gêneros do intertexto – este constituído por uma espécie de reservatório de modelos textuais, ou seja, pelo conjunto de gêneros de texto elaborados por gerações anteriores e que podem ser utilizados numa situação específica, com eventuais transformações (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007).

Nesse sentido, o ato de resenhar é uma ação de linguagem que, ao dar crédito ao trabalho desenvolvido por produtores de textos ou a obras de uma determinada área, visa a uma apresentação crítica de um determinado fato cultural – por exemplo, a publicação de um livro, o lançamento de um CD, DVD, filme ou peça teatral, um show, uma exposição etc. – servindo, dessa forma, como uma bússola ao leitor (FERRAZ, 2007). Por esta razão, a resenha tem espaço privilegiado em esferas específicas de atividade humana, como a acadêmica e a do jornalismo cultural, sendo definida por Machado, Lousada e Abreu-Tardelli (2007, p. 14) como:

“um gênero que pode ser chamado por outros nomes, como resenha crítica, e que exige que os textos que a ele pertençam tragam informações centrais sobre os conteúdos e sobre outros aspectos de outro(s) texto(s) lido(s) – como, por exemplo, sobre o seu contexto de produção e recepção, sua organização global, suas relações com outros textos etc., e que, além disso, tragam comentários do resenhista não apenas sobre os conteúdos, mas também sobre todos esses outros aspectos”.

Assim, resenhar é uma atividade que exige do produtor conhecimento sobre o assunto, para estabelecer comparações, além de maturidade intelectual, para fazer avaliações e emitir juízos de valor (MEDEIROS, 2000, p. 137).

Veiculada em suportes específicos como jornais e revistas (acadêmicas ou não) e destinada, principalmente, a leitores e pesquisadores que visam, sobretudo, a alargar sua compreensão acerca do objeto cultural resenhado. A resenha é, segundo Oliveira (2007), constituída de dois grandes movimentos textuais, que em geral apresentam-se imbricados: o resumo (ou descrição, apresentação) da obra e a opinião (julgamento de valor) do resenhista acerca desta – sendo que, no que diz respeito à opinião, parece haver, sobretudo no caso das resenhas de cunho acadêmico, um acordo tácito no sentido de um cuidado em se manter a polidez, a fim de se evitar tom agressivo, seja relativamente ao objeto resenhado seja ao seu autor.

Segundo a NBR 6028 (ABNT, 2003), resenha ou recensão é o mesmo que resumo crítico. Já a nomenclatura resenha crítica, utilizada por alguns autores, parece-nos redundante, como bem apontam Barros e Nascimento (2008, p. 45), “visto que o teor valorativo é elemento essencial para a composição desse gênero”. Motta-Roth (2002) postula que o gênero resenha envolve um contínuo entre descrição e avaliação, já que textos exemplares do gênero tendem ou para um ou para outro desses extremos. Assim, resenhas mais objetivas podem ser representadas por textos mais descritivos do conteúdo do objeto resenhado, com uma avaliação menos explícita do resenhador; já quando este é um especialista da área e parte de seu conhecimento e de sua experiência profissional para estabelecer a relevância do objeto resenhado, as resenhas podem tender para um extremo avaliativo.

Na academia, esse gênero discursivo é usado para avaliar (elogiar ou criticar) o resultado da produção intelectual em uma área do conhecimento, sob o ponto de vista da ciência naquela disciplina, informada pelo conhecimento produzido anteriormente sobre aquele tema: “por meio da avaliação de novas publicações, o conhecimento na disciplina (as teorias e os autores em voga, o saber partilhado entre os pares, as abordagens adotadas, os valores consagrados) se reorganiza e as relações de poder, de status acadêmico se reacomodam” (MOTTAROTH; HENDGES, 2010, p. 27).

