domingo, 21 de outubro de 2012

Estratégias de leitura do texto literário

Marinês Andrea Kunz

Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial.
Alberto Manguel

Resumo: O texto literário desenvolve a imaginação, a criticidade, o domínio da linguagem e auxilia o leitor a refletir sobre si e sobre o mundo. Apesar de tudo isso, a leitura do texto literário na escola sofre de uma série de males, dentre os quais professores que muitas vezes não leem e não compram livros, biblioteca mal equipada e estratégias de leitura equivocadas. É possível, no entanto, com um planejamento adequado, desenvolver com os alunos atividades que despertem seu interesse pela leitura de textos literários, a partir da leitura estética e de atividades de pré-leitura, da leitura-descoberta e de atividades de pós-leitura.
Palavras-chave: leitura, literatura, estratégias de leitura

A leitura na escola

Parece, de um lado, já bastante desgastado afirmar a necessidade da leitura e, especialmente, a leitura do texto literário na escola. Contudo, de outro, percebe-se que há ainda muito a fazer em nossas escolas. Até mesmo, estimular a leitura por parte dos professores, principalmente os das séries iniciais.

O professor, por mais esdrúxulo que possa parecer, nem sempre se apropria do acervo literário disponível no mercado em função dos baixos salários e até por não ser exemplo de leitor para seus alunos. Ele passa a conhecer o texto literário por intermédio do livro didático. Contudo, para formar leitores, é preciso ser leitor, pois, como afirma a escritora Ana Maria Machado:

“(...) imaginar que quem não lê pode fazer ler é tão absurdo quanto pensar que alguém que não sabe nadar pode se converter em instrutor de natação. Porém é isso que estamos fazendo” (2001, p. 122).

A criança necessita, pois, de um exemplo de leitor, que podem ser os pais – em geral, não é a regra - ou, o que seria muito apropriado, o professor. Este deve compartilhar com os alunos o que lê, comentar os tipos de histórias ou poemas de que gosta, além de estimulá-los a pensarem sobre sua história de leitura. É com o apaixonamento do professor pelo que ensina – no caso a leitura do texto literário - que é possível despertar novos leitores para o universo literário.

O professor precisa se dar conta de sua importância no processo de formação de leitores, o que implica que ele seja também um leitor, pois é o mediador entre o livro e o leitor na escola. Deve, assim, promover o diálogo acerca da obra literária, para exercitar a liberdade de expressão e não mais o silêncio da aquiescência à interpretação unívoca – ditada pelo livro didático e levada ao pé da letra pelo professor. Para reforçar a ideia da troca, Ângela Rolla afirma que:

Não se concebe a leitura como um ato solitário, pois o leitor participa de uma comunidade de leitores, onde as leituras são partilhadas como experiências vividas e o caminho que nos conduz até o literário passa por uma predisposição individual, mas também por mediações externas como é o caso do professor de português ou de literatura em relação aos seus alunos (2003, p. 170).

A troca de idéias e a pluralidade de significados construídos a partir da realidade do aluno, com base no percurso isotópico proposto no discurso, devem marcar o trabalho com a literatura. O percurso isotópico é entendido aqui na acepção empregada por Denis Bertrand (2000), ou seja, uma isotopia que parte do conjunto ao elemento, construindo, ao longo da leitura, hipóteses interpretativas, simultaneamente dedutivas e indutivas, que engendram a significação do discurso. Com isso, cada aluno interpreta o percurso isotópico com base em seus conhecimentos e suas vivências, de modo que a obra lida fará sentido para ele, fato que pode facilitar a leitura de novos textos. Isabel Solé confirma essa ideia quando afirma que:

“As situações de leitura mais motivadoras também são as mais reais: isto é, aquelas em que a criança lê para se libertar, para sentir prazer de ler, quando se aproxima do cantinho de biblioteca ou recorre a ela” (1998, p. 91).

Além do papel fundamental do professor, a biblioteca escolar também exerce, ou deveria exercer, papel fundamental na formação de leitores. Deveria, primeiramente, ser local privilegiado no contexto escolar, com um espaço amplo, arejado e agradável. Contudo, em geral, é de difícil acesso e inadequada a seus fins. Além disso, o acervo, na maioria dos casos, é pobre e desatualizado (Silva, 1999).

Não há exemplares suficientes, e as obras muitas vezes são compradas de vendedores que passam nas escolas, de modo que não correspondem a alguns quesitos de qualidade: ilustração adequada, texto integral, revisão cuidadosa. Com isso, a biblioteca não desperta o interesse do aluno e, por conseguinte, deixa de cumprir sua função: ser local de pesquisa, de leitura, de aprendizado.

Também é comum a função de bibliotecário – quando há - ser assumida por alguma professora quando há estagiário em sua turma ou quando volta da licença maternidade.
Não tem, portanto, formação específica para atuar nessa área, o que interfere até a compra de novos livros, já que nem sempre se apropriou do que é possível e adequado adquirir.

