domingo, 21 de outubro de 2012

Literatura em sala de aula: da teoria literária à prática escolar


Ivanda Maria Martins Silva

Resumo: Pretende-se discutir o papel da literatura em sala de aula, considerando o processo de escolarização da leitura literária. Na escola, as estratégias de abordagem ao texto literário, geralmente, não se apresentam diversificadas, contribuindo para que o educando desenvolva uma compreensão mitificada e homogênea da literatura. De que modo certas noções da teoria literária podem contribuir para dinamizar as práticas de leitura literária no contexto escolar? O presente artigo tem como objetivo primordial ampliar as reflexões sobre leitura, literatura e escola, revelando como a teoria literária pode contribuir para estreitar as inter-relações entre o texto literário e o leitor.
Palavras-chave: Leitura, Literatura, Teoria da Literatura.

LEITURA E LITERATURA NA ESCOLA: ENCONTROS E DESENCONTROS

Diversos estudos já foram realizados,  visando investigar as inter-relações entre a leitura e a literatura no contexto escolar. Como argumentam Chartier e Hébrard (1995), há a presença de dois discursos: o da escola sobre a leitura e o da leitura sobre a escola. Parece-nos que não há uma sintonia entre esses dois tipos de discursos, na medida em que se observa um descompasso entre as práticas de leitura que circulam na escola e as discussões sobre leitura recorrentes fora do espaço escolar. 

É fato que as conexões entre leitura e literatura existem, tendo como suporte os discursos teóricos, os quais investigam a inter-relação entre as concepções de leitura, texto e literatura  presentes em sala de aula. Contudo, essas discussões teóricas geralmente perdem-se na prática de sala de aula, havendo mais “desencontros” que “encontros” a respeito  das conexões entre leitura, literatura e escola.  
Leitura, literatura e teoria literária deveriam estar estreitamente relacionadas no meio escolar, devido a vários motivos, dentre os quais citamos:

•  a própria natureza interdisciplinar do ato de ler que envolve contribuições de diversas áreas. No caso da leitura literária, o ato de ler é influenciado por estratégias cognitivas, lingüísticas, metalingüísticas, conhecimento do policódigo literário, noção de gênero literário, estilo de época no qual o texto está inserido, enfim, um conjunto de noções determinantes na interação do leitor com o texto;
•  o fato de a significação do texto literário ser construída a partir da participação efetiva  do receptor, o que torna evidente as relações dinâmicas entre a literatura e o leitor;
•  a teoria literária só existe em função da leitura e da literatura: esse é outro aspecto a ser considerado quando se trabalha o texto literário em sala de aula. A teoria literária deve estar presente na escola, subsidiando a prática do professor, no sentido de ampliar concepções críticas sobre o fazer literário e a recriação do texto pelo leitor, o que só ocorre no ato da leitura.

As relações entre leitura e  literatura nem sempre são analisadas, reavaliadas e praticadas como deveriam no contexto escolar. A leitura  ― como atividade atrelada à consciência crítica do  mundo, do contexto histórico-social em que o aluno está inserido ― ainda é uma prática que precisa ser mais efetivada no espaço escolar.
O papel da escola é o de formar leitores críticos e autônomos capazes de desenvolver uma leitura crítica do mundo. Contudo, na prática, essa noção ainda parece perder-se diante de outras concepções de leitura que ainda orientam as práticas escolares. 

Na escola, a leitura é praticada tendo em vista o consumo rápido de textos, ao passo que a troca de experiências, as discussões sobre os textos, a valorização das interpretações dos alunos tornam-se atividades relegadas a segundo plano. A quantidade de textos “lidos” (será que de  fato são “lidos” pelos alunos?) é supervalorizada em detrimento da seleção qualitativa do material a ser trabalhado com os alunos. 

Concordamos com Britto (In: EVANGELISTA E BRANDÃO, 1999:84), quando afirma que “a leitura tem de ser pensada não apenas como procedimento cognitivo ou afetivo, mas principalmente como ação cultural historicamente constituída”. Essa noção da leitura como ato de posicionamento político diante do mundo precisa estar
presente na prática de sala de aula. Os alunos deveriam ser capazes de “experienciar” o ato de ler como uma ação cultural, em que o leitor tem papel dinâmico nas redes de significação do texto.

