quinta-feira, 18 de abril de 2013

Lobato e o livro

Ruth Guimarães

(Dois dedos de prosa, 04set1999)

José Bento Monteiro Lobato assistiu na rua Barão de Itapetininga, na Brasiliense. Tinha sim um escritoriozinho no mezanino, ia para trás, onde recebia editados e editorandos, a longa procissão de candidatos a escritores. Comover Mestre Lobato não era tão fácil, seria necessário ser um Lima Barreto, nada menos. Outros entravam, saíam, tinham que mirar aqueles olhos sagazes, o sorriso sem descerrar os lábios, a fala irônica, aquele dizer não, sem dizer não, o sobrancelhudo inamovível como pedra.

Sim, ele assistia no mezanino da Brasiliense. Mas, se fôsseis os trocapernas das Barão, nas tarde amenas, talvez parásseis diante das vitrinas das livrarias que as há e muitas por ali. Uma, especialmente; chamava muito a atenção de todos. Os passantes se detinham meio surpresos, prestavam muita atenção, cutucavam-se uns aos outros os que estavam juntos, sorriam, riam mesmo alvoroçados, teciam comentários nem sempre abonadores, sacudiam a cabeça, aprovando, desaprovando, divertindo-se. Que acontecia nessas tardes bonitas, em plena rua Barão, numa vitrina de livros? O que jamais chama a atenção de nenhum passante apressado ou não.

Sim, era uma criatura na montra. Está vivo? É manequim? - perguntava-se. Nessa época não se usava truques publicitários.

Mas sim. Era mesmo Monteiro Lobato, sentado dentro da vitrina, rodeado de livros seus (ele era editado da Brasiliense) numa cadeira confortável, larga, com espaldar. Trajava calças cinzentas, paletó marrom, camisa branca de linho, com colarinho alto e abotoaduras, gravata, sapatos de verniz de bico fino, pernas cruzadas. Muito se comentava a respeito, nas rodinhas literárias, no Bom Giovani e no Franciscano, no clube dos engenheiros e no Terrace Itália. Não somente os passantes da Barão se arrepiavam de ver a figura do mestre, perfeitamente imóvel, raro piscando, parecia até mesmo uma estátua. Tão bem falante, no mezanino, aqui, diante do público, mantinha-se calado. Hirto e calado. Pernas cruzadas, recostado como um bom savoir faire. Como um treinado manequim de loja, dessas meninas que enfeitam em épocas especiais.

Ele não ria, nem sequer sorria. Nem sequer olhava. Algumas pessoas permaneciam diante dos vidros um bom tempo, para se certificarem de que não era um clone do escritor, nem alguma bem feita estátua, copiada da ilustre figura.

Entretanto, assim calado, ele estava a seu modo discutindo, que a propaganda é a alma do negócio, como acreditava, como praticava, como dizia alto e bom som, reafirmando que um livro é mercadoria tão boa de negócio e de métodos de impingi-la como o arroz, o sabão e a mortadela.

Ouvindo os comentários e cochichos diante dele na vitrina e tendo os comentaristas e críticos e cronistas, eu sei que ele sorria por dentro.

E o que diziam dele?

Vaidoso?Ridículo?Negociante?Cabotino?

Quando Pablo Neruda esteve no Brasil, Monteiro Lobato estava mais morto do que vivo. Neruda também, que tinha um câncer em estado avançado. A apresentação dos dois intelectuais de esquerda no Pacaembu foi um delírio, apesar de ser um tempo em que comunista comia criança, na avaliação do povo. A voz cavernosa e enrouquecida de Lobato mal foi entendida. Até agora ainda mal entendemos essa voz.

Amigos, ambos de esquerda, Lobato e Neruda pensavam do mesmo modo, em relação ao livro, como produto para divulgação.

Achavam os dois que livro deveria alcançar as classes mais populares, ser vendidos em supermercado, açougue, farmácia, nas praças, no chão, na pastelaria, nos tabuleiros. Livro era para ser visto, folheado. Bem ao contrário do pensamento da época, de que as pessoas que gostassem de livros iriam buscá-los nas livrarias. Lobato procurava desmistificar o livro como utopia da intelectualidade. 

Diz ele: Livro não é para ficar no altar (leia-se prateleira de livraria, biblioteca) e nem para ser adquirido como supérfluo, quadro ou estatueta.

Banco da praça

Ruth Guimarães

Foto de Botelho Netto
Agora é que eu sei por que velho gosta demais de sentar num banco de jardim. Ficar sentado lagarteando, solzinho morno antes das onze. Temperatura pedindo sombra de árvore. E tanta coisa pra ver! Mas tantas coisas e das mais deliciosas que existem. Primeiro aquele relógio da torre da igreja matriz, que nunca está certo. E assim mesmo a cada cinco minutos estamos olhando para cima, conferindo as horas. O saibro canta sob os passos que vão e vêm da menininha que corre, perninhas curtas, gordas, cheias de covinhas e de roscas. Da moça de saltos muito altos. Dos colegiais, da mãe com a criança de colo, dos operários que vão para o almoço. 

A gente que passa varia. Ora são as mulheres com cesta de compras, apressadas, mas não muito, havendo sempre tempo para uma boa prosa. Ora, à saída ou entrada das escolas, os uniformes em azul e branco. 

As cores também mudam. De que cor é o branco da manhã clarinha, recém lavada da cama do dia? A face ainda molhada do orvalho? De que cor é a cabeleira de fogo do sol, desnastrada pelo céu de água marinha? De que cor o dourado da manhã que adolescerá algumas horas depois? 

Os passantes não vêem nada disso. Não viram o broto que espia em cada nozinho dos ramos, há dias sem vida, nem as últimas azaléias brancas escondidas no verde-escuro da folhagem. Nem as onze-horas sorrateiramente se abrirem em ciclame no canteiro em forma de estrelas. Nem que a terra sob as árvores está úmida, limpa e cheirosa, como se o Criador tivesse acabado de fazê-la. Mas não é isso. Claro que não. Não é o ver, o sentir, é o sentir. É o ser ou o deixar de ser. 

Quem passa está ocupado com o por vir e com o fazer. Está com pressa Vai não sabe onde, fazer ainda não sabe o que. Buscar não descobriu o que, ansioso e agitado, pois não descobriu ainda a lição a respeito da desimportância da vida. 

Eu sei por que velho gosta de ficar no jardim. Gente precisa de gente para viver. Sorriso de gente também é sol. 

Não é bom perguntar a si mesmo ou ao seu vizinho de banco se não é aquela moça bonita e sem juízo. E que fazem as mães daquelas crianças que ali estão... E por que motivo o moço colocou um chapéu verde bem no alto da cabeça e por que parece tão envergonhado: Por que não tira o chapéu? E com essas e outras cogitações inúteis, cada um tenta convencer a si mesmo e aos outros que ainda não desistiu. Ainda está ali. Ainda vê e participa. Estou aqui, gente. Estou aqui. 

Agora eu sei por que velho gosta de ficar no banco do jardim. Não participar não é não sofrer. Ninguém pode nada contra isso. 

Com o tempo vem inapelavelmente a sensação de que a vida é afinal uma interinidade um tanto passageira.

O grande calote

Ruth Guimarães 

Uma história que eu gosto de contar é a do esperto pescador de Nápoles. Havia nessa cidade um pescador de profissão, um tal Ciccillo, que todas as manhãs saía do porto com o seu barquinho e ia pescar em alto-mar. 

Certa tarde, durante a pescaria, reparou que o tempo ia mudando, pois começava a soprar o vento precursor de tempestade. Os marinheiros sabem distinguir o vento manso daquele que precede a borrasca. Por isso resolveu recolher todas as redes e voltar para a casa. 

As tempestades no mar às vezes surgem repentinamente e Ciccillo, no breve prazo de um quarto de hora, encontrou-se no meio de vergalhões tão agitados e tão desordenados, que o pobre diabo dizia para si mesmo: “Hoje é o dia em que vou morrer!” 

Lembrando-se então de São Genaro, o protetor dos napolitanos, como nós aqui temos Nossa Senhora Aparecida, para cuidar dos paulistas, ajoelhou-se e pediu que o salvasse: 

- San Genaro, tem dó de mim! San Genaro mio bello. Não me deixes morrer! Tu bem sabes que tenho quatro guaglione e a mulher paralítica. Faltando eu, onde iriam buscar dinheiro para a macarronada de todos os dias? São Genaro, tu me salvas e no dia de tua festa, levar-te-ei um feixe de velas! São Genaro mio bello, salva-me se queres as velas! 

O santo, condoído de sua trágica situação, pediu a Deus que lhe permitisse salvar o infeliz, no que Deus concordou. 

Imediatamente a tempestade abrandou, os vagalhões, aos poucos, tornaram-se mais mansos, e, por fim, os elementos acalmaram-se completamente, permitindo ao pescador voltar à sua “bella Napoli”. 

Nos domingos seguintes, quando ia à missa, o santo dava-lhe certas olhadelas esquisitas, como para dizer-lhe: Lembra-te da promessa! e, quando, durante a semana, que a borrasca não permitia pescaria alguma e os pescadores andavam pra lá e pra cá trocando pernas pela cidade, ao passar na frente da igreja, Ciccillo tirava o chapéu, não tinha coragem de olhar para o santo, talvez porque já estivesse com algum criminoso plano arquitetado. 

Chegou por fim o dia da festa de São Genaro. Nessa manhã, o velhaco pescador não queria ir à missa, com receio de que o santo lhe lembrasse a promessa Não querendo, no entanto, perder a função, resolveu assistir ao ofício divino da sacristia, exatamente às costas do santo. 

São Genaro, porém, estava de olho bem aberto. Logo que viu Ciccillo cruzar a praça da Matriz e dirigir-se para trás do templo, rumo à sacristia, chamou-o apressadamente: 

- Olá Ciccilo! Vem cá! E o feixe de velas, Ciccillo? 

