Marinês Andrea Kunz
Todos lemos a nós e ao mundo à nossa
volta para vislumbrar o que somos e onde
estamos. Lemos para compreender, ou para
começar a compreender. Não podemos deixar de
ler. Ler, quase como respirar, é nossa função
essencial.
Alberto Manguel
Resumo: O
texto literário desenvolve a imaginação, a criticidade, o domínio da linguagem
e auxilia o leitor a refletir sobre si e sobre o mundo. Apesar de tudo isso, a
leitura do texto literário na escola sofre de uma série de males, dentre os
quais professores que muitas vezes não leem e não compram livros, biblioteca
mal equipada e estratégias de leitura equivocadas. É possível, no entanto, com
um planejamento adequado, desenvolver com os alunos atividades que despertem
seu interesse pela leitura de textos literários, a partir da leitura estética e
de atividades de pré-leitura, da leitura-descoberta e de atividades de pós-leitura.
Palavras-chave:
leitura, literatura, estratégias de leitura
A
leitura na escola
Parece,
de um lado, já bastante desgastado afirmar a necessidade da leitura e, especialmente,
a leitura do texto literário na escola. Contudo, de outro, percebe-se que há ainda
muito a fazer em nossas escolas. Até mesmo, estimular a leitura por parte dos professores,
principalmente os das séries iniciais.
O
professor, por mais esdrúxulo que possa parecer, nem sempre se apropria do acervo
literário disponível no mercado em função dos baixos salários e até por não ser
exemplo de leitor para seus alunos. Ele passa a conhecer o texto literário por
intermédio do livro didático. Contudo, para formar leitores, é preciso ser
leitor, pois, como afirma a escritora Ana Maria Machado:
“(...) imaginar que quem não lê pode
fazer ler é tão absurdo quanto pensar que alguém que não sabe nadar pode se
converter em instrutor de natação. Porém é isso que estamos fazendo” (2001, p.
122).
A
criança necessita, pois, de um exemplo de leitor, que podem ser os pais – em geral,
não é a regra - ou, o que seria muito apropriado, o professor. Este deve
compartilhar com os alunos o que lê, comentar os tipos de histórias ou poemas
de que gosta, além de estimulá-los a pensarem sobre sua história de leitura. É
com o apaixonamento do professor pelo que ensina – no caso a leitura do texto
literário - que é possível despertar novos leitores para o universo literário.
O
professor precisa se dar conta de sua importância no processo de formação de leitores,
o que implica que ele seja também um leitor, pois é o mediador entre o livro e
o leitor na escola. Deve, assim, promover o diálogo acerca da obra literária,
para exercitar a liberdade de expressão e não mais o silêncio da aquiescência à
interpretação unívoca – ditada pelo livro didático e levada ao pé da letra pelo
professor. Para reforçar a ideia da troca, Ângela Rolla afirma que:
Não se concebe a leitura como um ato
solitário, pois o leitor participa de uma comunidade de leitores, onde as
leituras são partilhadas como experiências vividas e o caminho que nos conduz
até o literário passa por uma predisposição individual, mas também por
mediações externas como é o caso do professor de português ou de literatura em
relação aos seus alunos (2003, p. 170).
A
troca de idéias e a pluralidade de significados construídos a partir da
realidade do aluno,
com base no percurso isotópico proposto no discurso, devem marcar o trabalho
com a literatura. O percurso isotópico é entendido aqui na acepção empregada
por Denis Bertrand (2000), ou seja, uma isotopia que parte do conjunto ao
elemento, construindo, ao longo da leitura, hipóteses interpretativas,
simultaneamente dedutivas e indutivas, que engendram a significação do
discurso. Com isso, cada aluno interpreta o percurso isotópico com base em seus
conhecimentos e suas vivências, de modo que a obra lida fará sentido para ele,
fato que pode facilitar a leitura de novos textos. Isabel Solé confirma essa ideia quando afirma que:
“As situações de leitura mais
motivadoras também são as mais reais: isto é, aquelas em que a criança lê para
se libertar, para sentir prazer de ler, quando se aproxima do cantinho de
biblioteca ou recorre a ela” (1998, p. 91).