A leitura e a literatura sofrem um  processo de escolarização, no qual o artificialismo revela-se de modo recorrente por meio de atividades, exercícios escolares isolados, sem que o aluno perceba a leitura como “ação cultural historicamente constituída”.  Silva (1998a: 61) comenta o tratamento dado ao texto literário na escola por meio das fichas de interpretação, as quais desmotivam o aluno e incutem no educando a idéia de que fruir o texto literário é elaborar a ficha encomendada pelo professor com informações, tais como: título da obra, nome do autor, descrição das personagens principais e secundárias, além de outros detalhes superficiais que não avaliam, de fato, a compreensão do texto.

Vários autores analisam o processo de escolarização do ato de ler, tendo em vista as concepções de leitura que norteiam o trabalho dos professores em sala de  aula. Kleiman (1996), por exemplo, desenvolve uma análise crítica sobre as concepções de leitura que circulam no espaço escolar. Conforme a autora, a escola ainda prioriza a leitura como mera decodificação, pressupondo um leitor passivo, cuja participação volta-se primordialmente para a superfície do  texto. Além dessa concepção, a leitura é trabalhada no espaço escolar tendo como objetivo final alguma estratégia de avaliação, o que coloca o aluno diante de uma tarefa árdua: é preciso ler para fazer exercícios, provas, fichas de leitura, resumos, enfim, o ato de ler visa cumprir tarefas escolares. 

Na medida em que as leituras são impostas, objetivando o cumprimento de tarefas puramente escolarizadas, o ato  de ler passa a ser compreendido pelos alunos como uma obrigação e as escolhas pessoais dos leitores não são privilegiadas. Essa concepção autoritária da leitura promove um apagamento da voz do aluno enquanto leitor e produtor de textos. Segundo Kleiman (1996, p.24):

"é durante a interação que o leitor mais  inexperiente compreende o texto: não é durante a leitura silenciosa, nem durante  a leitura em voz  alta, mas durante a conversa sobre aspectos relevantes do texto". 

É justamente na troca de experiências  e histórias de leitura que, de fato, ocorre a interação entre textos e leitores. Contudo, a escola parece não estimular a função interativa das práticas de leitura, ao privilegiar atividades que desmotivam o aluno e provocam a aversão dos educandos ao mundo dos livros. 

Outro problema no espaço escolar diz respeito à utilização do livro didático como um instrumento preponderante na exploração da leitura. Os livros didáticos, ao apresentarem, em sua maioria, a compreensão textual com base em esquemas de interpretação preestabelecidos, restringem a recepção do aluno-leitor, uma vez que não lhe é dada a oportunidade de manifestar a  sua leitura. Conforme Kleiman e Moraes (1999, p.66):

“o livro didático, quando usado como única fonte de conhecimento na sala de aula, favorece a apreensão fragmentada do material, a memorização de fatos desconexos e  valida a concepção de que há apenas uma leitura legítima para o texto.”

O problema, na verdade, geralmente não está no material didático, mas, sobretudo, no modo de utilização dos recursos que são trabalhados em sala de aula.
Vários manuais didáticos já apresentam uma diversidade de atividades propostas aos alunos, além da variedade de gêneros que são apresentados ao leitor na tentativa de persuadi-lo à prática da análise textual.

Embora vários manuais didáticos produzidos contemporaneamente discutam a literatura à luz das contribuições da teoria e crítica literárias, muitos ainda revelam concepções estigmatizadas acerca da literatura. Em alguns livros didáticos, por exemplo, observam-se exercícios que exploram a leitura de textos literários com o predomínio de perguntas que requerem apenas  uma leitura superficial, ou seja, o leitor não é estimulado a inferir, preencher  as entrelinhas e reconstruir as pistas textuais até atingir um nível maior de criticidade no ato de ler. Nesse sentido, o leitor
não consegue desenvolver uma compreensão mais ampla do texto literário, pois o papel dinâmico do receptor é subestimado, sufocado pela leitura imposta pelos roteiros de interpretação dos livros didáticos. 

Na escola, diante da imposição das leituras idealizadas pelos professores e pelos livros didáticos, constrói-se o mito de que a leitura literária é difícil, complexa e inacessível para os alunos, subestimando-se a capacidade interpretativa dos educandos. Soma-se a isso o fato de a escola enfatizar a leitura de textos clássicos, com o objetivo de, à primeira vista, “facilitar” o contato do aluno com obras canônicas, para depois desenvolver a leitura de textos mais contemporâneos e experimentais. A leitura de textos produzidos contemporaneamente e a inclusão de obras que apresentam uma estruturação pouco linear tornam-se práticas que ainda precisam ser mais valorizadas em sala de aula. Não estamos querendo questionar a
importância da leitura dos  clássicos, mas sim o modo como esses textos são impostos para os alunos no espaço escolar. 