Ele, apesar da gritaria de São Genaro, que se ouvia a légua e meia, tocava adiante, impertérrito, olhando do lado oposto e fingindo não escutar os chamados. Desta forma, o dia fatídico passou, dia comprido que não se acaba. 

Daí em diante, o descarado mentiroso julgou-se quite de qualquer compromisso com o santo. “Me cobrou, me envergonhou em praça pública, eu agora não pago mesmo.” 

Quando o povo de Nápoles ficou ciente dessa tramóia, inventou o tal provérbio popular: “Passata la festa gabbato lo santo.” “Passada a festa, caloteado o santo.” 

Ora! o que vem por aí, no fim do ano, é uma grande cópia de promessas. Se você não tem problemas, não se preocupe. Os candidatos encontrarão alguns bem cabeludos ou os inventarão se for necessário. Daí farão miríades de promessas de os resolver. Passado o quê, vem o imenso, o inominável, o abominável calote. 

Até outra safra.

Os Poemas de Guto

Ruth Guimarães 

O livro de Guto começa com um poema que é a própria dedicatória. Ao Botelho. No nosso exemplar, por ele gentilmente oferecido, chama o Botelho de amigo, a mim trata meio que medalhona, e me chama de Mestra, com M maiúsculo. Fiquei sem saber se essa maneira de classificar deve me lisonjear ou entristecer; eis que o nosso poeta tem duas grandes qualidades, ou dois grandes defeitos, dependendo do ponto de vista. Primeiro aquela sensibilidade agônica dos muito moços e muito poetas, e segundo o romantismo no seu caso dirigido para o niilismo à Alvares de Azevedo e a 1899, que faz taboa rasa de tudo, e descrê de tudo, e ficamos sem saber se é melhor atribuir essa crise existencial ao excesso de mocidade, e passa mais ou menos sem seqüelas, como o sarampo. 

O poeta meio que pede desculpas de juntar tais e tais poemas e nos conta que se demorou a ter coragem para isso. 

Coragem de que? Coragem de sair à luz, enfrentar as críticas e comentários, sem saber bem se tinha acertado? Mas esse temor devia ter sido quando da publicação do primeiro livro, quando perdeu a virgindade com os haikais. 

Então, o quê? A coragem de dizer e escrever palavrões? Depois de Jorge Amado e da desorientação da TV. Basta que a gente dê uma boa olhadela ao Decameron e a outras obras desabusadas do medioevo, para perceber que isso não é mais necessário. 

Coragem, a própria palavra quer dizer coração intrépido. 

Eu sei bem da sua coragem, meu poeta! Aquela coragem de violentar a si mesmo e trazer à luz o imo em carne viva. Contar da sua tristeza existencial, da sua descrença, do seu negativismo, das suas desilusões. Da incapacidade e de impotência de enfrentar o mundo e seus horrores. De desculpar o homem e a cega caminhada para o abismo. Existir não é fácil, quando se tem a sua sensibilidade. 

O poeta nos mostra o nosso rosto original, o que tínhamos antes de nascer. Pois que em verdade temos duas idades. A do nosso tempo presente e a que trazemos conosco ao vir ao mundo: o pacote genético, com tudo que a humanidade aprendeu definitivamente, em milhões de anos, e ao qual vamos acrescentar um grão, ao lutarmos para viver como a vida deve ser vivida. 

A última notícia que me vem desse poeta é que volta para Cachoeira talvez, mas de qualquer modo para o Estado de São Paulo. Fez concurso para professor do Estado. Passou muito bem classificado. Vencedor? Joguete de suas tarefas ilusórias? 

Neste mundo brasileiro há duas classes de gente abandonada ao seu destino precário e sonhador: os artistas e os professores.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

A gramática no cordel

Literatura popular no ensino da língua portuguesa

Bel Levy

– Estudo é coisa séria
Não me venha com pilhéria
Decore a cartilha, sim senhor!
– Que é isso, professor?
É com rima e bom humor
Que o menino vira doutor!

Se você gostou dos versos acima, certamente simpatizará com Janduhi Dantas: eles foram construídos inspirados nas 263 sextilhas que ele compôs em sua Gramática no cordel . Professor de português de escolas de ensino médio e cursinhos pré-vestibulares da Paraíba, ele resolveu divulgar regras gramaticais de forma criativa para facilitar – e alegrar – o aprendizado dos alunos.

A literatura de cordel é bastante popular no Norte e Nordeste e durante muito tempo funcionou como um meio de divulgar as histórias e a cultura de uma região. Antes dos jornais, do rádio e da televisão, era por meio dos folhetos de cordel que o povo tomava conhecimento dos feitos de Lampião e Maria Bonita, de crimes, milagres e até de secas e enchentes.

Janduhi, que é cordelista, aproveitou essa característica tradicional do gênero para fazer circular, de forma simples e interessante, as normas às vezes complicadas da gramática: "As rimas ajudam a memorizar e, como os versos são geralmente engraçados, o aprendizado se torna mais rápido e a aula, eficiente", garante o professor.

A idéia de escrever a Gramática no cordel surgiu quando seus filhos, de 12 e 11 anos, pediram-lhe ajuda para uma prova de português. "Nisso me deu um estalo / e a luz da idéia acendeu: / eu disse – agora, meninos, / uma idéia me ocorreu: / 'cês vão aprender gramática / como nunca se aprendeu", conta Janduhi na introdução do livro.

O cordelista começou, então, a criar as sextilhas gramaticais que hoje compõem a obra. São estrofes sobre fonologia, semântica, morfologia e sintaxe, que explicam as regras da língua portuguesa e esclarecem dúvidas comuns entre os alunos – como a diferença entre há e a , afim e a fim , onde e aonde .

A publicação foi totalmente financiada por Janduhi, em uma pequena gráfica da cidade, o que resultou numa edição modesta. Ele mesmo vende os exemplares em escolas da região, com a ajuda sobretudo de amigos. A Gramática no cordel custa R$ 12 e pode ser adquirida junto ao autor pelo telefone (83) 421-8977 ou pelo e-mail dantasjn@ig.com.br .

A gramática no cordel
Janduhi Dantas
Gráfica, Editora e Cartonagem Visão
Patos (PB), 2004
51 páginas

Confira algumas sextilhas da Gramática no cordel :

Substantivo
O Substantivo dá
Nomes aos seres em geral.
É o nome dado a coisa,
Ação, pessoa, animal...
É palavra variável
Em gênero, número e grau.

Mortadela, sem n
Não vá comer morta n dela
Pra não ter idigestão,
Mas mortadela , sem n ,
Pode comer de montão:
“Levante a mão quem não gosta
De mortadela no pão!”

Cocô gelado?!
Colocar acento em coco
È um erro bem danado!
Principalmente no fim
Se o acento é colocado
Pois ninguém está maluco
De beber “ cocô gelado”!

Há = passado, a = futuro
Na indicação de tempo,
Há e a são empregados:
A se emprega no futuro ,
Há se usa no passado –
"Vou sair daqui a pouco",
" Há dias fui ao mercado". 

Revista Ciência Hoje

O Cuidado dos Mortos: Uma História da Condenação e Legitimação do Espiritismo


GIUMBELLI, Emerson. 1997. O Cuidado dos Mortos: Uma História da Condenação e Legitimação do Espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 326 pp.

Patricia Birman
Profª de Antropologia, UERJ

A pergunta mais pertinente a respeito desse trabalho minucioso, feito com raro empenho em explorar antropologicamente fontes historiográficas, talvez seja a mesma que a sociedade dirige a seus religiosos ditos e reconhecidos como "espíritas": vale mesmo o que está escrito? Ou, em termos equivalentes, será que o sentido dos textos psicografados que, frase após frase, contam histórias de personagens famosos, atribuem um sentido moral a certos comportamentos, explicam certas curas e os procedimentos a seguir deve ser buscado nos princípios da mediunidade, ou seja, na fonte que permite entender e acreditar na psicografia?

Para os espíritas, com efeito, a escrita dos médiuns é reveladora porque se parte da pressuposição de que o seu sentido advém de fonte sobrenatural. Assim, o médium não faz nada mais do que transcrever o que o espírito lhe dita e esse conhecimento transmitido é passível de ser incorporado mediante um trabalho de exegese feito por seus seguidores que mistura, em doses indiscerníveis, a interpretação que realizam com tudo aquilo que acreditam lhes chegar diretamente, sem contaminações, desse emissor do Além. Por mais que, portanto, naturalizem o texto psicografado, os espíritas reconhecem a existência de premissas que o validam, bem como de uma interpretação que lhe dá sentido.

Quando aproximo os documentos psicografados dos processos analisados por Emerson Giumbelli quero, para além de uma brincadeira, colocar em discussão o lugar que nos últimos se concede à interpretação. Certamente, os critérios interpretativos que conduzem a pesquisa etnográfica a hipóteses interessantes não são os mesmos daqueles aplicados pelo espiritismo diante de textos "psicografados", mas tanto espíritas quanto antropólogos reconhecem, por vezes com evidente dificuldade, que os dados não falam por si mesmos e que, portanto, é preciso dotá-los de sentido. Dessa maneira, reconhece-se a polissemia que os habita, enfronha-se em uma rede de discursos contraditórios e ambíguos para, finalmente, construir uma mera versão. A incerteza, pouco tranqüilizadora, a respeito dos resultados alcançados não deixa nem espíritas nem antropólogos descansar em paz. O mundo dos mortos e as comunicações que resvalam de antigos textos lhes acompanhará para sempre.