Além
do papel fundamental do professor, a biblioteca escolar também exerce, ou deveria
exercer, papel fundamental na formação de leitores. Deveria, primeiramente, ser
local privilegiado no contexto escolar, com um espaço amplo, arejado e
agradável. Contudo,
em geral, é de difícil acesso e inadequada a seus fins. Além
disso, o acervo, na maioria dos casos, é pobre e desatualizado (Silva, 1999).
Não
há exemplares suficientes, e as obras muitas vezes são compradas de vendedores
que passam nas escolas, de modo que não correspondem a alguns quesitos de
qualidade: ilustração adequada, texto integral, revisão cuidadosa. Com isso, a
biblioteca não desperta o interesse do aluno e, por conseguinte, deixa de
cumprir sua função: ser local de pesquisa, de leitura, de aprendizado.
Também
é comum a função de bibliotecário – quando há - ser assumida por alguma professora
quando há estagiário em sua turma ou quando volta da licença maternidade.
Não
tem, portanto, formação específica para atuar nessa área, o que interfere até a
compra de novos livros, já que nem sempre se apropriou do que é possível e
adequado adquirir.
As
atividades desenvolvidas a partir do texto literário normalmente reduzem-se a uma
avaliação escrita – prova ou trabalho -, cujo resultado é transformado em nota.
É freqüente
o professor não construir sentido sobre o texto e valer-se somente das interpretações
propostas pelo livro didático, não permitindo ao aluno ter outra interpretação.
Tal proposta didática já não consegue estimular o aluno a ler e leva ao silêncio
e à morte da crítica.
Propondo
mudanças...
Ao
invés de criar programas apenas voltados aos alunos, talvez fosse adequado criar
outros que se preocupem com a formação de leitura dos professores,
despertando-os
para
o universo literário. É fundamental gostar de ler para formar leitores.
No
processo de formação de leitores, ele precisa preparar o aluno para receber a obra,
a fim de diminuir a distância entre o leitor e o texto:
“a distância pode ser atenuada ou
suprida, pela forma como o material se apresenta, pelo estímulo dado para o envolvimento
com o texto no próprio texto e também por uma certeza [...] de que a interação
é possível, prazerosa e enriquecedora” (Gebara, 2002, p. 30).
A
autora citada diferencia, com base em Louise Rosenblatt, a leitura eferente da estética.
A primeira está preocupada com o resíduo da leitura, ou seja, com informações e
a solução de problemas imediatos. A segunda, por sua vez, está centrada na
experiência do leitor com a leitura, relacionando o cognitivo com o emotivo.
Para estar apto a estimular a atividade estética, o professor deve conhecer os
elementos do texto:
“as pessoas envolvidas com a leitura
[...] precisam estar cientes de como os textos literários se estruturam e como,
num grau elevado de tensão, eles estimulam essa relação que transcende o
cognitivo, numa percepção ampliada da realidade tratada no texto” (Gebara,
2002, p. 27).
Há
vários objetivos que direcionam a leitura, mas as atividades com literatura deveriam
focalizar a leitura estética, com o intuito de fruir com o texto, construindo sentidos
e relacionando-os com a realidade do leitor. Com isso, fundem-se a atividade cognitiva
e o envolvimento emotivo, o que assegura maior êxito às propostas de leitura.
Para
alcançar esse objetivo, é importante que o professor indique diferentes gêneros
literários, mostrando ao aluno o leque de opções a sua disposição – se a
biblioteca oferecer um acervo razoável evidentemente. Além disso, deve conhecer
seus alunos para ir ao encontro de suas preferências, em um primeiro momento,
para, depois, romper o horizonte de expectativas (Bordini; Aguiar, 1993),
sugerindo outros textos, a fim de que ele enriqueça seu repertório de leitura e
leia textos já mais complexos. Precisa, ainda, sugerir obras que estejam de
acordo com a maturidade emocional dos educandos, para que eles realmente se
identifiquem com o texto.
