José Renato Nalini
É uma inversão da tese kantiana. Para
Kant, o valor de uma ação depende da relação da conduta com o princípio do
dever, o imperativo categórico. Para a filosofia valorativa, o valor moral não
se baseia na idéia de dever, mas dá-se o inverso: todo dever encontra
fundamento em um valor.
Só
deve ser aquilo que é valioso e tudo o que é valioso deve ser. A
noção de valor passa a ser o conceito ético essencial. E valor não arbitrariamente
convencionado. Pois o que é valioso vale por si, ainda quando seu valor não
seja conhecido nem apreciado. "A filosofia valorativa separa
cuidadosamente o problema da intuição dos valores que é epistemológico
- daquele da existência do valor - que é ontológico".[1]
É nossa
consciência que nos adverte da existência dos valores. Mas não foram criados
por ela, senão por ela descobertos. Só pode ser descoberto o
que já existe.
1.
A existência do valor
Estudo
elementar como o presente apenas aflora as questões éticas, remetendo os
interessados a obras mais vastas. E as há em profusão. Questão
recorrente no repensar de uma nova ética é a organização de conceitos ou
princípios axiológicos novos, sobre os quais ela se fundará.
"Nenhuma sociedade pode
sobreviver sem um código moral fundado em valores compreendidos, aceitos e
respeitados pela maioria de seus membros. Nós não temos mais nada disto. As
sociedades modernas poderiam dominar indefinidamente os poderes fantásticos que a
ciência lhes deu com o critério
de um vago humanismo colorido por uma espécie de hedonismo otimista e
materialista? Poderiam, nessas bases, resolver suas intoleráveis tensões? Onde
vão desmoronar?” [2]
As
grandes questões da axiologia clássica podem ser resumidas a quatro, e são elas
que merecerão agora ligeiro exame.
Existem
os valores? Eles existem e isso é facilmente constatável por qualquer pensante.
Não se vinculam a qualquer forma de exteriorização. Podem ser meramente
sentidos ou intuídos. Isso explica a simpatia ou antipatia natural diante de
uma pessoa ou a emoção perante uma obra de arte.
É longeva a distinção entre o mundo da
matéria e a ordem do ideal. Os valores integram a esfera supra-sensível do
mundo imaterial que, suscetível de ser intelectualmente concebido, não se pode
visualizar ou submeter ao tato.
"A filosofia atual reconhece
dois tipos de existência: o ser real e o ser ideal. Pertencem ao primeiro
todas as coisas e sucessos que ocupam lugar no espaço ou no tempo. O ser real se encontra, por
isso, espacial e temporalmente localizado. Por sua mesma índole, pode ser
objeto de um conhecimento sensível. Na esfera prática têm essa forma de
existência os atos humanos, ou, mais precisamente, as variadíssimas
manifestações do agir: intenções, propósitos, decisões voluntárias, juízos
estimativos, sentido de responsabilidade, consciência da culpa etc. "[3].
Já
os valores não integram a ordem da realidade. Diante dela, situam-se como
ideais.
O perigo é concluir que só existe o que é real. Assim, o
ideal não teria existência. Isso é pensamento ingênuo, como também o seria confundir-se
idealidade com subjetivismo. Ideal não é só aquilo que é objeto da
representação. Na ordem lógica e matemática, a tese da ideal idade tem
alicerces consistentes. Quando se afirma: o todo é maior do que a parte,
independentemente de alguém imaginá-lo ou pensar assim, o postulado continua
válido e existente.
Os
valores submetem-se a uma hierarquia. Não que possam ser eleitos, mas a
hierarquia é objetiva. Entre os critérios determinativos dessa escala, indica
Scheler os seguintes:
"Um valor é tanto mais alto: a) quanto mais duradouro é; b)
quanto menos participa da extensão e da divisibilidade; c) quanto
mais profunda é a
satisfação ligada à intuição
do mesmo; d) quanto menos fundamentado se acha
por outros valores; e) quanto
menos relativa seja sua percepção sentimental à posição de seu depositário".[4]
A
durabilidade do valor tem a idéia de permanência. Não teria
sentido o amante declarar que ama agora ou durante certo tempo. O valor
é mais elevado quanto menor a necessidade de dividi-locam outrem. A obra de
arte é indivisível. Inimaginável repartir-se uma tela em múltiplas
peças, para que cada destinatário detenha uma parcela de seu valor originário.