Deixemos por ora essa aproximação para expor em linhas gerais esse importante trabalho sobre o espiritismo no Brasil. Com um recorte preciso em uma enorme massa de material, Emerson manuseia fontes diversas para discutir a constituição do espiritismo no Brasil e, particularmente, no Rio de Janeiro. Ele parte da suposição de que o espiritismo é uma produção histórica e contextual, resultado de um processo que não continha, desde os seus primórdios, o traçado de seu caminho já delineado. Em outras palavras, a noção, hoje pouco relativizada, de que espiritismo é religião seria efeito, segundo o autor, de uma conjunção peculiar, de um encontro de diferentes estratégias discursivas desenvolvidas por agentes sociais diversos. Nesse processo, atuaram de maneiras contextualmente também diferenciadas as instituições médicas, jurídicas, os meios de comunicação, os agentes religiosos espíritas, católicos e outros, além das forças policiais. Com distintas estratégias discursivas esses grupos, ao se enfrentarem e por vezes também se alinharem, instituíram categorias, forjaram polaridades (como aquela que opôs "místicos" e "científicos" entre os espíritas de diferentes facções), estabeleceram jurisprudências, práticas diversas que hoje são difíceis de apreender (e, portanto, desnaturalizar) como efeito de um processo. A formação do espiritismo, tal como o conhecemos, no presente é efeito desse processo desenvolvido em um certo campo de forças, do entrelaçamento que se produziu entre discursos e poderes que foram capazes de fazer valer não somente algumas versões, mas também instituir certas práticas.

Giumbelli, nesse sentido, analisa a dinâmica e os atores sociais presentes no final do século passado e início deste que redimensionaram o lugar dos discursos médicos, transformaram as fronteiras identitárias dos grupos religiosos e redefiniram, sucessivamente, os papéis atribuídos ao Poder Judiciário e à polícia para, a partir da análise desse contexto e desses embates, compreender o espiritismo como resultado disso tudo. Contexto é, pois, uma palavra-chave. Produto de um campo de lutas em que se definiu competências médicas e jurídicas, emerge como lugar possível para o espiritismo aquele concedido à religião. Criam-se, portanto, novos lugares e novos papéis. O autor explica, assim, como, a partir de um certo momento, cristaliza-se uma crença por meio da qual o espiritismo construiu o seu lugar. Este teria se subordinado ao monopólio de cura conquistado pela medicina e se aliado ao poder policial para garantir, no campo "religioso", seu papel privilegiado em relação ao baixo espiritismo, à macumba, ao candomblé, ou seja, aos cultos de origem africana em geral.

Segundo a hipótese desenvolvida por esse trabalho, a construção histórica desse campo e o formato que veio a adquirir, em função do jogo de forças e estratégias discursivas que o traspassaram, concederam ao espiritismo, no Rio de Janeiro, comparativamente, um lugar de referência, um ponto de ancoragem em torno do qual todos os conflitos religiosos passaram a se expressar, e o metro a partir do qual passaram a se hierarquizar. O espiritismo no Rio de Janeiro teria tido, desse modo, papel equivalente àquele desempenhado pela africanidade nagô na Bahia, construída por uma aliança entre intelectuais e certos grupos de culto que passaram a ter o poder de legitimar, segundo seus critérios e medidas, os outros cultos de possessão. Mais do que um operador de distinções, o espiritismo teria sido capaz, portanto, de instituir práticas e critérios por intermédio dos quais os grupos religiosos associados à possessão passaram a se regular, obedecendo, assim, às injunções históricas que deram ao espiritismo kardecista um poder auxiliar de polícia e fizeram da Federação Espírita Brasileira (FEB) um regulador doutrinário tanto para "dentro" dos grupos espíritas quanto para a sociedade.

As conclusões a respeito do espiritismo no Rio de Janeiro são alcançadas mediante uma análise que se desdobra em torno de diferentes momentos históricos e debruça-se sobre práticas institucionais diversas. O papel e o perfil da FEB resultam tanto de um esquadrinhamento de suas práticas quanto dos efeitos dos confrontos aos quais foi sendo submetida no interior desse campo. O privilégio concedido à formação da FEB teve como resultado colocar em relevo a sua formação e, ao lado disso, também permitir entender o papel de outras instituições no Rio de Janeiro em alguns momentos decisivos, como as instituições sanitárias e judiciárias no processo de urbanização da cidade, os procedimentos judiciários associados à formação da República, os sucessivos lugares e diferentes definições do charlatanismo, os códigos penais e as jurisprudências estabelecidas etc.

Esse plano analítico pôde ser alcançado graças ao trabalho de investigação que envolveu diferentes fontes históricas. Cabe ressaltar o mérito, ainda raro na antropologia produzida no Brasil, do esforço de enfrentar essa modalidade de pesquisa, distante da perspectiva tradicional da disciplina com o seu privilégio atribuído ao trabalho de campo e à observação participante. A pesquisa fundamentou-se, essencialmente, no estudo de quatro processos-crimes instaurados com base nos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal de 1890. A partir desses processos, o autor busca examinar como se estruturou a repressão ao exercício ilegal da medicina, como se fizeram presentes as acusações relativas ao espiritismo e à Federação Espírita Brasileira. Além disso, foi beneficiário das fontes pesquisadas no Arquivo Nacional, relativas tanto a esses processos quanto a outros, por Yvonne Maggie em Medo de Feitiço, tese de doutorado também do Museu Nacional, posteriormente premiada e publicada pelo Arquivo Nacional em 1992 (como ocorreria mais tarde com O Cuidado dos Mortos: Uma História da Condenação e Legitimação do Espiritismo).

Voltemos agora à questão mencionada de início sobre o lugar da interpretação. Como disse, tanto os textos psicografados como os processos não falam por si. Essa aparente obviedade, por vezes, parece ser diluída na análise que o autor faz dos processos penais. Talvez, por conta disso, ele não cumpra o que promete, em função de um discreto nominalismo que atravessa a elaboração do seu argumento. Com efeito, ao construir sua hipótese a respeito da aceitação do lugar de religião que o espiritismo da FEB promoveu, Giumbelli se apóia no que está dito nos processos sem, no entanto, articular inteiramente esse dito com o contexto discursivo presente nos processos e também fora destes. Texto e contexto operam separados em momentos importantes de sua análise. Com efeito, este último parece funcionar mais como um quadro de fundo do que como uma articulação analítica que permitiria justificar a interpretação dos discursos referidos. Destaquemos um exemplo, entre outros que poderiam ser citados. Na análise que empreende dos processos, Emerson Giumbelli não os toma como um texto composto de múltiplas intervenções e confrontos que se apresentam - como depoimentos, provas documentais, testemunhos, relatos, descrições etc. Os processos são apresentados, fundamentalmente, através do discurso elaborado pelo advogado de defesa da FEB. Como pano de fundo temos uma análise do campo médico da época e suas questões, como, por exemplo, o lugar atribuído à hipnose, ao magnetismo, à sugestão. Sem dúvida, aquilo que designo como pano de fundo se refere ao contexto, mas revela pouco das articulações discursivas que foram operadas por esses interlocutores no próprio processo e, muito menos, os deslizamentos de sentido que foram sendo operados pelos diferentes interlocutores no curso desse confronto. Assim, o contexto, aquele que nos daria as estratégias discursivas empregadas pelos agentes sociais que se fazem presentes no processo e fora dele, a partir dos lugares e interesses diferenciados, está ausente. As relações de sentido, em lugar de emergirem de uma análise dessas relações contextuais e, portanto, das redes de sentido que se tramam, são deduzidas das práticas espíritas e das orientações adotadas pela FEB, como resultados alcançados posteriormente a esses processos, o que pressupõe uma relação direta entre a funcionalidade de certos comportamentos e o discurso elaborado pela defesa espírita. E o sentido do discurso espírita parece, assim, falar por si mesmo, dispensando um trabalho interpretativo que supõe a interlocução com os outros discursos e agentes sociais que em vários níveis se fizeram presentes.

Em decorrência dessas pressupostas articulações, o autor sustenta a criação de um modelo institucional que explicaria as atividades espíritas e o lugar (funcionalmente adequado) que a FEB viria a ocupar no Rio de Janeiro. Pergunto-me se essa sua hipótese, rica em conseqüências, não deveria se apoiar mais na análise das articulações discursivas que se propõe a fazer do que na funcionalidade que se torna um dos elementos mais importantes de sua comprovação.

O autor tem o mérito de não se furtar à discussão com os trabalhos que antecederam o seu. Por isso, como reconhecimento do seu esforço de esclarecer seus pontos de discordância, merece que levemos a sério seu livro, buscando também contribuir para o debate que inaugurou. É importante, por fim, frisar que somente os bons trabalhos como o seu são críticos e suportam críticas em razão do valor das questões que levantam e buscam resolver.

Revista Mana

Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural

Eduardo Dullo
Mestrando do Museu Nacional – UFRJ

Montero, Paula (org.). Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural, São Paulo, Globo, 2006, 583 pp.

Engana-se quem se limita, ao ler o título, em pensar nesta coletânea como uma produção somente acerca de missionários e índios. O subtítulo é suficientemente completo para indicar a relevância de sua leitura para um público mais amplo: a mediação cultural, que é pensada enquanto categoria articuladora desses atores sociais. A leitura dirigida que forneço nesta resenha discute menos os dados de pesquisa e mais a elaboração que os sustenta. A razão dessa escolha reside nas questões levantadas pelos autores, dignas de uma expansão, tal como se pode inferir das palavras da organizadora: "A atividade missionária foi, por excelência, como veremos neste trabalho, uma atividade de classificação e comparação das diferenças de modo a localizá-las em quadros universais" e "agentes como os missionários são especialistas voltados para a produção desse tipo de compatibilização" (pp.10 e 56, respectivamente, grifos meus).