As atividades desenvolvidas a partir do texto literário normalmente reduzem-se a uma avaliação escrita – prova ou trabalho -, cujo resultado é transformado em nota. É freqüente o professor não construir sentido sobre o texto e valer-se somente das interpretações propostas pelo livro didático, não permitindo ao aluno ter outra interpretação. Tal proposta didática já não consegue estimular o aluno a ler e leva ao silêncio e à morte da crítica.

Propondo mudanças...

Ao invés de criar programas apenas voltados aos alunos, talvez fosse adequado criar outros que se preocupem com a formação de leitura dos professores, despertando-os
para o universo literário. É fundamental gostar de ler para formar leitores.
No processo de formação de leitores, ele precisa preparar o aluno para receber a obra, a fim de diminuir a distância entre o leitor e o texto:

“a distância pode ser atenuada ou suprida, pela forma como o material se apresenta, pelo estímulo dado para o envolvimento com o texto no próprio texto e também por uma certeza [...] de que a interação é possível, prazerosa e enriquecedora” (Gebara, 2002, p. 30).

A autora citada diferencia, com base em Louise Rosenblatt, a leitura eferente da estética. A primeira está preocupada com o resíduo da leitura, ou seja, com informações e a solução de problemas imediatos. A segunda, por sua vez, está centrada na experiência do leitor com a leitura, relacionando o cognitivo com o emotivo. Para estar apto a estimular a atividade estética, o professor deve conhecer os elementos do texto:

“as pessoas envolvidas com a leitura [...] precisam estar cientes de como os textos literários se estruturam e como, num grau elevado de tensão, eles estimulam essa relação que transcende o cognitivo, numa percepção ampliada da realidade tratada no texto” (Gebara, 2002, p. 27).

Há vários objetivos que direcionam a leitura, mas as atividades com literatura deveriam focalizar a leitura estética, com o intuito de fruir com o texto, construindo sentidos e relacionando-os com a realidade do leitor. Com isso, fundem-se a atividade cognitiva e o envolvimento emotivo, o que assegura maior êxito às propostas de leitura.

Para alcançar esse objetivo, é importante que o professor indique diferentes gêneros literários, mostrando ao aluno o leque de opções a sua disposição – se a biblioteca oferecer um acervo razoável evidentemente. Além disso, deve conhecer seus alunos para ir ao encontro de suas preferências, em um primeiro momento, para, depois, romper o horizonte de expectativas (Bordini; Aguiar, 1993), sugerindo outros textos, a fim de que ele enriqueça seu repertório de leitura e leia textos já mais complexos. Precisa, ainda, sugerir obras que estejam de acordo com a maturidade emocional dos educandos, para que eles realmente se identifiquem com o texto.

O êxito das atividades de leitura também está relacionado à preparação do terreno para receber a semente, ou seja, é importante despertar no aluno interesse pelo texto antes de leitura, o que constitui as atividades de pré-leitura. Com isso, o professor estará ativando os conhecimentos prévios do educando por meio de, por exemplo, inferências sobre o texto (Giasson, 2000), além de estabelecer um envolvimento emotivo com ele. É possível criar situações em que os alunos tenham uma vivência concreta relacionada ao texto, como, por exemplo, observar determinada pintura e discutir seu significado antes de ler um conto sobre um quadro. A partir da vivência, a tendência é ele ler o texto com mais atenção e interesse.

No segundo momento, ocorre a leitura efetiva do texto, que é uma atividade solitária: a leitura-descoberta. À medida que lê, o leitor elabora seleções semânticas, ativando o que  Eco (1989) denomina conhecimento enciclopédico até considerar adequada sua interpretação.
Uma forma de dinamizar essa fase da leitura é a que Isabel Solé (1998) sugere: a leitura compartilhada, em que professor e alunos realizam previsões sobre o texto a ser lido e, depois, sobre o que foi lido, como também esclarecem dúvidas sobre o texto e resumem idéias. Tudo isso, em busca do diálogo e da discussão sobre o significado do texto, que não é necessariamente aquele do livro didático.

Por fim, passa-se às atividades de pós-leitura, em que o texto é relacionado à realidade dos alunos, para que ele reflita sobre si mesmo e o meio em que vive. Nesse
sentido, sugere-se que seja possibilitado ao aluno discutir o texto com os colegas e com o professor, para que haja a troca de idéias e o esclarecimento de dúvidas. Essas atividades podem ser bastante dinâmicas, como, voltando ao exemplo do texto sobre o quadro, pintar com os alunos um quadro expressando o significado do texto. Posteriormente, cada aluno expõe oralmente e/ou por escrito o que compreendeu e as relações que estabeleceu. Nesse sentido, muitas outras atividades mais lúdicas que levam à reflexão e à discussão tanto do conteúdo quanto do discurso literário, aproveitando os talentos dos alunos – filmagem, dramatização, leitura dramática, saraus literários, debates, painéis, paródias etc – podem suscitar no aluno o prazer e o gosto pela leitura do texto literário.