Porém, lembram-nos essas autoras, embora a avaliação seja a função que define o gênero resenha, ela não é seu único componente no caso de resenhas acadêmicas: “há uma expectativa quanto à descrição detalhada do conteúdo e da organização do livro” (MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010, p. 44), Logo, este gênero é avaliativo e informativo, ao mesmo tempo, sendo o teor avaliativo um fator que varia entre as disciplinas, uma vez que cada área tem seus próprios critérios de avaliação. No caso da Linguística, por exemplo, parece ser importante, segundo elas, que o resenhador informe o valor do livro para o público alvo e estabeleça a contribuição do trabalho para inovar a área e responder às expectativas dos leitores. Esse tipo de avaliação é afetada, complementam, pela natureza dos assuntos tratados, o tratamento dos dados e a velocidade com que os programas de pesquisa avançam em cada disciplina.
Pode-se, ainda, acrescentar que o estilo de se fazer resenha na esfera jornalística parece se diferenciar do da esfera acadêmica, sobretudo no que se refere ao diálogo com outros textos e autores.

Conforme aponta Silva (2009), resenhas acadêmicas encontradas em revistas e periódicos específicos apresentam, em geral, vozes de outros autores e referências bibliográficas, além de extensões maiores, quando comparadas a resenhas que, diariamente, são publicadas em jornais e revistas para o grande público.

Uma resenha objetiva fundamentalmente responder a questões básicas como: quem é o autor do objeto resenhado, qual é o seu tema, como se compara o texto em resenha com outros trabalhos do mesmo autor e/ou de outros autores e/ou do mesmo assunto e/ou da mesma área.

Certamente, o diálogo instaurado resenhista-leitor-autor não pressupõe acordos. Por essa razão, como aponta Oliveira (2007), espera-se encontrar numa resenha um trabalho de argumentação convincente para persuadir o leitor. Em virtude disso, embora a resenha seja considerada um gênero híbrido em termos tipológicos – já que se configura como um misto de sequências descritivas, de relato e argumentativas, no sentido de Bronckart (1994) e Marcuschi (2002, 2008) –, trata-se de um gênero de tipo predominantemente argumentativo:

“resenhar tem tudo a ver com um texto argumentativo, que visa a expressar a opinião de seu autor, supostamente alguém com um referencial de conhecimento capaz de avaliar o que está sob sua visão e possuidor de argumentos que convençam que essa avaliação é correta ou, pelo menos, flua na direção exata” (FERRAZ, 2007, p. 63).

De acordo com Machado, Lousada e Abreu-Tardelli (2007), a resenha acadêmica é organizada globalmente em diferentes partes, sendo que, no início, encontram-se informações sobre o contexto e o objeto que está sendo resenhado e, logo depois, os objetivos do produtor.

Segundo as autoras, antes de apontar seus comentários, o resenhista precisa fazer uma descrição estrutural do objeto resenhado, que pode ser feita por capítulos ou agrupamento de capítulos (no caso de se tratar de livros); e, após esse procedimento, uma apreciação sobre o mesmo.

Conforme pontuam, é muito importante que haja tanto comentários positivos como negativos sobre o objeto resenhado, para que o resenhista possa, de fato, nortear o leitor; e, na sequência, uma conclusão do autor, que deve explicar ou reafirmar sua posição (des)favorável sobre o objeto, recomendando (ou não) sua leitura.

Para Motta-Roth e Hendges (2010), contudo, tais partes do texto de resenha acadêmica (estágios textuais) são, na realidade, o resultado de quatro grandes movimentos retóricos executados pelo resenhista, que por sua vez se desdobram em estratégias específicas (MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010), como as descritas sumariamente abaixo[1]:

a) Apresentar o livro: informar o tópico geral do livro e/ou definir o público-alvo e/ou dar referências sobre o autor e/ou fazer generalizações e/ou inserir o livro na disciplina;
b) Descrever o livro: dar uma visão geral da organização do livro e/ou estabelecer o tópico de cada capítulo e/ou citar material extratextual;
c) Avaliar partes do livro: realçar pontos específicos;
d) (Não) recomendar o livro: desqualificar / recomendar o livro, ou recomendar o livro apesar das falhas indicadas.

Segundo as autoras, o resenhador pode usar todas essas estratégias conjuntamente ou escolher apenas as que lhe interessar, variando em extensão, de acordo com o quê e o quanto deseja enfatizar em sua análise, ou em frequência, de acordo com as características da obra ou o seu estilo.

Mas, seja como for, a resenha se encerra com uma recomendação final (velada em se tratando de livro resenhado em contexto acadêmico), de tom persuasivo, que ressalta a importância e a atualidade do material resenhado (MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010). Além disso, frequentemente, ao recomendar a obra, resenhadores aconselham explicitamente o leitor a ler (ou talvez, não ler) o livro, ressaltando o impacto significativo da obra (ou a falta dele) para a disciplina como um todo.