As pesquisas foram desenvolvidas em diferentes âmbitos institucionais, o que acarreta inovadoras contribuições. Há a presença dos departamentos de Antropologia das universidades de São Paulo, de Campinas e da Federal do Rio de Janeiro (Museu Nacional), além da valiosa contribuição do professor de História Moderna da USP e de História das Religiões da Universidade de Udine. O esforço é agrupado com os diálogos ocorridos no Cebrap, sob coordenação de Paula Montero. Um empreendimento coletivo de tal envergadura, culminando em coletânea com 11 autores e capítulos, além da introdução da organizadora, não se realiza facilmente. Esse é o primeiro mérito e sucesso. Entretanto, a leitura dos capítulos evidencia a divergência (em alguns casos, mais clara) entre os autores.

Aproveitando-me da apresentação do livro feita pela organizadora, reproduzo-a integralmente:

Esse debate tem, a nosso ver, cinco dimensões principais, ou cinco conjuntos de problemas que podem nos servir de eixo para a apresentação deste empreendimento coletivo: o modo como procuramos enfrentar o problema metodológico das relações entre antropologia e história; o uso que fizemos dos principais conceitos – religião e cultura – utilizados nestes textos; a questão estratégica da tradução nas relações de mediação; o privilégio que demos à noção de rede na análise das relações sociais e simbólicas; e, finalmente, o modo como procuramos construir uma perspectiva teórica adequada ao problema da interculturalidade que enfatizasse os sentidos produzidos nas relações. (pp. 11-2)

Seqüencialmente, ela apresenta os cinco eixos, comentando todos os capítulos. Não irei refazer o que já foi (bem-)feito. Cabe apenas ressaltar a amplitude dos trabalhos, articulando-se os eixos dos missionários jesuítas no século XVI aos evangélicos fundamentalistas atuais, de fontes documentais a pesquisas etnográficas em aldeias, e das práticas e estratégias de conversão às alterações decorrentes das revisões teológicas.

Minhas questões, no entanto, são direcionadas à teoria da mediação cultural e, mais propriamente, à formação de "códigos compartilhados". Se, como colocou a organizadora, os missionários são "especialistas" nesse tipo de "compatibilização", devemos inferir que essa é uma atividade possível para outros atores sociais, entre eles os indígenas – envolvidos na mediação – e quaisquer outros. Por isso, com essas frases (e ênfases) sempre em mente, o missionário de uma Modernidade nascente – formada, entre eles, no Concílio de Trento e na decorrente passagem para a catequese apostólica (cf. pp. 111 e 502) –, a atuação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e das missões evangélicas da contemporaneidade não são os únicos objetos possíveis para as questões postas. Embora os trabalhos da coletânea sejam restritos à nossa alteridade antropológica radical, não devemos descuidar do olhar que procura compreender a alteridade pela ótica dos agentes em análise.

O volume, que é organizado sob a rubrica de uma "antropologia das missões" e que se pretende inovador ao romper com abordagens que às vezes são mutuamente exclusivas – como as que enfocam objetos de análise cunhados com os termos de antropologia ou história das religiões e etnologia indígena (cf. p. 23) –, traz para o centro do debate não o estudo de grupos, atores, culturas e, sim, o modo como cada um desses torna a diferença comensurável.

Ao longo dos diversos capítulos, descreveu-se o modo como o missionário se comunica com a diferença nativa – como ele imagina que o nativo é ou pensa e como incorpora certos modos interpretados como nativos; ao mesmo tempo, procurou-se descrever como o nativo se apropria em parte de algumas dessas representações de si e do missionário. (p. 25)

Os capítulos de Cristina Pompa, Marta Amoroso, Ronaldo de Almeida e Artionka Capiberibe demonstram de maneira mais nítida a centralidade adquirida pelos indígenas, capazes de articular modalidades do "sobrenatural" no procedimento de "imaginação" do outro: o xamanismo é, inicialmente, elevado à potencialidade religiosa pelos missionários. Assim, o xamã é visto como capaz de transitar entre mundos e, dessa forma, capaz de apreender diferentes pontos de vista. No entanto, ele é também percebido negativamente pelos missionários, pois sua relação com o "sobrenatural" não é a cristã. Por fim, os momentos de permissividade missionária – como observado por Amoroso (p. 229) e por Almeida (p. 289) – reduzem suas práticas a aspectos "terapêuticos" e "técnicos".

Nas missões católicas contemporâneas, um aspecto crucial é estudado por Marcos Rufino: a Teologia da Inculturação. Formulação teológica recente (a partir de meados dos anos 80), ela se propõe a recusar a primazia ocidental e européia do cristianismo e a verificar, nas outras culturas, sinais da Boa-Nova que não estão visíveis na cultura do missionário. Essa abertura ao Outro busca trazer elementos, no caso, indígenas, para o cristianismo. Rufino observa com detalhe a passagem e o debate entre duas teologias católicas: da Libertação e da Inculturação. Passa-se da libertação dos pobres (categoria homogeneizante) à promoção dos índios: "o empreendimento de cristalização de entidades socioculturais distintas em uma mesma personagem [...] cede lugar ao seu oposto. Cabe aos missionários, a partir de então, lançar-se no paciente trabalho de reconstituição das diferenças" (p. 253). Mas o trabalho de Rufino demonstra, ainda, como tais propostas, a princípio tão díspares e opostas ao olhar antropológico, foram conciliadas pelo CIMI.

A mesma Teologia da Inculturação é contrastada com outra, a da Transculturação, por Almeida (p. 287). Se, como mostrou Rufino, a primeira é uma revisão dos procedimentos missionários pela Igreja Católica, a ponto de Almeida dizer (p. 288) que ela "positiva aquelas dimensões da vida indígena que foram demonizadas pelos jesuítas" – o que pode ser observado nos capítulos 2, 3 e 4 de Gasbarro, Pompa e Agnolin –, a segunda "anuncia" o Evangelho "às culturas [...], remodelando o universo de valores, rituais e comportamentos, segundo os parâmetros da religiosidade evangélico-fundamentalista".

Os capítulos da coletânea, em íntimo debate, permitem, pela comparação dos meios e métodos dos missionários, uma elaboração antropológica que os organize. Montero, apoiada em Wittgenstein, evita a noção de "Cultura", redimensiona-a como categoria nativa para visualizar o que chamou de código. Este só pode ser concebido a partir do "aprendizado do uso de determinadas matrizes ou regras", quando as pessoas estão "dispostas a se comunicar" e a "compartilharem experiências comuns" (p. 26). Mas não podemos deixar de lembrar de maneira diversa da autora (cf. p. 55) – que a pretensão universalista do cristianismo, analisada como o especialista na inclusão da alteridade e na pedagogia das regras, não encontra um equivalente direto nos indígenas com quem se defronta. A atribuição do interesse de códigos compartilhados a todos os envolvidos me parece excessiva, bem como a atribuição de uma mesma lógica na produção desses códigos. Só é possível conceber que a alteridade possa ser reduzida e aproximações feitas dentro de um pensamento como o dos missionários cristãos (pretensão compartilhada pelos antropólogos). Nós (geralmente), como os missionários, cremos nessa possibilidade. Mas como afirmar que os indígenas agiam da mesma forma sem uma preocupação minuciosa diante dos dados?

Se, como afirma Montero (p. 56), as categorias indígenas possuem "menor alcance de generalização", não seria o caso de se preocupar mais com sua "lógica da produção de diferenciações e oposições"? O que me parece é que há o encontro entre duas lógicas bem distintas: uma inclusivista e universalista e outra diferenciante e oposicionista. Então, a questão que coloco é: ocorre uma produção de códigos compartilhados na ótica dos dois envolvidos ou apenas na dos missionários?

Se, por um lado, somos bem informados sobre o interesse missionário na "produção desse tipo de compatibilização", o material etnológico não adquire relevo capaz de nos fornecer a mesma informação por parte dos indígenas. Parece-me que, aqui, reside uma das divergências entre os autores. Alguns são mais inclinados que outros à possibilidade de alcance da voz indígena em fontes documentais (conforme podemos observar nas páginas 12-15, 124, 227, 304); e os últimos preferem restringir-se a falar dos missionários e da forma como estes descrevem os indígenas.

Exemplarmente, a aproximação ou, nas palavras de Cristina Pompa, a "redutibilidade" do Outro ao Eu – do indígena ao missionário capuchinho (cf. p. 122) – pode também ser lida como uma concepção da alteridade feita pelo missionário com base em sua simbolização privilegiada: as convenções nos termos religiosos (p. 123). Embora a análise da autora nos permita observar somente o modo como o capuchinho concebe o indígena, podemos inferir uma atividade similar por parte desse outro ator envolvido. Para além das teorias da ação, prática e/ou agência, o que se reivindica para todos os atores é uma capacidade de simbolização e de compreensão do Outro a partir de Si. Seria necessário o mesmo trabalho de imersão nos indígenas, tal qual feito para os missionários, para que possamos compreender a "negociação da realidade" e, principalmente, qual a importância que esta adquire para ambos.

O trabalho missionário adquire, ainda, outras relevâncias no debate contemporâneo: ao deslocar as categorias de "religião", "cultura", "conversão" e "etnicidade" para o plano nativo, elas se tornam elementos para análise e recebem um uso tático (cf. p. 383). Especialmente nos capítulos de José Maurício Arruti e Melvina Araújo, observa-se o trabalho missionário que, baseado na religião, estabelece conexões com a cultura indígena que envolvem alterações no entendimento de sua etnicidade (cf. pp. 382, 421; e, para Araújo, pp. 441-2). Esse movimento é observado por Arruti como uma "conversão às avessas [...] de civilizados em indígenas, do catolicismo a uma religião indígena (porém agora genérica)" (p. 421) ao "resgatar os elementos da cultura e da religiosidade indígenas soterrados sob camadas geológicas de catolicismo popular, como forma de favorecer que populações camponesas contemporâneas se reinvistam de uma identidade étnica ancestral" (p. 423).