O
êxito das atividades de leitura também está relacionado à preparação do terreno
para receber a semente, ou seja, é importante despertar no aluno interesse pelo
texto antes de leitura, o que constitui as atividades de pré-leitura. Com isso,
o professor estará ativando os conhecimentos prévios do educando por meio de,
por exemplo, inferências sobre o texto (Giasson, 2000), além de estabelecer um
envolvimento emotivo com ele. É possível criar situações em que os alunos
tenham uma vivência concreta relacionada ao texto, como, por exemplo, observar
determinada pintura e discutir seu significado antes de ler um conto sobre um
quadro. A partir da vivência, a tendência é ele ler o texto com mais atenção e
interesse.
No
segundo momento, ocorre a leitura efetiva do texto, que é uma atividade solitária:
a leitura-descoberta. À medida que lê, o leitor elabora seleções semânticas, ativando
o que Eco (1989) denomina conhecimento enciclopédico até considerar adequada sua interpretação.
Uma
forma de dinamizar essa fase da leitura é a que Isabel Solé (1998) sugere: a leitura
compartilhada, em que professor e alunos realizam previsões sobre o texto a ser
lido e, depois, sobre o que foi lido, como também esclarecem dúvidas sobre o
texto e resumem idéias. Tudo isso, em busca do diálogo e da discussão sobre o
significado do texto, que não é necessariamente aquele do livro didático.
Por
fim, passa-se às atividades de pós-leitura, em que o texto é relacionado à realidade
dos alunos, para que ele reflita sobre si mesmo e o meio em que vive. Nesse
sentido,
sugere-se que seja possibilitado ao aluno discutir o texto com os colegas e com
o professor, para que haja a troca de idéias e o esclarecimento de dúvidas.
Essas atividades podem ser bastante dinâmicas, como, voltando ao exemplo do
texto sobre o quadro, pintar com os alunos um quadro expressando o significado
do texto. Posteriormente, cada aluno expõe oralmente e/ou por escrito o que
compreendeu e as relações que estabeleceu. Nesse sentido, muitas outras
atividades mais lúdicas que levam à reflexão e à discussão tanto do conteúdo
quanto do discurso literário, aproveitando os talentos dos alunos – filmagem, dramatização,
leitura dramática, saraus literários, debates, painéis, paródias etc – podem suscitar
no aluno o prazer e o gosto pela leitura do texto literário.
Não
é necessário, portanto, especialmente no Ensino Fundamental, que o ensino da literatura
tenha como resultado um trabalho avaliativo escrito, que se reverterá em uma nota.
Se o aluno ler e discutir o que leu, mesmo que seja para dizer que não gostou
da obra e porquê – pois isso é um posicionamento crítico e o exercício da
liberdade -, o professor já obteve êxito.
Além
disso, também é possível realizar novas leituras a partir das relações intertextuais
estabelecidas pelo texto lido. Pode-se buscar a intertextualidade formal e a de
conteúdo, o que amplia o conhecimento do leitor sobre o sistema literário – e
outros que freqüentemente se valem de elementos da literatura -, além de
mostrar-lhe que os textos dialogam e podem ser lidos uns pelos outros no
processo de recepção. Essa atividade ajuda o leitor a construir sentidos outros
muito além do texto lido primeiro, pois lhe possibilita perceber a dimensão da
instituição literária, além de despertar nele a sensibilidade para a apreciação
estética com base em relações intertextuais.
As
relações intertextuais não se restringem ao texto literário, podendo
expandir-se para textos calcados em outras matérias de expressão, com a música,
as artes plásticas, a televisão e, sobretudo, o cinema. Assim, pode-se
relacionar o texto literário a inúmeras e variadas expressões humanas.
