Eduardo Dullo
Mestrando do Museu Nacional – UFRJ
Montero, Paula (org.). Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural, São Paulo, Globo, 2006, 583 pp.
Engana-se quem se limita, ao ler o título, em pensar nesta coletânea como uma produção somente acerca de missionários e índios. O subtítulo é suficientemente completo para indicar a relevância de sua leitura para um público mais amplo: a mediação cultural, que é pensada enquanto categoria articuladora desses atores sociais. A leitura dirigida que forneço nesta resenha discute menos os dados de pesquisa e mais a elaboração que os sustenta. A razão dessa escolha reside nas questões levantadas pelos autores, dignas de uma expansão, tal como se pode inferir das palavras da organizadora: "A atividade missionária foi, por excelência, como veremos neste trabalho, uma atividade de classificação e comparação das diferenças de modo a localizá-las em quadros universais" e "agentes como os missionários são especialistas voltados para a produção desse tipo de compatibilização" (pp.10 e 56, respectivamente, grifos meus).
As pesquisas foram desenvolvidas em diferentes âmbitos institucionais, o que acarreta inovadoras contribuições. Há a presença dos departamentos de Antropologia das universidades de São Paulo, de Campinas e da Federal do Rio de Janeiro (Museu Nacional), além da valiosa contribuição do professor de História Moderna da USP e de História das Religiões da Universidade de Udine. O esforço é agrupado com os diálogos ocorridos no Cebrap, sob coordenação de Paula Montero. Um empreendimento coletivo de tal envergadura, culminando em coletânea com 11 autores e capítulos, além da introdução da organizadora, não se realiza facilmente. Esse é o primeiro mérito e sucesso. Entretanto, a leitura dos capítulos evidencia a divergência (em alguns casos, mais clara) entre os autores.
Aproveitando-me da apresentação do livro feita pela organizadora, reproduzo-a integralmente:
Esse debate tem, a nosso ver, cinco dimensões principais, ou cinco conjuntos de problemas que podem nos servir de eixo para a apresentação deste empreendimento coletivo: o modo como procuramos enfrentar o problema metodológico das relações entre antropologia e história; o uso que fizemos dos principais conceitos – religião e cultura – utilizados nestes textos; a questão estratégica da tradução nas relações de mediação; o privilégio que demos à noção de rede na análise das relações sociais e simbólicas; e, finalmente, o modo como procuramos construir uma perspectiva teórica adequada ao problema da interculturalidade que enfatizasse os sentidos produzidos nas relações. (pp. 11-2)
Seqüencialmente, ela apresenta os cinco eixos, comentando todos os capítulos. Não irei refazer o que já foi (bem-)feito. Cabe apenas ressaltar a amplitude dos trabalhos, articulando-se os eixos dos missionários jesuítas no século XVI aos evangélicos fundamentalistas atuais, de fontes documentais a pesquisas etnográficas em aldeias, e das práticas e estratégias de conversão às alterações decorrentes das revisões teológicas.
Minhas questões, no entanto, são direcionadas à teoria da mediação cultural e, mais propriamente, à formação de "códigos compartilhados". Se, como colocou a organizadora, os missionários são "especialistas" nesse tipo de "compatibilização", devemos inferir que essa é uma atividade possível para outros atores sociais, entre eles os indígenas – envolvidos na mediação – e quaisquer outros. Por isso, com essas frases (e ênfases) sempre em mente, o missionário de uma Modernidade nascente – formada, entre eles, no Concílio de Trento e na decorrente passagem para a catequese apostólica (cf. pp. 111 e 502) –, a atuação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e das missões evangélicas da contemporaneidade não são os únicos objetos possíveis para as questões postas. Embora os trabalhos da coletânea sejam restritos à nossa alteridade antropológica radical, não devemos descuidar do olhar que procura compreender a alteridade pela ótica dos agentes em análise.