No caso dos índios macuxi pesquisados por Melvina, a afirmação étnica promovida pelos missionários da Consolata está relacionada estreitamente com a problemática do território. É devido ao conflito com posseiros e às fazendas estabelecidas na região que ocorre um "deslocamento contextual das significações cristãs": Cristo, em sua "defesa da terra e da união fraterna" como "chaves da salvação", é lido como uma defesa do território e da organização política (p. 433).

A multiplicidade de agentes é um excelente caso para se repensar critérios comparativos, trabalho realizado pelos missionários ao comparar diferentes povos com quem interagem, mas também pelos autores, ao colocar lado a lado esses diferentes indígenas, missionários, teologias e conversões. É assim que a proposta deste livro expande-se, como se observa, para além dos interessados na religião ou na etnologia.

Revista de Antropologia

Black mass


Edgar Salvadori de Decca
Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Caixa Postal 6110. 13081-970 Campinas — São Paulo — Brasil. edecca@terra.com.br

John Gray. Black mass
New York: Penguin Books, 2008. 352p.

Ele não é muito lido nas universidades brasileiras. Acho até que cometo um exagero. Ele não é sequer conhecido nos nossos meios universitários. Refiro-me a John Gray, filósofo da Universidade de Oxford e professor da London School of Economics, figura de destaque no mundo intelectual europeu e americano, considerado uma das inteligências mais brilhantes deste novo século XXI. Apesar de desconhecido entre nós universitários, há algum consolo diante de uma feliz constatação: a maioria dos livros de John Gray foi traduzida no Brasil e teve boa recepção. Para mencionar alguns livros importantes, quem aprecia sínteses filosóficas não deve deixar de ler o ensaio sobre Voltaire, da Editora da Unesp (1999), mas também o ensaio sobre Isaiah Berlin, publicado pela Difel (2000), onde esboça as suas críticas às utopias sociais, antecipando os contundentes ataques ao Cristianismo e ao Iluminismo presentes em seu mais novo livro, ainda inédito no Brasil, Black Mass. No ensaio sobre Voltaire mesclam-se as críticas contundentes à religião do Iluminismo e a sinceridade em valorizar a obra desse filósofo. As considerações de Gray sobre Voltaire são polêmicas, a ponto de concluir que: "a filosofia de Voltaire pouco tem a nos ensinar. O maior legado de Voltaire talvez seja o seu desdém pelas consolações da teodicéia — inclusive a do Iluminismo, que o guiou por toda a vida. A ambição voltairiana de ajudar a humanidade a ser um pouco menos miserável pode bem constituir a mais valiosa herança do Iluminismo" (Voltaire, p.54). Podemos reconhecer em Gray os traços característicos de Voltaire, porque apesar de ser também um herdeiro do Iluminismo, seus escritos têm um profundo desdém por uma filosofia que se consola ao reconhecer que apesar de todos os males, vivemos no melhor dos mundos possíveis.

Antes do seu mais recente ensaio filosófico, Gray já nos tinha brindado com obras de profundo conteúdo crítico, derrubando as ilusões de um mundo comandado por um mercado auto-regulado e baseado nos valores da democracia liberal. Há ainda o provocante livro Falso amanhecer (Ed. Record, Rio de Janeiro, 1999), resposta a Fukuyama e à sua utopia do fim da história. No entanto, se essa ilusão utópica do Ocidente mereceu contundente crítica de John Gray, ainda não podíamos imaginar o que estava por vir, depois dos ataques às Torres Gêmeas de 11 de setembro. Num ensaio brilhante e ao mesmo tempo desconcertante, John Gray afasta do 11 de setembro as possíveis conotações tradicionais do islamismo e encara o terrorismo da Al Qaeda, como o produto mais recente da modernidade ocidental. Em um ensaio de forte impacto, John Gray esmiúça as tramas desse novo terrorismo sem fronteiras nacionais e anunciado já no título do livro, Al Qaeda e o que significa ser moderno, também publicado pela Record (2004). Suas conclusões não são nada animadoras, se considerarmos que o terrorismo da Al Qaeda, como o nazismo e o comunismo, pretende criar um novo mundo utópico através do terror. Trata-se, portanto, de uma nova capacidade de potencializar a violência em níveis jamais imaginados por outras épocas históricas anteriores à modernidade. Gray nos alerta, "Nenhuma época anterior acalentou projetos semelhantes. As câmaras de gás e os gulags são modernos. Há muitas maneiras de ser moderno, algumas delas monstruosas" (p.16).

Mas, antes de concluir esse preâmbulo e passar a expor alguns pontos inquietantes do novo livro, Black Mass (Missa Negra), não poderíamos deixar de mencionar a obra que o tornou conhecido em todo o mundo, inclusive no Brasil. Trata-se do ensaio filosófico intitulado Cachorros de palha (Ed. Record, 2005), onde o autor desfere um ataque verdadeiramente contundente contra a nossa ilusão antropocêntrica. Buscando a inspiração em poema de Lao Tsé que diz que o céu e a terra tratam miríades de criaturas como cachorros de palha, John Gray acredita que a terra irá também descartar o ser humano e que estamos em contagem regressiva desse processo. Para ele, qualquer crença no progresso humano é ilusória, e, ainda que possa haver progresso no conhecimento científico e tecnológico, pouco se pode esperar de qualquer tipo de progresso no plano da ética e da política, dado que uma hora ou outra todos esses avanços poderão tornar-se meios de destruição. O livro Cachorros de palha descarta as nossas ilusões sobre o livre-arbítrio e também, na esteira de Darwin, nos equipara a todos os outros animais, com a nossa incapacidade e impossibilidade de sermos donos de nosso próprio destino. Das crenças cristãs até o Iluminismo, ainda somos prisioneiros do livre-arbítrio e das doutrinas da salvação. A prova é que, já no início do século XXI, "o mundo está apinhado de grandiosas ruínas de utopias fracassadas. Com a esquerda moribunda, a direita tornou-se o abrigo da imaginação utópica. O comunismo global foi seguido pelo capitalismo global. As duas imagens do futuro têm muito em comum. Ambas são horrendas e, felizmente, quiméricas" (Cachorros de palha, p.3).

Esta visão pouco condescendente com o antropocentrismo, das origens no Cristianismo até sua principal herança filosófica, o Iluminismo, será a linha mestra do mais novo desafio de John Gray ao campo do pensamento filosófico e político da atualidade. Em Black Mass, há algo de muito mais inquietante e que já se anunciava de modo sutil nas obras anteriores do autor. Afinal, a "Missa Negra" é a versão satânica da missa cristã, e, com essa metáfora poderosa, Gray nos faz mergulhar no universo da utopia, tal como ela se anunciou desde o livro da Revelação, até as mais modernas visões apocalípticas da política. Ao contrário do que imaginamos, as utopias políticas modernas, segundo Gray, nada mais são do que modelos de idealização quiméricos da sociedade, que tiveram seu ponto de partida no Cristianismo. Na companhia de Gray, o leitor estará sempre se defrontando com a suas convicções e suas crenças, mesmo porque, aventurar-se na leitura de Black Mass é enfrentar o dilema de que a política moderna nada mais é do que uma variante da história da religião.

A leitura de Black Mass, além de desafiadora é também instigante e entremeada de nuances históricas, ao abordar a utopia desde as suas dimensões religiosas, como nas revelações bíblicas, passando pelo milenarismo medieval e chegando até as utopias políticas modernas, cuja matriz é a revolução francesa. No entanto, há um foco no livro de Gray que nos deixa em situação incômoda, a começar pelo seu primeiro capítulo, sobre a morte da utopia. Não há como não se incomodar com a constatação de que ao pensamento crítico não cabe mais se deixar levar por qualquer tipo de modelo de idealização da sociedade, porque, todas essas variantes da utopia nada mais são do que a revelação da enorme falácia humanística de que o homem é capaz de moldar o seu próprio destino e ter o controle do sentido da história. Essa crença utópica torna-se ainda mais perigosa, segundo Gray, quando constatamos que a maioria dos movimentos revolucionários modernos compartilha a crença de que a violência é uma força purificadora da história. Em outras palavras, tanto pela esquerda, como pela direita do espectro político moderno, a violência e o terror se apresentam como elementos capazes de liberar a história de suas opressões. Os anarquistas do século XIX, os bolcheviques como Lênin e Trotsky, os pensadores anticolonialistas como Frantz Fanon, os regimes de Mao e Pol-Pot, os grupos terroristas como Baaden Meinhof, os movimentos radicais islâmicos e os movimentos neoconservadores, todos eles se encantaram com as fantasias do poder libertador da violência realizado pela ação revolucionária na história. Assim também se comportaram os regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo de Hitler, Franco ou Mussolini, que acreditaram na violência como força libertadora da história. No entanto, se todas essas utopias nascidas na esteira do Iluminismo pareciam estar sucumbidas no final do século XX, mais aterrorizante é imaginar que a busca pela utopia tornou-se o objetivo principal e exclusivo de um capitalismo moderno de estilo americano. Essa nova utopia, comandada pelos Estados Unidos, tem o aval de muitos governos do Ocidente com a promessa de que no final dos dias o mundo estará dominado pela democracia de estilo americano, nem que para isso seja necessário destruir as bases de uma sociedade e de uma cultura, como está sendo realizado pelo exército americano no Iraque. As correntes conservadoras da direita política do mundo atual estão possuídas por fantasias e utopias de remodelação de sociedade, tanto como estiveram as correntes políticas de esquerdas no século XX. Apesar dos seus sucessos aparentes, essas utopias neoconservadoras, forjadas na violência e no terror, estão se transformando em pó, mais rapidamente do que os sonhos do comunismo e do nazismo do século XX.