Na verdade, a escola parece não conseguir instrumentalizar, de modo eficaz, o aluno para a leitura dos clássicos. É  fato sabido que os alunos têm acesso a roteiros já prontos de interpretação, além de praticarem as leituras de adaptações de clássicos que, na maioria das vezes, deturpam a obra original. Desse modo, as dificuldades com a leitura tornam-se intensas, pois os alunos não são adequadamente preparados para o contato com textos clássicos ou contemporâneos, principalmente se considerarmos os casos de textos que investemna desconstrução da linguagem, por meio  de uma organização discursiva pouco linear. 

Ao desenvolver mais enfaticamente a leitura de obras “clássicas”, a escola não apresenta aos alunos a diversidade de textos produzidos contemporaneamente, os quais geralmente tentam subverter e criticar a produção literária já canonizada.
Textos que rompem com as estratégias discursivas tradicionais e inauguram novos padrões tornam-se um desafio para os leitores acostumados à leitura de obras com estruturas convencionais.  

O professor deve realizar seleção de textos literários,  tendo em vista os interesses e a capacidade interpretativa dos alunos. É preciso mostrar que qualquer obra literária é formada por meio do entrelaçamento de registros lingüísticos e estéticos. Além disso, é importante que o aluno tenha a liberdade de selecionar seus próprios textos, a partir de suas experiências prévias de leitura, no sentido de descobrir o prazer de ler.
 O aluno deveria ser orientado para compreender o papel estético da literatura, bem como a função social desta manifestação artística. Não encontrando uma relação direta entre o texto literário e o seu cotidiano, o aluno não percebe a literatura como espaço de construção  de mundos possíveis que dialogam com a realidade. É fundamental que a escola aborde a função social da literatura como uma possibilidade de "ler o mundo", contribuindo, assim, para a formação de leitores críticos, capazes de articular a leitura de mundo à leitura produzida em sala de aula.
De acordo com Silva (1998a:56),

“em certo sentido, a leitura de textos se  coloca como uma ‘janela para o mundo’. Por isso mesmo, é importante que essa janela fique sempre aberta, possibilitando desafios cada vez maiores para a compreensão e decisão do leitor”.

A leitura literária deveria ser trabalhada na escola como essa “janela para o mundo”. A obra  literária poderá, assim, ser recriada e reinventada pelos leitores, tendo em vista as diferenças de repertórios, de experiências prévias de leituras, bem como a diversidade e heterogeneidade de expectativas dos leitores.
Defendendo a necessidade de o leitor “experienciar” a obra literária, Matos (1987: 20) afirma:

“o ensino da literatura é, em rigor, impossível, pela simples razão de que a experiência não se ensina. Faz-se. Mas podem e devem criar-se as condições para essa experiência: removendo obstáculos e proporcionando ocasiões.” 

A experiência da literatura, conforme Hester (1972, p.284), raramente ocorre em sala de aula. Segundo o autor,  podemos preparar nossos alunos para “experienciar” um texto literário e devemos intensificar  essa atividade. No entanto, não estamos plenamente aptos a produzir essa experiência como uma realidade mútua para nós e outros leitores. Em outros termos, a experiência da leitura literária é de natureza individual, varia de leitor a  leitor e deve ocorrer de forma natural, considerando a privacidade do leitor em sua relação com o objeto literário. Cabe à escola propiciar ou criar atividades que permitam ao aluno o desenvolvimento dessa experiência estética. 

Em sala de aula, a leitura consolida-se cada vez mais como atividade atrelada à obrigação da rotina de trabalho, ao passo que o ato de ler como forma lúdica e prazerosa de reconstruir mundos possíveis revela-se uma prática pouco discutida e concretizada. Como já referimos, a imposição da leitura do livro didático e das leituras “prontas”, idealizadas pelo professor, sufocam a descoberta da leitura por prazer. Tais fatores certamente inibem o aluno, direcionam sua compreensão no sentido de ver a literatura como fenômeno que se pode decorar para se fazer um teste, um exercício, ou  para responder às questões objetivas do vestibular. Os alunos afastam-se, assim, dos textos literários, encaram a literatura como algo antiquado, complexo, distante de sua realidade. 