O volume, que é organizado sob a rubrica de uma "antropologia das missões" e que se pretende inovador ao romper com abordagens que às vezes são mutuamente exclusivas – como as que enfocam objetos de análise cunhados com os termos de antropologia ou história das religiões e etnologia indígena (cf. p. 23) –, traz para o centro do debate não o estudo de grupos, atores, culturas e, sim, o modo como cada um desses torna a diferença comensurável.
Ao longo dos diversos capítulos, descreveu-se o modo como o missionário se comunica com a diferença nativa – como ele imagina que o nativo é ou pensa e como incorpora certos modos interpretados como nativos; ao mesmo tempo, procurou-se descrever como o nativo se apropria em parte de algumas dessas representações de si e do missionário. (p. 25)
Os capítulos de Cristina Pompa, Marta Amoroso, Ronaldo de Almeida e Artionka Capiberibe demonstram de maneira mais nítida a centralidade adquirida pelos indígenas, capazes de articular modalidades do "sobrenatural" no procedimento de "imaginação" do outro: o xamanismo é, inicialmente, elevado à potencialidade religiosa pelos missionários. Assim, o xamã é visto como capaz de transitar entre mundos e, dessa forma, capaz de apreender diferentes pontos de vista. No entanto, ele é também percebido negativamente pelos missionários, pois sua relação com o "sobrenatural" não é a cristã. Por fim, os momentos de permissividade missionária – como observado por Amoroso (p. 229) e por Almeida (p. 289) – reduzem suas práticas a aspectos "terapêuticos" e "técnicos".
Nas missões católicas contemporâneas, um aspecto crucial é estudado por Marcos Rufino: a Teologia da Inculturação. Formulação teológica recente (a partir de meados dos anos 80), ela se propõe a recusar a primazia ocidental e européia do cristianismo e a verificar, nas outras culturas, sinais da Boa-Nova que não estão visíveis na cultura do missionário. Essa abertura ao Outro busca trazer elementos, no caso, indígenas, para o cristianismo. Rufino observa com detalhe a passagem e o debate entre duas teologias católicas: da Libertação e da Inculturação. Passa-se da libertação dos pobres (categoria homogeneizante) à promoção dos índios: "o empreendimento de cristalização de entidades socioculturais distintas em uma mesma personagem [...] cede lugar ao seu oposto. Cabe aos missionários, a partir de então, lançar-se no paciente trabalho de reconstituição das diferenças" (p. 253). Mas o trabalho de Rufino demonstra, ainda, como tais propostas, a princípio tão díspares e opostas ao olhar antropológico, foram conciliadas pelo CIMI.
A mesma Teologia da Inculturação é contrastada com outra, a da Transculturação, por Almeida (p. 287). Se, como mostrou Rufino, a primeira é uma revisão dos procedimentos missionários pela Igreja Católica, a ponto de Almeida dizer (p. 288) que ela "positiva aquelas dimensões da vida indígena que foram demonizadas pelos jesuítas" – o que pode ser observado nos capítulos 2, 3 e 4 de Gasbarro, Pompa e Agnolin –, a segunda "anuncia" o Evangelho "às culturas [...], remodelando o universo de valores, rituais e comportamentos, segundo os parâmetros da religiosidade evangélico-fundamentalista".
Os capítulos da coletânea, em íntimo debate, permitem, pela comparação dos meios e métodos dos missionários, uma elaboração antropológica que os organize. Montero, apoiada em Wittgenstein, evita a noção de "Cultura", redimensiona-a como categoria nativa para visualizar o que chamou de código. Este só pode ser concebido a partir do "aprendizado do uso de determinadas matrizes ou regras", quando as pessoas estão "dispostas a se comunicar" e a "compartilharem experiências comuns" (p. 26). Mas não podemos deixar de lembrar de maneira diversa da autora (cf. p. 55) – que a pretensão universalista do cristianismo, analisada como o especialista na inclusão da alteridade e na pedagogia das regras, não encontra um equivalente direto nos indígenas com quem se defronta. A atribuição do interesse de códigos compartilhados a todos os envolvidos me parece excessiva, bem como a atribuição de uma mesma lógica na produção desses códigos. Só é possível conceber que a alteridade possa ser reduzida e aproximações feitas dentro de um pensamento como o dos missionários cristãos (pretensão compartilhada pelos antropólogos). Nós (geralmente), como os missionários, cremos nessa possibilidade. Mas como afirmar que os indígenas agiam da mesma forma sem uma preocupação minuciosa diante dos dados?