Entre
os valores também surge a possibilidade de relações de fundamentação. O
valor fundamentado em outro é sempre inferior ao fundamentante. Assim,
a vida, entre os direitos fundamentais, é o bem por excelência. Todos os demais
direitos são bens da vida, nesta fundamentados e, portanto, inferiores
à própria vida.
A
satisfação coincide com a vivência de cumprimento, não com o
estado de prazer gerado pela posse do valor. E a escala de relatividade dos
valores auxilia a aferir o grau de superioridade dele. Há valores vinculados
ao agradável, os valores da vida que são relativos aos seres viventes,
e há valores puros, como os valores morais, que têm caráter absoluto,
não relativo.
Max
Scheler esboçou uma classificação dos valores sob enfoque hierárquico,
distinguindo-os em: a) valores
do agradável e do desagradável; b) valores
vitais; c) valores espirituais; d) valores
religiosos.[5]
2. O conhecimento
dos valores
Os
valores constituem condição de existência dos bens. Existem bens porque existem
valores, não o contrário.
Todo
ser humano tem a experiência de conferir a determinadas coisas ou ações
valoração que as qualifica como boas, más, úteis, agradáveis, nobres ou belas.
Esse experimento pressupõe uma escala estimativa. Ela propiciará identificar,
nas coisas ou atos, os valores compatíveis com essa pauta prévia.
Essa pauta é apriorística e, embora se afirme baseada na
imitação, ou na índole intuitiva e emocional do conhecimento, ela existe em
toda sã consciência. A intuição dos valores não é completa, nem perfeita. Hartmann
dá a esse fato o nome de estreiteza do sentido do valor.[6] Nenhuma
pessoa é capaz de intuir todos os valores. Quando os intui, nem sempre pode
fazê-lo de forma nítida. Mas é viável o crescimento nessa arte. A missão do
pedagogo e do moralista é desenvolver a sensibilidade para o conhecimento
daquilo que é eticamente relevante.
A
História tem sido pródiga em exemplos de cegueira valorativa, não apenas
em relação aos indivíduos, mas característica a toda uma sociedade ou a toda
uma época. Recorda Ortega y Gasset que
"o estimar é uma função psíquica real-como o
enxergar, como o entenderem que os valores se nos fazem patentes. E
vice-versa, os valores não existem senão para sujeitos dotados de capacidade
estimativa, do mesmo modo que a igualdade e a diferença só existem para seres capazes de
comparar. Neste sentido, e só neste
sentido, pode falar-se de certa subjetividade no valor".[7]
Tal
estreiteza, mesmo a cegueira valorativa ou a miopia moral, não
destrói a doutrina da objetividade dos valores. As variações da intuição
estimativa não alteram o valor, que permanece íntegro, à espera da descoberta.
É elucidativa a idéia de García Máynez do cone de luz projetado no horizonte. A
consciência de cada homem e de cada época descobre sob essa luz alguns valores.
Se não atenta para outros, não é porque eles não existam. O cone de luz
ilumina, mas não cria o horizonte.
O
ideal coincide ou não com o real. Na ordem moral essa relação é bastante
peculiar. O ser em si dos valores subsiste mesmo se não realizados. Mas os
valores são princípios da esfera ética atual, não apenas princípios da esfera
ética ideal, observou Hartmann. É a consciência estimativa que dá o
testemunho da atualidade dos valores. Ela sinaliza o sentido primário do
valioso, determina o juízo moral, o sentimento de responsabilidade e a
consciência da culpa.
Mais
ainda, os valores são princípios da esfera ética real. São forças
determinantes da conduta humana num sentido criador.
"A
possibilidade que o homem tem de converter as urgências do ideal em forças
modeladoras do existente condiciona, segundo Hartmann, a grandeza de nossa
linhagem. Como administrador dos valores no mundo, o homem
adquire uma significação demiúrgica, convertendo-se deste modo em co-partícipe
da grande obra de Deus. "[8]
Adquire especial relevo na doutrina da realização de
valores a noção do dever ser. É uma noção kantiana suprema e, portanto,
indefinível. Todo valor ético deriva da subordinação da vontade ao imperativo
categórico. Já Scheler e Hartmann invertem a proposição: o valor moral não se
funda no dever, mas ocorre o inverso: todo dever pressupõe a existência dos
valores.