Além desses fatores, a aversão de  muitos alunos à prática da leitura vivenciada no contexto escolar também  é reflexo das concepções tradicionais de ensino que ainda resistem em algumas escolas. A noção de língua como sistema abstrato de signos, a compreensão de texto como mera soma de palavras ou de frases descontextualizadas, como também o conceito de leitura como simples decodificação são perspectivas que ainda orientam o ensino de língua/literatura em várias escolas. 

Em geral, as escolas formam o “leitor reprodutor”, já que há limitações na exploração didática da leitura com o  predomínio de perguntas que incutem, no aluno, a noção de leitura como "constatação" e não como construção ou negociação de sentidos. Desse modo, as estratégias  inferenciais são pouco recorrentes e o aluno não consegue entender o lado lúdico e criativo da leitura. 

Silva (1998a:11) afirma que a escola forma “ledores”, mas não consegue promover o desenvolvimento de leitores críticos, uma vez que, no contexto de sala de aula, a leitura é trabalhada como uma prática rotineira e mecânica. Ao sair da escola, o indivíduo geralmente abandona o  hábito da leitura, pois encara tal atividade como algo atrelado aos exercícios escolares. 
É de esperar-se, portanto, que a escola não consiga pleno êxito no projeto de formar leitores críticos, pois é criado o mito de que a leitura é uma tarefa escolarizada que só faz sentido dentro dos limites da sala de aula. Fora da escola, o propósito da leitura como atividade obrigatória torna-se ineficaz e poucos são os que continuam trilhando o caminho de ler o mundo dos textos e ler o mundo nos textos. 

Diante das dificuldades no tratamento dado à leitura em sala de aula, surgem alguns questionamentos: como desenvolver atividades com a literatura num contexto escolar que não privilegia a formação de  leitores críticos e autônomos? Como estimular os alunos à leitura literária? Enquanto professores, somos “ledores” ou leitores?

Esses e outros questionamentos somam-se aos desafios de se democratizar a leitura num país repleto  de desigualdades e injustiças sociais que marcam um abismo intransponível entre os leitores e os não-leitores.  

Vivemos uma situação paradoxal. Por um lado, no contexto de revolução tecnológica, a Internet torna-se uma ferramenta importante para a socialização e crescente divulgação do conhecimento. O indivíduo precisa cada vez mais ler, a fim de aumentar sua bagagem cultural e suas experiências de leitura. Por outro lado, apesar desses avanços nas novas tecnologias, enfrentamos um processo de massificação cultural, em que a maioria dos indivíduos não consegue fazer uma leitura crítica do mundo. Nesse contexto, a leitura é praticada de modo superficial, devido à rapidez e à velocidade das informações que trafegam na Internet. 
Estudos realizados por Jakob Nielsen (apud Silva, 2003) mostram como os usuários leem na Internet, ou seja, 79% dos leitores olham rapidamente o conteúdo da página e apenas 16% desse total fazem a leitura do texto palavra por palavra.

Esses dados comprovam a superficialidade  das práticas de leitura realizadas na web, devido à própria natureza dinâmica do ciberespaço, caracterizado pelo cruzamento de vários textos, linguagens,  códigos, entre outros recursos que despertam o interesse do leitor-navegador ao explorar o universo oceânico de informações da Internet.

A leitura literária praticada na escola precisa se adaptar rapidamente ao dinamismo do mundo digital. Usada como  instrumento para a  leitura crítica do mundo, a obra literária tem importância capital quando, como numa espécie de jogo, simula os conflitos da realidade e convida  o leitor aos desafios da leitura. Como afirmam Bordini e Aguiar (1993: 27), ler  a obra literária é imergir num universo imaginário organizado, carregado de pistas que o leitor deve seguir se quiser levar a leitura, ou melhor, o “jogo literário” a termo. Nesse sentido, a literatura pode ser trabalhada como um meio de os alunos ampliarem a compreensão crítica do mundo, investindo-se na formação de leitores críticos e conscientes de seu papel no ato dinâmico da leitura. 