Não é necessário, portanto, especialmente no Ensino Fundamental, que o ensino da literatura tenha como resultado um trabalho avaliativo escrito, que se reverterá em uma nota. Se o aluno ler e discutir o que leu, mesmo que seja para dizer que não gostou da obra e porquê – pois isso é um posicionamento crítico e o exercício da liberdade -, o professor já obteve êxito.

Além disso, também é possível realizar novas leituras a partir das relações intertextuais estabelecidas pelo texto lido. Pode-se buscar a intertextualidade formal e a de conteúdo, o que amplia o conhecimento do leitor sobre o sistema literário – e outros que freqüentemente se valem de elementos da literatura -, além de mostrar-lhe que os textos dialogam e podem ser lidos uns pelos outros no processo de recepção. Essa atividade ajuda o leitor a construir sentidos outros muito além do texto lido primeiro, pois lhe possibilita perceber a dimensão da instituição literária, além de despertar nele a sensibilidade para a apreciação estética com base em relações intertextuais.

As relações intertextuais não se restringem ao texto literário, podendo expandir-se para textos calcados em outras matérias de expressão, com a música, as artes plásticas, a televisão e, sobretudo, o cinema. Assim, pode-se relacionar o texto literário a inúmeras e variadas expressões humanas.
O cinema, por sua vez, é um campo amplo de diálogo com a literatura até porque, inicialmente, esta lhe servia de matéria-prima para as narrativas fílmicas. Por outro lado, o cinema – e a fotografia - também influenciaram a literatura, que buscou representar mais realisticamente a partir da evolução dessas tecnologias.

Esse diálogo permite a análise da transcodificação do texto literário para o fílmico, o que ajuda a conhecer melhor as técnicas de ambas as artes, revelando suas virtudes e
apontando suas limitações. Pode-se estudar como o cinema resolve a representação do universo já representado pela literatura, que elementos composicionais são empregados e de que modo o que é próprio do lingüístico é adaptado à heterogeneidade sígnica da narrativa fílmica. Pode-se ainda fazer o levantamento dos cortes e acréscimos no enredo realizados na adaptação, que vão modificar o hipotexto – a obra literária. Se houver recursos disponíveis, os alunos podem gravar suas próprias adaptações fílmicas. É necessário, contudo, ter em mente que a narrativa fílmica é uma nova obra de arte, que não precisa necessariamente ater-se fielmente ao hipotexto.

Ao invés de perder-se na poeira dos estudos para o vestibular – até porque a maioria não prestará o concurso – lendo fragmentos das obras canônicas, o que implica a não construção de sentidos pelo aluno, é mais válido estudar e analisar as obras como um
todo. Para isso, será necessário deter-se por mais tempo em cada texto ou na diversidade de textos lida pelos alunos. Sem ser desperdício de tempo, é na verdade a tentativa de estimular o leitor a compreender a obra completa e construir sentidos.
Quando o professor tem um projeto de formação de leitores, mesmo que seja com ações simples e pelo interesse demonstrado, os resultados positivos surgem. O aluno não é um não-leitor nato, mas um leitor em potencial, e nós, professores, podemos colaborar ou não para que ele desabroche para o mundo literário. Por isso, urge que nos esforcemos para transmitir nosso amor pela literatura, contagiando-os, por meio de um trabalho organizado.
Ana Maria Machado destaca que:

[...] ninguém resiste à tentação de saber o que se esconde dentro de algo fechado – seja a sabedoria do bem e do mal no fruto proibido, seja na caixa de Pandora, seja o quarto do Barba Azul. Mas, para isso, é preciso saber que existe algo lá dentro. Se  ninguém jamais comenta sobre as maravilhas encerradas, a possível abertura deixa de ser uma porta ou uma tampa e o possível tesouro fica sendo apenas um bloco compacto ou uma barreira intransponível (2001, p. 149).

Recai sobre os professores a responsabilidade de fazer os alunos descobrirem o que está por trás dessa porta e desvendar o universo maravilhoso da literatura, ajudando-o a conhecer o legado da cultura da humanidade.

Referências Bibliográficas
BERTRAND, Denis. Précis de sémiotique litteraire. Paris: Nathan, 2000.
BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. A formação do leitor. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1993.
ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1989.
GEBARA, Ana Elvira Luciano. A poesia na escola. São Paulo: Cortez, 2002.
GIASSON, Jocelyne. A compreensão na leitura. Lisboa: Edições Asa, 2000.
MACHADO, Ana Maria. Texturas: sobre leitura e escritos. R. Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
ROLLA, Ângela da Rocha. Ler e escrever literatura: a mediação do professor. In: NEVES,
Iara C. Bitencourt. Et al. Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 2003.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. De olhos bem abertos. Reflexões sobre o desenvolvimento da leitura no Brasil. São Paulo, Ática, 1999.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura.Porto Alegre: Artmed, 1998.

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