Os desafios ao pensamento colocados pelo livro Black Mass não cabem nos limites de uma resenha. Mereceriam um amplo ensaio capaz de acompanhar todas implicações filosóficas e políticas contidas no conjunto de sua obra. Por ora, podemos nos contentar em ter diante de nós uma obra tão inspiradora e, ao mesmo tempo, tão polêmica. Dividido em cinco capítulos, Black Mass começa tratando da morte da utopia, deixando um sinal de alerta para a sua dimensão religiosa e apocalíptica, capaz de renascer onde nós acreditássemos que estivesse liquidada. O segundo capítulo é talvez o mais provocativo. Nele Gray investiga as dimensões religiosas da utopia laica do Iluminismo e extrapola o seu pensamento para as forças do terror e da violência na história. Dessa matriz de filosofia da história, Gray deriva tanto as utopias de esquerda como as de direita, não condescendendo com o comunismo nem com o nazismo e o fascismo, todos eles baseados no terror totalitário. No entanto, a novidade da obra está reservada para os três últimos capítulos, onde o autor se dedica à análise da nova utopia neoconservadora e à americanização do apocalipse, principalmente depois dos acontecimentos do 11 de setembro, culminando com a invasão do Afeganistão e do Iraque.

No entanto, se vivemos esse dilema do fim da utopia, sem com isso dizer que estamos no fim da história, que lições nos deixa, afinal de contas, esse livro tão perturbador? Sua lição não é muito construtiva, mesmo porque, Gray não é adepto da filosofia do progresso. Muito pelo contrário, a rejeita, porque não acredita que possa haver qualquer progresso humano na moral e na ética, mesmo com os enormes avanços científicos e tecnológicos hoje disponíveis. Aliás, esse progresso científico e tecnológico não nos trouxe nenhuma garantia, porque os homens poderão utilizá-lo para fins de destruição. Apenas uma certeza fica subjacente ao final da leitura de um livro tão provocativo: se a utopia é apenas um capítulo da história da religião, não devemos menosprezar essa primeira necessidade humana. Afinal, desses embates de crenças religiosas é que nasceram tanto as vertentes místicas como as vertentes seculares da utopia.

Assim, chegamos ao fim desta resenha, com um indisfarçável ceticismo no que se refere à natureza humana. Afinal, segundo Gray, somos tão donos de nosso destino, como qualquer outro animal que habita este mundo. Para enfrentar esse impasse, Gray nos propõe um retorno ao realismo na política, depois de dois séculos de fracassos da religião secular do progresso. Mas de um realismo político sem posturas conservadoras. O mito de um final feliz cristão e o mito secular, herdado do Iluminismo, de se construir uma sociedade conciliada consigo mesma, já causaram enormes prejuízos e ainda podem causar danos muito maiores. Isso nos leva à conclusão de que a política não é um veículo para projetos universais, mas uma peculiar "arte de responder ao fluxo das circunstâncias". Segundo Gray, essa percepção não requer uma visão muito abrangente do avanço da humanidade, requer apenas a coragem de saber lidar com os males do mundo. Afinal, esse opaco estado de guerra no qual a humanidade se meteu é apenas um desses males. Ao fecharmos o livro Black Mass, resta-nos ainda uma indagação e um desconforto: será possível vivermos neste mundo, sem o elixir das utopias?

Revista Brasileira de História

A história do diabo no Brasil

Alfredo dos Santos Oliva. A história do diabo no Brasil

Antonio Paulo Benatte
Depto. de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – Bolsista da Fapesp. Rua Adriático, 151, bl. 14, ap. 52, Jd. do Estádio. 09172-180 Santo André – SP – Brasil. apbenatti@ibest.com.br

São Paulo: Fonte Editorial, 2007. 285p.

Em suas célebres teses Sobre o conceito de História, Walter Benjamin referiu-se à teologia como "reconhecidamente pequena e feia", um saber que "não ousa mostrar-se". A julgar por trabalhos recentes como A história do diabo no Brasil, do historiador e teólogo Alfredo dos Santos Oliva, esse complexo de inferioridade parece ser coisa do passado, pois é justamente o 'mostrar-se' da teologia que faz a diferença na análise historiográfica aqui levada a efeito.

Já na introdução, o autor deixa ver o lugar existencial e epistemológico de onde fala, no que concerne tanto à sua identidade religiosa — pentecostal — quanto às suas opções teóricas e metodológicas, ancoradas na tradição francesa da historiografia de Bloch e Febvre a Michel Foucault. Oliva não esconde sua pertença religiosa nem faz dela uma bandeira, mas busca objetivála o máximo possível. A confessionalidade confessada não impede a objetivação; antes, é a sua condição necessária. Da tensão entre racionalismo e crença o autor não faz um dilema; sua posição é decididamente laica: "O historiador da religião deve estar preocupado em produzir conhecimento academicamente rigoroso e não subsídios para uma apologia, seja ela secular ou religiosa" (p.21). Apesar disso, não cai no racionalismo míope, tão comum nesse tipo de pesquisa; pelo contrário, adota uma perspectiva de 'razão sensível' que poderíamos chamar pós-moderna, não fosse o rótulo ter-se desgastado a ponto de nada mais dizer. Ao discutir a obra seminal de Michel de Certeau, afirma Oliva que "a historiografia é uma forma de conhecimento e escrita que se situa entre a ficção e a realidade e em algum ponto entre a subjetividade e a objetividade" (p.18). Esse difícil equilíbrio, mantido ao longo de todo o texto, faz que o livro seja uma contribuição não apenas conteudística como também metodológica para a historiografia da religião no Brasil contemporâneo. O último capítulo, estritamente metodológico, reafirma essa relevância.

O tema do livro é bem delimitado no tempo e no espaço: as práticas discursivas sobre o diabo na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), de 1977 (ano de fundação da igreja do bispo Macedo) até 2005, ano de defesa da tese de que resultou o livro. Trata-se, pois, das práticas e representações em torno do mal na principal denominação do assim chamado neopentecostalismo brasileiro; mas, por tratar-se do diabo, "esse personagem já bastante idoso", o autor, para fundamentar suas análises em terreno seguro, sente-se obrigado a traçar, em linhas gerais, uma história do diabo na longa duração, do judaísmo antigo e do cristianismo primitivo aos dias atuais. Essa excursão poderia ser considerada um desvio de rota, mas, além de mostrar as continuidades e descontinuidades nas representações do "Inimigo de Deus e de nossas almas", ela fundamenta a análise mais circunscrita que se segue; pois, obviamente, as práticas e crenças da IURD sobre o vil tentador não partem de um vácuo nem são uma construção ex nihil, e sim retomam criativamente representações historicamente construídas desde os tempos bíblicos. Ou seja, as fontes primeiras das práticas e das representações contemporâneas em torno do Adversário são os textos bíblicos canônicos do Novo e do Antigo Testamento; daí as visões vetero e neotestamentárias do mal — ou melhor, de sua personificação no diabo e em seus demônios — serem um ponto de partida (ou de chegada) necessário. As pesquisas sobre a história do diabo na cultura ocidental permitem mostrar, por exemplo, como as práticas acerca desse personagem na IURD (o discurso demonizante, os rituais de exorcismo) não se separam do amplo processo de demonização da alteridade, e em especial da alteridade religiosa, que atravessa a história do cristianismo desde a Igreja primitiva.

A seguir, o historiador-teólogo aborda a implantação e a difusão do pentecostalismo no Brasil desde o começo do século XX. A partir de suas raízes no metodismo, no avivalismo e nos movimentos de santidade, contextualiza o pentecostalismo como uma religião atrelada às camadas populares urbanas, mostrando como "dentro desta categoria social [ele] viria a ser uma importante alternativa de reconstrução de um mundo que se dissolvia rapidamente" (p.123). Atento às diversas continuidades e rupturas na constituição do campo, o autor percebe uma série de diferenciações aparentemente insignificantes que atravessam e constituem o(s) pentecostalismo(s). Aqui, Oliva, mesmo endossando teses consagradas sobre esse movimento sócio-religioso no Brasil, distancia-se criticamente das tipologias ou classificações prévias construídas pelas ciências sociais, inclusive a história; para isso, adota uma perspectiva mais compreensiva (hermenêutica) e menos explicativa do fenômeno religioso.

Para efeitos comparativos, o autor analisa a seguir a visão do mal, do pecado e do diabo em várias perspectivas: no protestantismo tradicional, na teologia da libertação e no pentecostalismo clássico, até desembocar no neopentecostalismo da IURD como expressão de uma religiosidade integrada à lógica sistêmica do capitalismo tardio. Dificilmente esse empreendimento poderia ser realizado sem erudição e desenvoltura teológicas. Assim, para a nova história religiosa, parece claro que, especialmente no caso das grandes "religiões do livro", a abordagem multidisciplinar do fenômeno religioso não possa mais excluir a teologia: o conhecimento teológico mostra-se insubstituível como chave para códigos religiosos que de outro modo passariam imperceptíveis por não se deixarem reduzir ao logos de qualquer ciência.

Mas a principal virtude do livro está em que, sem abdicar de uma postura crítica, o autor adota uma atitude empática do fenômeno religioso, muito distante das posturas científicas que, do alto do tribunal do santo ofício do saber, arvoram-se no direito de julgar e condenar, sem apelação, visões de mundo distantes de suas verdades pretensamente iluminadas e supostamente libertárias. A essa postura judicativa o historiador-teólogo contrapõe uma perspectiva 'relativista', como quando se opõe à interpretação, inspirada em Lévy-Bruhl, do diabólico na IURD como manifestação de uma 'mentalidade primitiva' ou 'pré-lógica'.