Não é tarefa fácil estreitar as relações entre leitura, literatura e escola, mas é preciso repensar a concepção de leitura norteadora da prática pedagógica, bem como reavaliar a própria noção de literatura apresentada para os alunos a partir das atividades desenvolvidas em sala de aula. 
Na perspectiva de Magnani (1989: 29), discutir as conexões entre leitura, literatura e escola é repensar a dicotomia entre prazer e saber, além de pensar essas relações do ponto de vista de seu funcionamento sócio-histórico. 

LEITURA, LITERATURA E TEORIA DA LITERATURA NO ENSINO MÉDIO

Quando se discute a presença da literatura na escola, é pertinente considerar as idéias de alguns autores, como Beach  e Marshall, por exemplo, no sentido de estabelecer distinções entre a  leitura da literatura e o  ensino da literatura. A compreensão desses dois níveis implica  posturas distintas em face do objeto literário, o que, conseqüentemente, influenciará a interação texto-leitor na escola.

Segundo Beach e Marshall (1991: 38), a leitura da literatura está relacionada à compreensão do texto, à experiência literária vivenciada pelo leitor no ato da leitura, ao passo que o  ensino da literatura configura-se como o estudo da obra literária, tendo em vista a sua organização estética. Na verdade, esses dois níveis estão imbricados, na medida em que ao experienciar o texto, por meio da leitura literária, o aluno também deveria ser instrumentalizado, a fim de reconhecer a literatura como objeto esteticamente organizado. No  entanto, a escola parece dissociar esses dois níveis, desvinculando o prazer de ler o texto literário (produzido pela  leitura da literatura) do reconhecimento das singularidades estéticas da obra (proporcionado pelo estudo/ensino da literatura).

É preciso que a escola amplie mais atividades, visando à leitura da literatura como atividade lúdica de construção e reconstrução de sentidos. O aluno-leitor deve sentir-se motivado a ler o texto,  independentemente da imposição das tarefas escolares requeridas pelos professores. Contudo, parece-nos que o contexto escolar privilegia mais o ensino da literatura, no qual a leitura realizada pelos professores é diferente daquela efetivada pelos alunos, pois a diversidade de repertórios, conhecimento de mundo, experiências de leitura influenciam diretamente o contato do leitor com o texto. Tanto a  leitura da literatura, quanto o  ensino da literatura deveriam estar presentes no contexto escolar de modo articulado, pois são dois níveis dialogicamente relacionados.

Como afirmam Beach e Marshall (1991: 39), o desafio do professor é ajudar  os alunos a elaborar ou rever suas interpretações iniciais, sem descartar totalmente suas primeiras leituras. O professor  deve colaborar com os alunos, visando à construção/reconstrução de interpretações e não simplesmente apresentando leituras já prontas. Conforme esses autores (1991: 09), uma das formas de mapear alguns problemas relacionados ao ensino de literatura é considerar a interação entre professor, alunos e texto. 

É preciso, ainda segundo Beach e Marshall, que o professor reconheça dois níveis de leitura. Por um lado, há a leitura realizada pelo aluno que está construindo sua interpretação a partir, muitas vezes, de um único contato com o texto. Por outro lado, há a leitura do professor, em que entram fatores mais complexos como o saber lingüístico, bem como o conhecimento de dados biográficos e do contexto histórico, enfim, a noção de elementos instrumentais específicos da teoria e crítica literárias.
Ainda conforme os autores, o professor deve colocar o aluno frente à diversidade de
leituras do texto literário, para que o educando reconheça que o sentido não está no texto, mas é construído pelos leitores na interação com textos.

É justamente a partir dessa interação do aluno com textos que o estudo da literatura em sala de aula torna-se significativo. É fundamental valorizar o papel do leitor e transformar a visão ainda tradicional que norteia a prática pedagógica de vários professores, baseada em análises imanentes em face da obra literária.

Objeto de análises superficiais, o texto literário é geralmente tratado em sala de aula de modo isolado, como espécie de expressão artística que por si só já carrega significação própria e independe da atualização do aluno-leitor. Além disso, como afirma Rouxel (1996: 73), a escola cultiva uma visão tradicional da literatura, considerada como um conjunto de textos a ser admirado, ou ainda, caracterizada por um “bom estilo”, digno de ser imitado pelos alunos. A concepção de literatura como objeto artístico ancorado num processo histórico-social precisa ter uma penetração maior no espaço de sala de aula. 

