Jaguar & Sérgio Augusto
O Pasquim. Antologia Vol. I – 1969-1971
Editora Desiderata, 2006, 352 p.
Memória viva do nosso passado recente, a publicação de O Pasquim – Antologia – Vol I, nos
serve como um texto de pesquisa extremamente picante e sugestivo, porém
revelador de um sofrimento intenso vivido pelo povo brasileiro ao longo do
regime de poder que se instalou no Brasil em 1964.
A Antologia é muito rica na medida que podemos constatar em um documento
representativo da angústia vivida naqueles maus tempos, que diante da tensão, o
sujeito busca por várias formas de saída. A angústia desencadeada pela escassa
autonomia na falta de expressão moveu uma geração de intelectuais em direção a
um lugar que pudesse transformá-la em produção.
A obra apresenta textos a partir de 1/06/1969 e traz a publicação
realizada do número 1 ao 150. Logo no início, encontramos o estilo bem
delineado, característico da intenção destiladora da publicação. No texto Independência, é? Vocês me matam de rir, o parágrafo inicial recorta o termo independência
para jogar com o respaldo sustentado pela
publicação que se apresenta e a intenção do que se pretende causar. Diz: “Meu
caro Jaguar, você me garante que O
Pasquim vai ser independente. Tá bem, Jaguar. O Claudius, o
Tarso, o Prósperi e o Sérgio Cabral também acreditam nisso? Tá bem, Claudius,
Tarso, Prósperi Sérgio. Podem começar a contagem regressiva. Independente, com
larga experiência no setor, falo de cadeia (perdão, cadeira)”.
O que parece interessante n’O
Pasquim é que a utilização proposital dos deslizes parece
deixar as formações do inconsciente para um outro lugar. Ali, onde o ato falho se desnuda da sua função,
burla os olhos limitados da censura e convoca o leitor para trabalhar em função
do chiste. É um outro tempo que se
apresenta na publicação. É como se fosse obrigatório não confundir os
deslizes do sujeito em análise, quando se ocupa da construção de sua verdade, e
provocasse no leitor oprimido diante de uma realidade política o desejo de
aguçar saídas em função da transgressão.
Conseqüentemente, fica acesa a possibilidade da formação de novos laços
sociais.
Nisso O Pasquim cumpriu uma função muito especial. Os laços silenciosos causados em
função do que foi publicado criam uma espécie de dívida de toda uma geração
perante este instrumento que se tornou de utilidade pública. A intenção híbrida
de trazer o político escrito lado a lado com uma inscrição pulsional traz
ilustrações que, se sustentando no corpo desejável de uma bela mulher, fala
mais que o visto. Assim, a imagem não é somente a imagem; é uma intenção de
atravessamento que ao mesmo tempo precisa de um corpo que encarne um desejo de
uma gente cambaleada pela opressão.
Fica muito clara a referência ao perigo e o desejo de desafiar em cada
leitor uma solução para o impasse, como se vêem nas notas que se somam nos
trabalhos apresentados. Quando se refere aos humoristas destaca-se em um P. S.
aposto neste mesmo trabalho:
“Não se esqueça daquilo que eu te disse: nós, os humoristas, temos bastante
importância para ser presos e nenhuma para ser soltos”.
Nada mais inteligente e direto, ao tempo que aliciador de novos laços.
O perigo sempre estava à vista.
Por estes motivos O Pasquim foi além de tudo uma escola.
Ensinou a burlar a mediocridade linear do pensamento imposto na época
pelo poder. Exemplos inquestionáveis desta presença podem ser vistos na
publicação de 26 de maio de 1970. Apresenta um texto cheio de recortes que
colocam em evidência mensagens contundentes e chamativas, para revelar na
literalidade das entrelinhas o alívio da tensão causada. Este texto e trabalho
artístico pertencem a Ziraldo e Caulos. Vejamos: ZAGALO ESTÁ DE
CASO.
A frase que acompanha a mesma lógica de impressão complementa:
COM PAULO CESAR. E lá nas
entrelinhas destas duas frases o que aparece em letras miúdas é: PENSANDO: só acredita na seleção.
Após uma leitura atenta, é impossível não ser atingido pelo riso da quebra
de tensão, gerada pelo texto ressaltado e a associação feita com os personagens
envolvidos na pseudo-história.
São várias as montagens: TOPO
GIGIO É patrocinado pela Gilette; SOMOS CONTRA todos aqueles que dizem que
somos contra O GOVERNO. E o cabeçalho adverte: Para
quem sabe ler um pingo é letra. O importante não é o texto, mas o que está nas entrelinhas. Ao final, rompe com o dito e diz: “(...) não haverá
entrelinhas nestas entrelinhas?”.
A questão é que entre paródias de filmes como LIXOSTORI e entrevistas imaginárias
com cognomes de famosos do mundo da literatura e do campo das artes como Proust, Genet, Tchaikovski, Oscar Wilde e outros em 200 OU 300
COISAS que a humanidade foi obrigada a ficar sabendo sobre o comentarista
político FAULO PRANCIS, O Pasquim cumpriu uma missão precípua
no imaginário brasileiro. Revirou de pernas
pro ar a lógica vigilante de um tempo difícil, provando
que, quando tudo estiver comprometido, resta o pensamento, ainda que seja para
assentar o próprio desejo como fizeram os monges dirigidos por Antonio Pacômio
no movimento dos ascetas do deserto durante o tempo do cristianismo primitivo.
Por essas e outras, a leitura de O
Pasquim é indispensável, para vermos que o inconsciente não
pode se transformar em um pedaço de carne inerte. Ele está sempre presente de
forma a dar a cada um pensante formas de se constituir em lugares, os mais insólitos
possíveis, na tarefa de produzir saídas frente ao mal-estar que se renova em
cada ato.
Henrique Figueiredo Carneiro
Professor Titular do Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza
henrique@unifor.br
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