sábado, 20 de outubro de 2012

Resenha de Livro - O PASQUIM


Jaguar & Sérgio Augusto
O Pasquim. Antologia Vol. I – 1969-1971
Editora Desiderata, 2006, 352 p.

Memória viva do nosso passado recente, a publicação de O Pasquim – Antologia – Vol I, nos serve como um texto de pesquisa extremamente picante e sugestivo, porém revelador de um sofrimento intenso vivido pelo povo brasileiro ao longo do regime de poder que se instalou no Brasil em 1964.
A Antologia é muito rica na medida que podemos constatar em um documento representativo da angústia vivida naqueles maus tempos, que diante da tensão, o sujeito busca por várias formas de saída. A angústia desencadeada pela escassa autonomia na falta de expressão moveu uma geração de intelectuais em direção a um lugar que pudesse transformá-la em produção.
A obra apresenta textos a partir de 1/06/1969 e traz a publicação realizada do número 1 ao 150. Logo no início, encontramos o estilo bem delineado, característico da intenção destiladora da publicação. No texto Independência, é? Vocês me matam de rir, o parágrafo inicial recorta o termo independência para jogar com o respaldo sustentado pela publicação que se apresenta e a intenção do que se pretende causar. Diz: “Meu caro Jaguar, você me garante que O Pasquim vai ser independente. Tá bem, Jaguar. O Claudius, o Tarso, o Prósperi e o Sérgio Cabral também acreditam nisso? Tá bem, Claudius, Tarso, Prósperi Sérgio. Podem começar a contagem regressiva. Independente, com larga experiência no setor, falo de cadeia (perdão, cadeira)”.
O que parece interessante n’O Pasquim é que a utilização proposital dos deslizes parece deixar as formações do inconsciente para um outro lugar. Ali, onde o ato falho se desnuda da sua função, burla os olhos limitados da censura e convoca o leitor para trabalhar em função do chiste. É um outro tempo que se
apresenta na publicação. É como se fosse obrigatório não confundir os deslizes do sujeito em análise, quando se ocupa da construção de sua verdade, e provocasse no leitor oprimido diante de uma realidade política o desejo de aguçar saídas em função da transgressão.
Conseqüentemente, fica acesa a possibilidade da formação de novos laços sociais.
Nisso O Pasquim cumpriu uma função muito especial. Os laços silenciosos causados em função do que foi publicado criam uma espécie de dívida de toda uma geração perante este instrumento que se tornou de utilidade pública. A intenção híbrida de trazer o político escrito lado a lado com uma inscrição pulsional traz ilustrações que, se sustentando no corpo desejável de uma bela mulher, fala mais que o visto. Assim, a imagem não é somente a imagem; é uma intenção de atravessamento que ao mesmo tempo precisa de um corpo que encarne um desejo de uma gente cambaleada pela opressão.
Fica muito clara a referência ao perigo e o desejo de desafiar em cada leitor uma solução para o impasse, como se vêem nas notas que se somam nos trabalhos apresentados. Quando se refere aos humoristas destaca-se em um P. S. aposto neste mesmo trabalho:
“Não se esqueça daquilo que eu te disse: nós, os humoristas, temos bastante importância para ser presos e nenhuma para ser soltos”.
Nada mais inteligente e direto, ao tempo que aliciador de novos laços.
O perigo sempre estava à vista.
Por estes motivos O Pasquim foi além de tudo uma escola.
Ensinou a burlar a mediocridade linear do pensamento imposto na época pelo poder. Exemplos inquestionáveis desta presença podem ser vistos na publicação de 26 de maio de 1970. Apresenta um texto cheio de recortes que colocam em evidência mensagens contundentes e chamativas, para revelar na literalidade das entrelinhas o alívio da tensão causada. Este texto e trabalho artístico pertencem a Ziraldo e Caulos. Vejamos: ZAGALO ESTÁ DE CASO.
A frase que acompanha a mesma lógica de impressão complementa:
COM PAULO CESAR. E lá nas entrelinhas destas duas frases o que aparece em letras miúdas é: PENSANDO: só acredita na seleção.
Após uma leitura atenta, é impossível não ser atingido pelo riso da quebra de tensão, gerada pelo texto ressaltado e a associação feita com os personagens envolvidos na pseudo-história.
São várias as montagens: TOPO GIGIO É patrocinado pela Gilette; SOMOS CONTRA todos aqueles que dizem que somos contra O GOVERNO. E o cabeçalho adverte: Para quem sabe ler um pingo é letra. O importante não é o texto, mas o que está nas entrelinhas. Ao final, rompe com o dito e diz: “(...) não haverá entrelinhas nestas entrelinhas?”.
A questão é que entre paródias de filmes como LIXOSTORI e entrevistas imaginárias com cognomes de famosos do mundo da literatura e do campo das artes como Proust, Genet, Tchaikovski, Oscar Wilde e outros em 200 OU 300 COISAS que a humanidade foi obrigada a ficar sabendo sobre o comentarista político FAULO PRANCIS, O Pasquim cumpriu uma missão precípua no imaginário brasileiro. Revirou de pernas pro ar a lógica vigilante de um tempo difícil, provando que, quando tudo estiver comprometido, resta o pensamento, ainda que seja para assentar o próprio desejo como fizeram os monges dirigidos por Antonio Pacômio no movimento dos ascetas do deserto durante o tempo do cristianismo primitivo.
Por essas e outras, a leitura de O Pasquim é indispensável, para vermos que o inconsciente não pode se transformar em um pedaço de carne inerte. Ele está sempre presente de forma a dar a cada um pensante formas de se constituir em lugares, os mais insólitos possíveis, na tarefa de produzir saídas frente ao mal-estar que se renova em cada ato.

Henrique Figueiredo Carneiro
Professor Titular do Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza
henrique@unifor.br

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