Na perspectiva de Zilberman (2001), a escola, a crítica literária, a academia e a imprensa são instituições  capazes de conferir e legitimar o estatuto de certas produções artísticas em detrimento de outras. Segundo a autora (2001: 82): 

Essas entidades estabeleceram e fixaram a concepção de literatura enquanto “belas letras”, operada a partir da consolidação da sociedade burguesa e do capitalismo, garantindo sua permanência. A seguir, passaram a colocar normas e exigências aos criadores, que eles devem adotar ou não para serem reconhecidos pelo meio e aceitos enquanto artistas.

A noção da literatura como “belas letras”, apontada por Zilberman (2001), ou como um conjunto de textos marcados pelo uso de uma “bela linguagem”, conforme Rouxel (1996), promove, a nosso ver,  uma elitização das obras literárias, supervalorizando o cânone literário, o que  pode distanciar a literatura do aluno. A visão da escola sobre a literatura difere consideravelmente da noção que o alunoleitor tem acerca do literário. É preciso repensar os julgamentos de valores disseminados pelas instituições que abordam  a literatura sob prismas distintos (a escola, a crítica literária, a imprensa, etc..), quando consideramos que cabe ao leitor construir o seu próprio “cânone literário”, valorizando seu repertório de leituras. 

Nesse sentido, o texto literário não pode ser compreendido como objeto isolado, sem as interferências do leitor, sem o conhecimento das condições de produção/recepção em que o texto foi produzido, sem as contribuições das diversas disciplinas que perpassam o ato da leitura literária, inter/multi/transdisciplinar pela própria natureza plural do texto literário. 

Retomamos a conhecida citação de Barthes (In: LAJOLO, 1993: 15), na qual o autor apresenta uma visão interdisciplinar da literatura: 

“se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário.”

Mas essa visão da literatura como disciplina que envolve e co-relaciona outras áreas do conhecimento (História, Filosofia, Geografia etc.) ainda precisa ser mais difundida no espaço escolar. 

O texto literário é plural, marcado pela  inter-relação entre diversos códigos  (temáticos, ideológicos, lingüísticos, estilísticos etc.) e o aluno deve compreender a  interação entre literatura e outras áreas que se inter-relacionam no momento da constituição do texto. Segundo Reuter (1986: 76), “a leitura é um objeto largamente transdisciplinar”, por isso qualquer discussão teórica sobre o ato de ler deve considerar a reflexão sob uma perspectiva mais ampla que envolva as diversas áreas atreladas à prática da leitura como fenômeno sociocultural.

A literatura, concretizada a partir da leitura, também permite uma abordagem interdisciplinar, capaz de revelar ao aluno o diálogo entre as características estéticas do texto e as motivações históricas, sociais, políticas, filosóficas e psicológicas que contribuíram para a constituição da polissemia revelada no âmbito textual. No entanto, a literatura ainda  parece ser tratada em sala de aula como objeto decodificável, tendo como base os limites estreitos da superfície textual e as noções do certo e do errado. A partir dessas noções, a escola contesta a relatividade do erro na leitura literária, não levando em consideração a natureza polissêmica do texto literário e o papel dinâmico do aluno-leitor na recepção textual. (cf. ROUXEL, 1996:  81). 

Vários são os fatores que dificultam o tratamento dado à literatura em sala de aula, um deles refere-se à metodologia utilizada no Ensino Médio, efetivamente orientada para o vestibular como um fim em si mesmo. O objetivo principal de muitas escolas e diversos cursinhos é ensinar para o vestibular, conquistar o maior índice de aprovação nos exames. 

Como explorar nos limites estreitos das questões objetivas, impostas nos vestibulares, a plurissignificação do texto literário? Como exigir que o aluno leia as
entrelinhas, estabeleça a relação entre  texto-contexto e perceba a dimensão simbólica da literatura, se a metodologia usada no Ensino Médio volta-se para uma leitura do texto já instituída pela escola, pelo professor e pelos livros didáticos?                     

Pode-se constatar que, embora muito  discutido do ponto de vista teórico, o ensino de literatura continua sendo um desafio para pesquisadores e professores. É preciso que as discussões teóricas não se percam no vazio, mas que apresentem contribuições significativas para propostas metodológicas sobre o tratamento do texto literário em sala  de aula. A escola tem papel primordial na formação de leitores/produtores de textos e a literatura pode contribuir para o desenvolvimento dos alunos como usuários da língua que ampliarão as estratégias comunicativas, a partir da leitura crítica, compreensão e produção de textos diversos.

