Louro, Guacira Lopes. (2004). Um Corpo
Estranho: Ensaios Sobre Sexualidade e Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica. ISBN 85-7526-1169, Pp. 92
Resenhado por Ruth Sabat
Centro Universitário Feevale
12 de Maio de 2005
Uma viagem pós-moderna
Para saciar nossa “angústia metafísica”, que tem sede de
classificações, poderíamos dizer que o livro Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, de Guacira Louro, é uma autobiografia-lítero-teórica.
Poderíamos dizer, se tal palavra existisse... Façamos de conta que existe!
Os quatro ensaios que compõem o livro de Guacira Louro
foram escritos de forma livre, “numa espécie de experimentação”. Não há um
caminho em linha reta entre eles, mas há um caminho sem placas indicativas do
ponto de chegada ou de partida. É um caminho queer: o meio pode ser o fim, o fim pode
ser o começo, o começo pode ser o começo. Nós decidimos. Não há uma ordem. É queer.
A começar pela capa, que traz a imagem de dois pés tatuados na epiderme/derme
ou na folha de papel? Marcas estranhas, indizíveis... Preparação para o que vem
a seguir.
Para ler Um corpo estranho é
preciso estar disposta a se deixar levar pela autora, numa espécie de
brincadeira de cabra-cega, com olhos vendados e sentidos despertos, pronta para
ouvir suas histórias. Uma espécie de viagem pós-moderna. Um road book?
Talvez sim, porque o livro é todo deslocamento e
inquietação, seja no ensaio com tom mais literário, no qual Guacira deixa
escapar sua paixão pelo cinema; seja no ensaio mais teórico, no qual ela
generosamente traduz para nós a complexa fundamentação da teoria queer.
A autora também nos dá a conhecer um pouco de sua trajetória ao “Estranhar” o currículo e estabelece relações entre Marcas do corpo e marcas
do poder, questionando até que ponto tais
marcas não são uma invenção do olhar do outro.
Neste último ensaio do livro, Marcas do corpo, marcas do poder, Guacira demonstra de que formas os corpos e as marcas
que os definem e descrevem culturalmente estão implicadas em relações de poder.
Dessas marcas, é indiscutível que aquelas que identificam o feminino e o
masculino (a saber, os órgãos genitais) são primordiais.
Entretanto, agregadas a elas estão as marcas definidas “a
partir dos padrões e referências, das normas, valores e ideais da cultura”
(p.75). E é isso que interessa à autora: demonstrar de que forma as
características corporais passam a funcionar como marcas de distinção e
classificação e, conseqüentemente, como marcas de poder, considerando suas características
históricas e culturais.
Buscando apoio teórico em Michel Foucault e Judith
Butler, Guacira Louro traz diferentes explicações encontradas na história, que
serviram para justificar as desigualdades construídas entre mulheres e homens.
Se nos voltamos para os discursos existentes, podemos identificar relações
estreitas entre transformações políticas, econômicas e sociais e o modo de
olhar para o corpo e a sexualidade em diferentes momentos históricos. Longe de
negar a materialidade dos corpos, o que a autora enfatiza:
“são os processos e as práticas discursivas que fazem com
que aspectos dos corpos se convertam em definidores de gênero e de sexualidade
e, como conseqüência, acabem por se converter em definidores dos sujeitos” (p.80).
Tal asserção pode ser identificada na forma mais
recorrente de se conceber a relação sexo/gênero/sexualidade, qual seja, o
gênero binário e o desejo sexual necessariamente direcionado para o sexo
oposto; esta lógica fundamenta-se, principalmente, no caráter biológico do
sexo. Eis aqui a pedra de toque a ser problematizada pela autora, com base nas
teorizações da filósofa norte-americana Judith Butler. É preciso questionar a
naturalização construída em torno do sexo como destino e as normas regulatórias
que legitimam os corpos, como efeitos das relações de poder.
Guacira Louro vale-se do exemplo das drag-queens para ilustrar a desnaturalização dos corpos.
Quando William Sheakspeare escrevia suas peças e
utilizava a palavra drag (dressed
as a girl), em algumas rubricas do texto para
dirigir os atores, não podia imaginar que no século XX esse nome se
transformaria em uma das marcas queer. Ao utilizar as drags como
exemplo, a autora demonstra como corpos são construídos ou “montados”, imitando
exageradamente o sujeito que parodia. Para a autora, esta é uma postura
crítica, “na medida em que implica, paradoxalmente, a identificação e o
distanciamento em relação ao objeto ou ao sujeito parodiado” (p.85) e, nos
permite “problematizar a idéia de originalidade ou de autenticidade”, subverter
e transgredir códigos culturais.