Segundo Barros e Nascimento (2008, p.54), a última parte da resenha acadêmica, destinada a dar um parecer geral sobre a obra resenhada, “nunca traz uma aprovação ou reprovação explícita da obra nos termos de ‘recomenda-se’ ou ‘não se recomenda’”, pois os agentes produtores sofrem coerções sócio-histórico-ideológicas que os levam a agir com certa polidez discursiva, isentando-se de expressar seus posicionamentos valorativos negativamente, bem como de macular a imagem do autor da obra resenhada. Como concluem as autoras, isso mostra como a resenha acadêmica difere de uma resenha de livro escrita para um jornal ou uma revista comercial, pois neste caso ela é produzida por um profissional que pertence a outra esfera social e tem como público-leitor um sujeito neutro nesse jogo discursivo, que não compartilha dos mesmos interesses/conflitos ideológicos daquele que resenha e daquele que é resenhado. Já na resenha acadêmica, um membro da academia que hoje esteja no papel social de resenhador, legitimado a avaliar o trabalho de um “colega” seu, amanhã pode ser o alvo das críticas, o autor de uma obra resenhada, o que deixa claro que, neste domínio discursivo, os interesses se cruzam e, muitas vezes, se chocam.

Esse aspecto é igualmente elucidado por Motta-Roth e Hendges (2010, p. 36), ao especificarem que, ao fazer comentários avaliativos sobre os temas abordados num determinado livro, o resenhador “chama para si o papel de especialista (autoridade) frente ao leitor que, por sua vez, se constitui como membro (aspirante ou especialista) de uma comunidade acadêmica”. O objetivo do autor da resenha acadêmica, portanto, parece ser, segundo essas autoras, demonstrar autoridade dentro da disciplina, enquanto membro capaz de avaliar criticamente uma nova publicação, tendo como pano de fundo a literatura prévia na disciplina e sua habilidade em fazer julgamentos plausíveis e coerentes, fornecendo evidências para tanto.

Quanto à linguagem usada em resenhas, destaca-se o emprego de verbos no presente do indicativo, para descrever a atualidade e a relevância do tema (A internet é uma das ferramentas que mais se destaca nesse contexto), para descrever a organização do objeto resenhado, no caso de livro (A obra divide-se em duas partes) e para avaliá-lo (Um das contribuições do livro está em) (MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010). A avaliação, em geral, é feita por meio de julgamentos de valor, elogios e críticas, que vêm expressos por adjetivos (provocativo, belo, instigante, bom), advérbios (certamente, realmente, inegavelmente, pretensamente) e comentários vários sobre a obra (no trabalho cada tema é discutido com cuidado; o livro esgota-se em si mesmo; bem embasado teoricamente; sob a capa do discurso acadêmico etc.).

Como lembra Ferraz (2007), além de funcionarem como forma de atualização para muitos estudiosos, as resenhas acadêmicas ajudam na seleção bibliográfica, para a elaboração de trabalhos técnico-científicos, evitando-se, assim, perda de tempo com leituras desnecessárias.

Todavia, o que não se pode negar é que o gênero, tanto na esfera acadêmica como na jornalística cultural, se constitui de grande relevância e, conforme expõe Ferraz (2007), isso só é possível porque a resenha oscila da síntese para a análise e vice-versa, sendo o texto bem-sucedido se equilibrar esses dois aspectos.
Tendo em vista o fato de que, na literatura especializada sobre o gênero resenha pouco se fala a respeito da intertextualidade sob a ótica da Linguística Textual, vamos, a seguir, tratar do conceito sob esse enfoque teórico, para, na sequência, analisar como o fenômeno se manifesta no gênero.

RUIZ; FARIA – A intertextualidade no gênero resenha
Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 12, n. 1, p. 99-128, jan./abr. 2012


REFERÊNCIAS
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[1] “A descrição do gênero nesses termos deve ser tomada como uma constatação de como as pessoas escrevem resenhas em determinado espaço geográfico (resenhas publicadas em periódicos internacionais e em inglês) e temporal (década de 1990), e não uma norma a ser seguida” (MOTTAROTH; HENDGES, 2010, p. 29).

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