É necessário que o aluno compreenda a  literatura como fenômeno cultural, histórico e social, como instrumento político capaz de revelar as contradições e conflitos da realidade. No diálogo entre o mundo empírico e o universo ficcional, a literatura pode produzir um significado para o contexto em que vivemos. 
Ao trabalhar com a leitura literária, o professor deve orientar os alunos para a função ideológica dos textos literários, na medida em que:

“antes de se transformar em discurso estático, subverter a ordem provável da língua para alcançar determinados efeitos de comunicação, a literatura ‘se alimenta’ na fonte de valores de cultura”. (GONÇALVES FILHO, 2000: 104).

Na maioria das vezes, o aluno não entende que a obra literária é  produto de um contexto amplo e, por conseguinte, visões de mundo, valores ideológicos de uma época, costumes, enfim, a diversidade de elementos culturais participa ativamente da constituição do texto. 
Concordamos com Lopes (1994: 368): 

“ensinar literatura não pode deixar de ter em conta esta dupla dimensão dos textos literários pela qual, ao mesmo tempo que fazem parte da cultura, e por  conseguinte do campo da opinião ou das significações consensuais, são sobretudo o abalar destas.”

Assim, ensinar literatura não é apenas elencar uma série de textos ou autores e classificá-los num determinado período literário, mas sim revelar para o aluno o caráter atemporal, bem como a função  simbólica e social da obra literária.
Retomamos aqui as considerações de Beach e Marshall (1991: 17):

“o estudo da literatura poderia ser justificado por sua habilidade para ajudar os alunos a compreenderem a si próprios, sua comunidade e seu mundo mais profundamente”. 

É essa integração entre o texto literário e a dimensão sociocultural que a escola deve proporcionar aos alunos, levando-os a perceber as possibilidades de significação que o texto literário permite, enquanto objeto artístico polissêmico que transgride normas e regras, envolvendo o leitor num  jogo de construção /reconstrução de sentidos. No entanto, a  tarefa de apresentar ao aluno o caráter polissêmico da leitura literária, valorizando a recepção do leitor na significação textual, ainda parece ser um desafio no contexto escolar.  Conforme Kramsch (In: JACOBUS, 1996: 134), os alunos precisam entender o texto literário como uma forma de (re)descoberta de sua própria identidade, por meio da reescrita que se concretiza no ato de ler, momento em que o leitor responde ativamente ao texto. 
Rosenblatt (In: JACOBUS, 1996: 141) afirma que a obra literária oferece uma oportunidade de o leitor se envolver numa experiência de reconstrução dos acontecimentos vividos pelas personagens. Enquanto alguns críticos acreditam que é perigoso deixar o texto à mercê simplesmente da concentração exclusiva das opiniões pessoais dos alunos, Rosenblatt argumenta que precisamos ajudar o aluno a desenvolver uma leitura estética da obra. Os professores precisam encorajar os alunos para que estes desenvolvam autonomia no ato da leitura. O papel do professor é crítico ao selecionar obras que permitam uma interação mais produtiva, além de utilizar questões que possam deixar clara a relação entre a experiência do aluno e o texto. 

Com base nessas reflexões, insistimos que a teoria literária precisa subsidiar a prática pedagógica dos professores, no  sentido de transformar os alunos em leitores críticos da literatura. A sala de aula ainda é um espaço marcado pelas abordagens formalistas e estruturalistas que analisam o texto literário como produto acabado, sem valorizar a interferência  do leitor na atualização da significação textual. As abordagens que priorizam a interação texto-leitor precisam ter mais penetração no contexto escolar, a fim de se valorizar mais o papel dinâmico do leitor na recepção textual.   

A educação literária proposta pela escola merece ser reavaliada, a fim de que nossos alunos-leitores possam encontrar  razões concretas para o estudo da literatura como fenômeno artístico atrelado  às transformações históricas, sociais e culturais. Retomando as considerações de Leahy-Dios (2001), de que adianta “ensinar” os alunos a memorizar características dos diferentes estilos de época, situando-se a produção literária em “blocos monolíticos de períodos literários”, se os educandos não conseguem ter uma compreensão mais ampla do objeto literário?