No Brasil, os estudos da religião — tradicionais nas ciências sociais desde Nina Rodrigues, passando por Roger Bastide e Duglas Teixeira Monteiro, entre muitos outros — têm crescido quantitativa e qualitativamente nas últimas décadas; e não é diferente com a história: o chamado cultural turn, ou o diálogo com a antropologia, tem favorecido a renovação da história religiosa. O livro de Oliva, em diálogo com a produção de ponta nessa área, insere-se num conjunto de estudos em que a religiosidade aparece intimamente articulada à cultura, no sentido antropológico do termo. Com efeito, os complexos liames entre religião e cultura perpassam toda a obra. O exorcismo, por exemplo, é analisado como um rito de passagem que, demonizando o outro, "constrói o sentido de pertença à igreja" (p.145).

Em alguns momentos, dada a amplitude do tema — a longa história do diabo —, parece haver um abuso de material bibliográfico; mas, na maior parte do tempo — e especialmente no terceiro capítulo, onde investiga como a IURD compreende e fundamenta teologicamente sua demonologia —, prevalece o tratamento empírico do objeto mais circunscrito, quando então a abordagem qualitativa, propiciada pela observação participante, é complementada pela análise de fontes primárias: o material impresso pela IURD, de teor teológico e devocional.

Em suma, trata-se de uma contribuição importante para as linhas de pesquisa preocupadas em compreender as múltiplas dimensões da religiosidade popular brasileira, especialmente quanto aos crentes chamados pentecostais e neopentecostais. Mas o trabalho permite também reflexões mais gerais. Situando-se na confluência da história religiosa e da história cultural, o livro permite ver que, assim como as tentativas de "matar Deus", as tentativas de "assassinar o Diabo" também fracassaram: a persistência da crença na existência do Inimigo sobreviveu à secularização, à racionalização e ao desencantamento do mundo que, segundo as clássicas teses weberianas, caracterizariam a modernidade ocidental. Não é difícil observar que a crença religiosa, muito mais que a racionalidade strictu sensu, continua a ser a dinamis da maioria das práticas culturais. Permanece a certeza de que, sem compreendermos os fenômenos religiosos não compreenderemos as grandes mutações sociais e culturais de nosso tempo. A renitente permanência das crenças religiosas num corpo social crescentemente secularizado exigirá, queiramos ou não, um diálogo entre os adeptos das visões científicas e os das visões religiosas de mundo.

Nesse sentido, a autor, firmando-se em teorias de Jüergen Habermas, conclui seu livro afirmando a necessidade de um diálogo entre ciência e religião. Se, como dizia Kierkegaard, a fé começa onde termina a razão, pode-se imaginar a dificuldade inerente a essas conversações; dificuldade exacerbada, de um lado, pelos fundamentalismos, e, de outro, pelos virulentos ataques do cientificismo ateu, ou "ateísmo científico". Com efeito, reduzir a religião à satisfação de interesses materiais ou mesmo psíquicos — como ainda faz a ciência de corte iluminista e positivista — é pouco entender de religião. A teologia, é claro, não deixa de ser uma ciência (um logos); mas, de qualquer modo, é um discurso menos reducionista e mais aberto à compreensão das necessidades espirituais da humanidade. Por isso, e cada vez mais, o saber teológico é chamado a ocupar uma função mediadora nesse importante diálogo.
Revista Brasileira de História

Antropologia da criança

Com a palavra, as crianças
Livro discute diferentes visões sobre a infância apresentadas pela antropologia

Mário Cesar Filho

O universo infantil pode surpreender muitos adultos. Afinal, o que é ser criança? Um ser imaturo ou um sujeito social, capaz de atuar ativamente nas relações em que se engaja? Para a antropóloga Clarice Cohn, autora do livro Antropologia da criança , reconhecê-la é assumir que não se trata de um “adulto em miniatura” ou de alguém que se treina para a vida adulta. É entender que, onde quer que esteja, ela interage ativamente com os adultos, outras crianças e com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos papéis que assume e de suas relações.

Este livro traz um mapeamento das várias abordagens sobre antropologia da criança, desde os primeiros estudos dos anos 1930 até os mais recentes. A autora discute ainda algumas questões pré-concebidas, como a imagem de que a criança é um ser incompleto, a ser formado e socializado. A partir dos anos 1960, os antropólogos perceberam que a diferença entre crianças e adultos não estaria na quantidade do saber, mas na qualidade – ou seja, a criança não sabe menos, sabe outra coisa.

Outra discussão central da obra envolve a definição do que chamamos de infância. Para muitos especialistas, como o historiador francês Philippe Ariès, essa noção é uma elaboração social e histórica do Ocidente. Ela foi construída ao longo dos séculos na Europa, simultaneamente com mudanças na composição familiar, nos conceitos de maternidade e paternidade, no cotidiano das crianças e principalmente na fase da educação escolar.

A criança e a infância têm sido foco de análise de vários campos do conhecimento, como pedagogia ou psicologia. O olhar antropológico pode ajudar a fundamentar essas pesquisas, rever os modelos pedagógicos vigentes e oferecer novos parâmetros para a educação escolar. A antropologia se dedica a compreender o ponto de vista do objeto estudado – no caso, ela busca saber como as crianças vivem e pensam o mundo, respeitando seu contexto sócio-cultural. Para isso, o antropólogo recorre a técnicas como a etnografia, passa a conviver com seu objeto de estudo e experimenta as mesmas situações.

Em seu mestrado em antropologia pela USP, a autora de Antropologia da criança estudou a concepção de infância e aprendizado entre os Xikrin (fotos: Clarice Cohn).

A obra mostra ainda como diferentes culturas lidam com a criança e o sentimento de infância. A autora oferece diversos exemplos vivenciados por ela durante o trabalho de campo realizado entre os Xikrin, no Pará – a concepção de infância e aprendizado desses índios foi o tema de seu mestrado pela Universidade de São Paulo. No livro, ela conta que eles deixam de ser criança apenas quando têm seus próprios filhos.

Antropologia da criança faz parte da série ciências sociais da coleção Passo-a-passo, editada pela Jorge Zahar. Escrito em linguagem acessível, o livro se deixa ler com prazer e funciona como uma introdução ao tema para leigos e interessados em geral. Para quem quiser se aprofundar em algum dos temas abordados, a autora traz sugestões de leituras e referências bibliográficas comentadas.

Antropologia da criança: Clarice Cohn, Rio de Janeiro, 2005, Jorge Zahar Editor,60 páginas
Revista CIÊNCIA HOJE

Imagens do sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro

Noel dos Santos Carvalho - Unicamp
noelsantoscarvalho@yahoo.com.br


TACCA, Fernando Cury de. Imagens do sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro. Campinas: São Paulo, Editora da Unicamp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, 200 páginas.

Em 1942, Arthur Miller escreveu um instigante romance, Focus, em que o personagem principal inquire seu perseguidor racista: “Em outras palavras, quando você me olha não me vê. O que você vê?” (MILLER, 2002, p. 180). A pergunta explicita a dupla articulação que envolve a representação. Construímos o sentido de dentro do nosso lugar no mundo onde classe, etnia, nacionalidade, cultura, etc. contam sobremaneira. Entretanto, o objeto do nosso olhar também tem sua própria existência. Como na passagem acima, o resultado dessa relação muitas vezes é tenso.

Howard Becker formulou a questão em termos originais. Para ele, a representação se assemelha a um relato sobre o mundo social, cujo sentido insere-se num contexto organizacional, em que produtores especializados elaboram sistemas representacionais para usuários interessados. Mapas rodoviários, por exemplo, são representações pouco úteis para pedestres, assim como filmes documentários interessam a um público que têm suas atividades voltadas à prática documental ou temas correlatos. A representação, em suma, é produto da ação coletiva de atores sociais interessados na sua produção e recepção, ao contrário das análises formalistas radicais, que se bastam com a busca dos significados endógenos à obra isolada – como se houvesse uma essência artística transcendental. Aqui, para lembrar Baxandall, privilegiam-se os “fatores culturais” que agem sobre a percepção, produzindo as categorias adequadas e competências de fruição. A passagem abaixo ilustra a relação produção/recepção que presidia a realização de uma pintura na Renascença:

O observador deve utilizar na fruição de uma pintura as capacidades visuais de que dispõe, e dado que, dentre essas, pouquíssimas são normalmente específicas à pintura, ele é levado a usar as capacidades que sua sociedade mais valoriza. O pintor é sensível a tudo isso e deve se apoiar na capacidade visual de seu público. Quaisquer que sejam seus talentos profissionais de especialista, ele mesmo faz parte dessa sociedade para a qual trabalha, e compartilha sua experiência e hábitos visuais (BAXANDALL, 1991, p. 48).

As representações, portanto, decorrem da ação coletiva dos atores sociais. Estes possuem as disposições psicológicas para a sua produção e recepção. Nessa perspectiva, elas ganham plasticidade: são verdade e ficção, documentos e construções imaginativas. Uma foto documental, filme ou gravura podem ter significados diversos, dependendo dos usos e contextos em que estão inseridos – obras e usuários. Escreve 
Becker sobre as fotografias documentais:

“Seu significado surge nas organizações em que são usadas, a partir da ação conjunta de todas as pessoas envolvidas nessas organizações, e, assim, varia de um momento e de um lugar para outro. Como as pinturas adquirem seu significado em um mundo de pintores, colecionadores, críticos e curadores, fotografias obtêm seu significado a partir do modo como as pessoas envolvidas com elas as compreendem, usam-nas e desse modo lhe atribuem significado.” (BECKER, 2009, p. 185).

É esta paisagem conceitual que articula o novo livro do fotógrafo e antropólogo Fernando de Tacca, Imagens do sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro. Através de rigorosa pesquisa e primorosa análise de fontes, Tacca deslinda um imbróglio ocorrido há quase sessenta anos, mais precisamente no inicio dos anos 1950, quando desembarcou por aqui o cineasta francês Henri-Georges Clouzot. Depois de tentativas malogradas de realizar dois filmes no Brasil, um dos quais integralmente interpretado por atores negros – o que, diga-se de passagem, o Cinema Novo só faria mais de dez anos depois –, Clouzot publica na França, em 1951, o livro Le chevau de dieux e a reportagem Les possédés de Bahia, na revista francesa Paris Match. Em tempos de nacionalismo à flor da pele, a recepção nativa leu como pode as fotos e a reportagem. A reação indignada foi imediata. A Federação de Culto Afro-brasileiro e intelectuais do porte de Edson Carneiro, Roger Bastide e Alberto Cavalcanti atacaram Clouzot, acusando-o de “colonialista” e “sensacionalista”.