Para
eles, não haveria sentido dizer que algo deve ser, se o que se postula como
devido não fosse valioso. Caridade, justiça, temperança e outras virtudes devem
ser, enquanto valem. Carecessem de valor e não deveriam ser.
O
dever ser hartmanniano tem os seguintes elementos: a) a existência de um valor; b) o dever ser ideal do mesmo; c) a
atualização de tal dever (dever ser atual); d) a existência de um ser capaz de realizar
o valioso. O mundo real não é em si plenamente valioso, nem completamente
desvalioso. Nele se realizam múltiplos valores e outros quedam irrealizados.
Mas há sempre a possibilidade de novas realizações valorativas.
Mas
como pode o homem realizar o valioso? Realizar o valioso consiste, para o
homem, num dever. E o dever impõe uma conduta teleológica. Se quero acatar uma
norma, devo converter tal acatamento em finalidade de minha conduta. A
realização dos valores se consuma através de um processo de dúplice etapa: a
determinação primária e a determinação secundária. A primeira é a intuição; a
segunda, a deliberação da vontade.
É verdade que o nexo teleológico é
mais complexo do que o nexo causal. O nexo causal é a relação entre dois
fenômenos, o primeiro dos quais, chamado causa, determina de forma necessária a
produção do outro, chamado efeito. Já o nexo teleológico admite três momentos:
1. Postulação do fim. Alguém se
propõe a realizar determinada finalidade. É a projeção interior de seu atuar
futuro.
2. Eleição dos meios. A realização
dos fins pressupõe a seleção e emprego de procedimentos a eles conducentes: os
meios.
3. Realização. Esta a etapa inscrita
no fluxo do futuro. Aqui existe uma similitude entre o nexo causal e o nexo
teleológico. O meio é causa e o fim é efeito.
Para
bem apreender essa possibilidade, a criatura deve ter presente que a realização
de fins não é um processo inflexível e imodificável, totalmente fechado à
intervenção de determinações heterogêneas e mais complexas.
"Se o homem é capaz de propor-se um alvo
e alcançá-lo, isso se deve a que o acontecer causal não se orienta de
maneira inexorável até uma meta estabelecida de antemão, senão que pode ser
desviado, ao menos dentro de certos limites. Para desviá-lo só faz falta o conhecimento
das relações entre os fenômenos. Isto é o que expressa o velho aforismo: à natureza não se domina, senão
obedecendo-a. E obedecê-la é orientar suas forças na direção de nossos
desígnios. "[9]
A
realização individual de valores só se concebe numa visão de mundo em que
coexistam a causalidade e a teleologia. Numa existência sem leis, em que tudo
fosse fortuito e contingente, não haveria a possibilidade de estipulação de
fins e de sua realização. E a pessoa deve ter consciência de que há um momento
inicial de liberdade moral, sem o qual nada lhe será possível crescer em termos
éticos.
[2] JACQUES MONOD,
"La science et ses valeurs", in Pour une éthique de Ia
connaissance, La découverte, p. 146, apud JACQUELINE
RUSS, op. cit .. p. 19.
[3] EDUARDO GARCÍA
MÁYNEZ, Ética ..... , cit.,
idem, p. 217.
[4] EDUARDO GARCÍA
MÁYNEZ, Ética ..... , cit.,
idem, p. 229.
[5] MAX SCHELER, O formalismo na
Ética e a Ética Material Valorativa,citada por EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, Ética
... , cit., idem, p. 233.
[6] EDUARDO GARCÍA MÁ
YNEZ, Ética ... , cit., idem, p. 246.
[7] ORTEGA Y GASSET,
"Que são valores", in As etapas do cristianismo ao raciona!ismo e
outros ensaios, Santiago do Chile: Editorial Pax, p. 56, apud EDUARDO
GARCÍA MÁYNEZ, Ética ... , cit., idem, p. 247.
[9] EDUARDO GARCÍAMÁYNEZ, invocando
HARTMANN, IN Ética..., cit, idem,
p.266.