Talvez uma forma de repensar o  processo de ensino-aprendizagem da literatura na escola seria a busca de  sintonia entre a prática pedagógica dos professores e as contribuições da teoria literária. Elencamos, a seguir, alguns objetivos que podem subsidiar o trabalho com o texto literário em sala de aula:

•  articular leitura crítica, análise e interpretação do texto literário, visando atingir um discurso crítico desenvolvido pelo aluno, a partir do reconhecimento das singularidades estéticas do fazer literário; 
•  apresentar distinções entre os gêneros literários, percebendo também o diálogo entre características de diversos gêneros numa mesma obra literária;
•  analisar a obra literária  sob uma ótica interdisciplinar, reconhecendo as relações entre Literatura e Sociologia, Literatura e História, Literatura e Psicanálise, entre outras;
•  desenvolver estudos da obra literária baseados no interculturalismo;
•  considerar as diversas correntes teóricas que se debruçaram sobre o fazer literário com perspectivas diferentes (Formalismo, Estruturalismo, Pósestruturalismo, Sociologia da Literatura, Sociocrítica, Fenomenologia da Leitura, etc.);
•  estabelecer distinções entre Teoria da Literatura, Crítica Literária e História da Literatura;
•  desenvolver estudos intersemióticos, considerando as relações entre literatura e outras expressões artísticas (literatura e pintura, literatura e música, etc.). 

Os tópicos levantados são apenas um breve resumo de alguns subsídios teóricos que podem contribuir para minimizar as distâncias que ainda existem entre a literatura e o leitor no espaço escolar. O fato de a teoria literária refletir sobre o ato da leitura também pode trazer repercussões significativas na escola, no sentido de estreitar as relações entre texto-leitor, literatura-leitor, teoria-prática. 
O não-reconhecimento das convergências entre leitura, literatura e teoria literária é um obstáculo que, certamente, dificulta o trabalho dos professores. É fundamental que se promova uma reavaliação das metodologias direcionadas ao ensino de literatura, visando à exploração de alternativas didáticas de ensinoaprendizagem capazes de motivar os alunos à leitura por prazer, à busca de conhecimento, à leitura crítica do texto  articulada com a compreensão crítica do mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
  
Enquanto não houver uma articulação entre leitura, literatura e teoria literária, as aulas de literatura no Ensino Médio, por exemplo, continuarão a ser ministradas, tendo em vista, primordialmente, o reconhecimento das características estéticas dos períodos literários. As aulas de literatura ficarão restritas ao âmbito da História da Literatura, sem que o aluno consiga, de fato, “experienciar” o texto literário de modo eficaz. 

É preciso que o ensino de literatura busque meios de persuadir o aluno-leitor a encontrar, na leitura do texto literário, um espaço lúdico de reconstrução de sentidos, em que a imaginação do leitor  é guiada pelos indícios textuais no ato dinâmico da leitura.

A escola ainda parece enfatizar uma  "educação pela literatura", quando o texto torna-se espaço intermediário para atividades outras que não consideram a polissemia da obra literária. Na verdade, concordamos com Lajolo (apud AMARAL,
1986: 05) quando propõe uma "educação para a literatura", despertando o aluno para a compreensão do texto enquanto multiplicidade de significados dentro das esferas cultural, ideológica, social, histórica e política.

A teoria literária é capaz de fornecer instrumentos ao professor do Ensino Médio, no sentido de ampliar o conceito da literatura enquanto instrumento de transformação social. É importante, pois, estreitar as relações entre teoria literária e ensino de literatura, pois enquanto a teoria não ultrapassar os “muros” da academia e não penetrar consideravelmente no contexto escolar, as aulas de literatura continuarão restritas ao estudo biográfico, às questões puramente formais, gramaticais ou à História da Literatura, ao passo que a multissignificação do texto será relegada a um segundo plano de análise.

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Sobre a autora:

Ivanda Maria Martins Silva (ivanda@fir.br) - Doutora em Letras pela UFPE (2003), é professora de Língua Portuguesa da Faculdade Integrada do Recife (FIR) e de Prática Pedagógica das Faculdades Integradas da Vitória de Santo Antão (FAINTVISA). Tem publicações nas áreas de: ensino de literatura, letramento digital, leitura literária e novas tecnologias, literatura pernambucana. Atua como supervisora do Núcleo de Divulgação Científica da Coordenação de Pesquisa, Pós-graduação e Empreendedorismo (COPPE/FIR) e  coordena a publicação científica  CETEC. Revista de Ciência, Empreendedorismo e Tecnologia (revista_cetec@fir.br).

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