O
cinema, por sua vez, é um campo amplo de diálogo com a literatura até porque, inicialmente,
esta lhe servia de matéria-prima para as narrativas fílmicas. Por outro lado, o
cinema – e a fotografia - também influenciaram a literatura, que buscou
representar mais realisticamente a partir da evolução dessas tecnologias.
Esse
diálogo permite a análise da transcodificação do texto literário para o
fílmico, o que ajuda a conhecer melhor as técnicas de ambas as artes, revelando
suas virtudes e
apontando
suas limitações. Pode-se estudar como o cinema resolve a representação do universo
já representado pela literatura, que elementos composicionais são empregados e de
que modo o que é próprio do lingüístico é adaptado à heterogeneidade sígnica da
narrativa fílmica. Pode-se ainda fazer o levantamento dos cortes e acréscimos
no enredo realizados na adaptação, que vão modificar o hipotexto – a obra
literária. Se houver recursos disponíveis, os alunos podem gravar suas próprias
adaptações fílmicas. É necessário, contudo, ter em mente que a narrativa
fílmica é uma nova obra de arte, que não precisa necessariamente ater-se
fielmente ao hipotexto.
Ao
invés de perder-se na poeira dos estudos para o vestibular – até porque a maioria
não prestará o concurso – lendo fragmentos das obras canônicas, o que implica a
não construção de sentidos pelo aluno, é mais válido estudar e analisar as
obras como um
todo.
Para isso, será necessário deter-se por mais tempo em cada texto ou na
diversidade de textos lida pelos alunos. Sem ser desperdício de tempo, é na
verdade a tentativa de estimular o leitor a compreender a obra completa e
construir sentidos.
Quando
o professor tem um projeto de formação de leitores, mesmo que seja com ações
simples e pelo interesse demonstrado, os resultados positivos surgem. O aluno
não é um não-leitor nato, mas um leitor em potencial, e nós, professores,
podemos colaborar ou não para que ele desabroche para o mundo literário. Por
isso, urge que nos esforcemos para transmitir nosso amor pela literatura,
contagiando-os, por meio de um trabalho organizado.
Ana
Maria Machado destaca que:
[...] ninguém resiste à tentação de
saber o que se esconde dentro de algo fechado – seja a sabedoria do bem e do
mal no fruto proibido, seja na caixa de Pandora, seja o quarto do Barba Azul.
Mas, para isso, é preciso saber que existe algo lá dentro. Se ninguém jamais comenta sobre as maravilhas
encerradas, a possível abertura deixa de ser uma porta ou uma tampa e o
possível tesouro fica sendo apenas um bloco compacto ou uma barreira
intransponível (2001, p. 149).
Recai
sobre os professores a responsabilidade de fazer os alunos descobrirem o que está
por trás dessa porta e desvendar o universo maravilhoso da literatura,
ajudando-o a conhecer
o legado da cultura da humanidade.
Referências
Bibliográficas
BERTRAND,
Denis. Précis de sémiotique litteraire. Paris: Nathan, 2000.
BORDINI,
Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. A formação do leitor. Porto
Alegre:
Mercado Aberto, 1993.
ECO,
Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1989.
GEBARA,
Ana Elvira Luciano. A poesia na escola. São Paulo: Cortez, 2002.
GIASSON,
Jocelyne. A compreensão na leitura. Lisboa: Edições Asa, 2000.
MACHADO,
Ana Maria. Texturas: sobre leitura e escritos. R. Janeiro: Nova Fronteira,
2001.
ROLLA,
Ângela da Rocha. Ler e escrever literatura: a mediação do professor. In: NEVES,
Iara
C. Bitencourt. Et al. Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. Porto
Alegre: Universidade/UFRGS,
2003.
SILVA,
Ezequiel Theodoro da. De olhos bem abertos. Reflexões sobre o desenvolvimento da
leitura no Brasil. São Paulo, Ática, 1999.
SOLÉ,
Isabel. Estratégias de leitura.Porto Alegre: Artmed, 1998.
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