Foto 1. Paris Match 12/05/1951

Foto 2. Paris Match 12/05/1951

Foto 3. Paris Match 12/05/1951

O troco na mesma moeda veio quando a revista de maior circulação nacional da época, O Cruzeiro, de propriedade do magnata Assis Chateaubriand, comprou a briga e produziu sua própria reportagem, As noivas dos deuses sanguinários. A carta do chefe de redação intimando o fotógrafo José Medeiros é um achado. Em tom ressentido e com a honra ferida conclama o fotógrafo a produzir as fotos da reportagem, “PARA LAVAR NOSSA CARA TÃO DURAMENTE ATINGIDA PELA REPORTAGEM DE CLOUZOT...” [sic] (TACCA, 2009, p. 124).

Ocorre que, ao contrário do vaticínio liberal, nem sempre o laissez faire, laissez aller, laissez passer nos meios de comunicação leva “naturalmente” ao caminho das tão esperadas diversidade e originalidade. Como assevera Bourdieu, a concorrência entre redações pela busca do “furo” produz um efeito de campo paradoxal que leva à uniformidade das matérias. Escreve o sociólogo:

... a concorrência incita a exercer uma vigilância permanente (que pode chegar à espionagem mútua) sobre as atividades concorrentes, a fim de tirar proveito dos seus fracassos, evitando seus erros, e de contrapor-se a seus sucessos, tentando tomar emprestados os supostos instrumentos de seus êxitos, temas de números especiais que jornalistas se sentem obrigados a retomar, livros resenhados por outros e dos quais ‘não se pode deixar de falar’, convidados que é preciso ter, assuntos que se devem ‘cobrir’ porque outros os descobriram e mesmo jornalistas que são disputados, tanto para impedir os concorrentes de tê-los quanto por desejo real de os possuir(BOURDIEU, 1997, p. 107-8).

Não foi outro o resultado da disputa entre a Paris Match e O Cruzeiro.Rigorosamente, não há grande diferença entre as fotos de Clouzot e Medeiros. Evidentemente, ao leitor cabe a própria conclusão, e nesse ponto ele é ajudado pelo livro ricamente documentado.

Foto 4. O Cruzeiro, 15/09/1951

Foto 5. O Cruzeiro, 15/09/1951

Foto 6. O Cruzeiro, 15/09/1951

Quem entendeu imediatamente que as reportagens eram semelhantes quanto à representação sensacionalista foi o antropólogo Roger Bastide que “coloca a reportagem de O Cruzeiro como um ‘crime’ da mesma ordem da Paris Match” (TACCA, 2009, p. 154). O meio intelectual calou-se diante da reportagem de O Cruzeiro, sugere Tacca: seja porque Medeiros era conhecido e respeitado por vários dos intelectuais que poderiam se opor à reportagem, seja porque a revista era de propriedade do manda-chuva das comunicações da época, Assis Chateaubriand. Escreve:

Não encontramos nenhuma manifestação, contra ou a favor, sobre a reportagem ‘As noivas dos deuses sanguinários’. Um silêncio sepulcral abateu-se nos jornais e revistas. Esperávamos, depois de uma fúria incontida contra o estrangeiro usurpado de nossa cultura, que ao menos os mesmos jornalistas e intelectuais se manifestassem como fizeram com Clouzot. Alguns caminhos podem ser explicativos. Medeiros era amigo de todos eles, companheiro de trabalho de vários jornalistas, e uma pessoa muito amável, como todos assim se referiam a ele. Já tinha na época uma admiração profissional de seus próprios pares. Junte-se a este aspecto afetivo, a difícil resolução, a questão de colocar-se em oposição a um semanário nacional da importância de O Cruzeiro, com a força devastadora de seu dono, Assis Chateaubriand, e da rede de Diários Associados. Todos silenciaram, menos um, que não era brasileiro e pôde ter uma neutralidade em relação aos fatos (TACCA, 2009, p 154).

O conhecido modus operandi da intelectualidade brasuca deixaria a corda roer para o lado mais fraco: Mãe Riso da Plataforma, a mãe-de-santo que autorizou a reportagem. Esta atraiu a ira da comunidade religiosa, da Federação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros e foi acusada de ter se beneficiado economicamente das fotografias.

No entanto, devemos entender o silêncio dos intelectuais de uma perspectiva mais ampla. É sabido o quanto a construção de um campo intelectual autônomo entre nós deu-se a duras penas. A liberdade de opinião decorre da posição independente que o francês Bastide ocupava naquele momento. Era professor da cadeira de sociologia na Universidade de São Paulo, instituição que lhe assegurava certa independência intectual. Diferente era a condição precária da maioria dos intelectuais nativos que se desdobravam em trabalhos no funcionalismo público, editoras, imprensa, cinema etc. Portanto, mais vulneráveis às pressões políticas e econômicas (MICELI, 2001).

O autor faz ainda um minucioso levantamento para chegar aos fatos ocorridos após a publicação das fotos. Movimentando-se por meio de informantes através da rede de sociabilidade do candomblé, entrevista pessoas chaves para interpretar a trajetória da mãe-de-santo. Neste percurso remonta a história das fotografias e o modo como elas foram recebidas pelos atores sociais nativos do camdomblé. Se, como vimos acima, asociedade é um campo de batalhas de representações (CLARK, 2004, p. 39), Tacca deixa claro para o leitor atento que os limites e coerências das representações são contestados e rompidos constantemente. Um fato ocorrido durante a pesquisa ilustra o modo como as imagens são apropriadas e ressignificadas pelos atores sociais.

... Jane trouxe-nos um álbum familiar. Uma sobrinha de Perrucha recortara todas as imagens de uma revista O Cruzeiro em que aparecia a tia e fez uma espécie de álbum de recordações, com o título ´Lembrança de minha Epilação, editada da Revista O Cruzeiro, de setembro de 1951`, descontextualizando dessa forma a reportagem e ressignificando as imagens no âmbito familiar. Surpreendentemente aparece no final do álbum seu reconhecimento religioso pela Federação Bahiana de Cultos Afro-Brasileiros, com sua ficha de inscrição e sua carteirinha de associada. A migração das imagens publicadas, recortadas e deslocadas para o âmbito familiar, introduzia uma aproximação memorialista com o evento religioso em si, como o próprio título do álbum sugeria, e sem colocá-lo à parte do contexto midiático, pois as imagens mantinham o padrão gráfico de uma publicação e o título fazia referência à revista. Portanto, nesse momento, a epilação de Perrucha aparecia como uma recordação familiar de um evento midiático, mas sem as referências sensacionalistas do título da reportagem (TACCA, 2009, p. 35-38).

A pesquisa desmistifica ainda o que se dizia a respeito da Mãe Riso: que teria recebido um castigo sobrenatural por permitir as fotos, que o seu terreiro havia sido “quebrado” e que fugira para o Rio de Janeiro onde teria sido assassinada, etc. Ao contrário, a trajetória de Mãe Riso foi das mais prolíficas no candomblé. Mudou-se para Nilópolis onde abriu um terreiro, auxiliou a abertura de outro em São Paulo e “... manteve laços fortes com o candomblé de sua origem e de seu território na área da Plataforma” (TACCA, 2009, p. 64). Teve mais de cem filhos-de-santo só no Rio e quando morreu, em 1° de janeiro de 1993, aos 73 anos, cerca de 600 pessoas, todas vestidas de branco, acompanharam o seu enterro.

O texto, escrito em primeira pessoa, tende a criar uma identidade entre o narrador e o leitor. Este descobre os acontecimentos que marcaram o embate midiático sobre a representação do candomblé, guiado por um narrador que não se furta em manifestar suas emoções ante as descobertas da pesquisa. A produção do saber não está apartada da afetividade, como qualquer pedagogo sabe. A busca por mãe Riso da Plataforma em Nilópolis é exemplar:

Chegando ao número de que dispunha, logo o identifiquei como sendo o terreiro de Riso: um lindo São Jorge em azulejo reinava icrustado na frente e no alto da casa. Neste momento senti uma grande emoção de estar ali defronte do terreiro de Riso, e ao mesmo tempo uma vontade muito grande de tê-la conhecido. De alguma forma, senti sua presença pela primeira vez, uma boa sensação (TACCA, 2009, p. 67).

Ao término do livro fica a sensação do percurso feito, dos nós reatados e do mistério solucionado. As lutas em torno da revelação dos segredos do candomblé sugerem o modo como uma parcela da população lida com as religiões que escapam ao controle social. Como na formulação de Arthur Miller, a bricolagem da sobrinha de Perrucha com as fotos da revista O Cruzeiro materializa uma singela e eficaz resposta política.
Neste sentido, vale acrescentar sua importância para o debate sobre a representação do negro. Nos últimos anos artistas, pesquisadores e ativistas têm levantado questões sobre o ônus representacional dos grupos excluídos, atentos às imagens produzidas pelos meios de comunicação de massa como revistas, cinema e televisão. O livro contribui ao chamar atenção para as ambigüidades em torno da representação e dos seus possíveis usos.

Referências bibliográficas
BAXANDALL, Michael. O olhar renascente – pintura e experiência social na Itália da renascença, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
BECKER, Howard. Falando da sociedade – ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
CLARK, T.J. A pintura da vida moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MILLER, Arthur. Focus. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
TACCA, Fernando Cury de. Imagens do sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
Revista PROA