Se, como afirma Montero (p. 56), as categorias indígenas possuem "menor alcance de generalização", não seria o caso de se preocupar mais com sua "lógica da produção de diferenciações e oposições"? O que me parece é que há o encontro entre duas lógicas bem distintas: uma inclusivista e universalista e outra diferenciante e oposicionista. Então, a questão que coloco é: ocorre uma produção de códigos compartilhados na ótica dos dois envolvidos ou apenas na dos missionários?
Se, por um lado, somos bem informados sobre o interesse missionário na "produção desse tipo de compatibilização", o material etnológico não adquire relevo capaz de nos fornecer a mesma informação por parte dos indígenas. Parece-me que, aqui, reside uma das divergências entre os autores. Alguns são mais inclinados que outros à possibilidade de alcance da voz indígena em fontes documentais (conforme podemos observar nas páginas 12-15, 124, 227, 304); e os últimos preferem restringir-se a falar dos missionários e da forma como estes descrevem os indígenas.
Exemplarmente, a aproximação ou, nas palavras de Cristina Pompa, a "redutibilidade" do Outro ao Eu – do indígena ao missionário capuchinho (cf. p. 122) – pode também ser lida como uma concepção da alteridade feita pelo missionário com base em sua simbolização privilegiada: as convenções nos termos religiosos (p. 123). Embora a análise da autora nos permita observar somente o modo como o capuchinho concebe o indígena, podemos inferir uma atividade similar por parte desse outro ator envolvido. Para além das teorias da ação, prática e/ou agência, o que se reivindica para todos os atores é uma capacidade de simbolização e de compreensão do Outro a partir de Si. Seria necessário o mesmo trabalho de imersão nos indígenas, tal qual feito para os missionários, para que possamos compreender a "negociação da realidade" e, principalmente, qual a importância que esta adquire para ambos.
O trabalho missionário adquire, ainda, outras relevâncias no debate contemporâneo: ao deslocar as categorias de "religião", "cultura", "conversão" e "etnicidade" para o plano nativo, elas se tornam elementos para análise e recebem um uso tático (cf. p. 383). Especialmente nos capítulos de José Maurício Arruti e Melvina Araújo, observa-se o trabalho missionário que, baseado na religião, estabelece conexões com a cultura indígena que envolvem alterações no entendimento de sua etnicidade (cf. pp. 382, 421; e, para Araújo, pp. 441-2). Esse movimento é observado por Arruti como uma "conversão às avessas [...] de civilizados em indígenas, do catolicismo a uma religião indígena (porém agora genérica)" (p. 421) ao "resgatar os elementos da cultura e da religiosidade indígenas soterrados sob camadas geológicas de catolicismo popular, como forma de favorecer que populações camponesas contemporâneas se reinvistam de uma identidade étnica ancestral" (p. 423).
No caso dos índios macuxi pesquisados por Melvina, a afirmação étnica promovida pelos missionários da Consolata está relacionada estreitamente com a problemática do território. É devido ao conflito com posseiros e às fazendas estabelecidas na região que ocorre um "deslocamento contextual das significações cristãs": Cristo, em sua "defesa da terra e da união fraterna" como "chaves da salvação", é lido como uma defesa do território e da organização política (p. 433).
A multiplicidade de agentes é um excelente caso para se repensar critérios comparativos, trabalho realizado pelos missionários ao comparar diferentes povos com quem interagem, mas também pelos autores, ao colocar lado a lado esses diferentes indígenas, missionários, teologias e conversões. É assim que a proposta deste livro expande-se, como se observa, para além dos interessados na religião ou na etnologia.
Revista de Antropologia
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