A ação subversiva e a transgressão das fronteiras de
gênero e de sexualidade são alguns dos principais elementos que permeiam a
Teoria Queer. No artigo Uma política pósidentitária para a Educação, Guacira apresenta os pontos centrais dessa teoria, estabelecendo
conexões com a Educação, seu campo de atuação. Por meio de breve historicização
da homossexualidade, do sujeito homossexual e dos movimentos sociais voltados
para os interesses desses grupos, a autora narra o processo de construção das políticas
de identidade e nos conduz aos fundamentos da Teoria Queer.
A palavra queer é de origem inglesa e ainda não tem
uma tradução a contento para sua utilização nos estudos sobre sexualidade realizados
em língua portuguesa. Durante muito tempo, queer funcionou como xingamento para
sujeitos homossexuais. Entretanto, num movimento de pegar as armas do inimigo
para atacá-lo, o movimento gay
e lésbico assumiu esta palavra para
se definir ainda como esquisito, estranho, excêntrico, mas, principalmente,
para representar “a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada” (p.38).
A firme determinação de perturbar e transgredir está no cerne da política queer,
surgida na década de 90 do século passado. Neste artigo, Guacira deixa muito
clara a indissociabilidade entre o comprometimento político e a produção de
conhecimento, ao deixar explícitos todas as confluências entre os movimentos
sociais e o pensamento ocidental contemporâneo, marcado pela instabilidade de
diversas categorias analíticas, dentre elas, o próprio sujeito.
O inconsciente freudiano, a construção discursiva da
sexualidade defendida por Michel Foucault, a desconstrução derridiana são as
principais proposições que servem de sustentação para a Teoria Queer,
desde que utilizadas sempre de modo peculiar e transgressivo. Dito de outro
modo, utilizadas “para desarranjar e subverter noções e expectativas” (p.43).
Esse percurso traçado pela autora nos leva à Teoria Performativa do Gênero e da
Sexualidade – elaborada por Judith Butler –, um dos fundamentos da Teoria Queer.
Nesse contexto, o conceito de performatividade, proveniente da lingüística, é utilizado
para identificar os modos como os corpos e os sujeitos são discursivamente produzidos.
Interessa menos saber como as identidades sexuais hegemônicas são produzidas, e
mais, como determinados sujeitos e corpos são nomeados como estranhos, anormais,
esquisitos ou queer.
Diante de tais aspectos, a autora traz algumas perguntas:
“Como um movimento que se remete ao estranho e ao excêntrico pode articular-se
com a Educação, tradicionalmente o espaço da normalização e do ajustamento?
Como uma teoria não propositiva pode ‘falar’ a um campo que vive de projetos e
de programas, de intenções, objetivos e planos de ação?
Qual o espaço, nesse
campo usualmente voltado ao disciplinamento e à regra, para a transgressão e
para a contestação?” (p.47). Mais uma vez, Guacira nos conduz pelos tortuosos
caminhos da lógica queer, indicando alternativas de movimentos na intersecção
desses dois campos: “A teoria queer permite pensar a ambiguidade a
multiplicidade e a fluidez das identidades sexuais e de gênero, mas, além disso,
também sugere novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e a
educação” (p.47). Portanto, este é o exercício maior:
estabelecer relações entre Teoria Queer e Educação e pensar como se
configuraria uma pedagogia e um currículo queer.
Um exercício nessa direção pode ser encontrado no artigo “Estranhar” o currículo.
Ali, a autora discute em que medida a homossexualidade se
torna um limite para o pensamento social construcionista na Educação,
questionando de que modo a heterossexualidade normativa é reiterada nas
chamadas instâncias pedagógicas.
Estudantes que apresentam comportamentos dissonantes em
relação a seus gêneros ou que demonstram interesse por pessoas do mesmo sexo
são sempre trazidos por professoras e professores, como exemplos de problemas a
serem resolvidos. De novo, a Teoria Queer é utilizada como campo teórico mais
produtivo para pensar em tais questões, considerando as rupturas
epistemológicas e as propostas que nos traz.
Nessa direção o movimento mais importante consiste em
colocar o conhecimento, a pedagogia, o currículo sob suspeita. Como afirma a
autora, trata-se “de questionar sobre as condições que permitem (ou que
impedem) o conhecimento” (p.65).
Trata-se, ainda, de questionar o tipo de sujeito presente
no currículo, analisando o gênero, a sexualidade e outras marcas culturais que
o constituem como sujeito hegemônico. Trazer para o currículo a multiplicidade,
questionar o já sabido, problematizar o conhecimento são apenas alguns dos
caminhos apontados pela autora em direção a um currículo menos centralizador e
impositivo. Um currículo que apresente o movimento, a instabilidade e a
transgressão como estados produtivos para os sujeitos.
A idéia de movimento, instabilidade, transgressão é
desenvolvida em Viajantes pós-modernos, a partir do filme Deus é brasileiro,
de Cacá Diegues. “A imagem da viagem me serve, na medida em que a ela se
agregam idéias de deslocamento, desenraizamento, trânsito” (p.13), diz Guacira.
A metáfora da viagem é utilizada aí relacionada ao gênero, à sexualidade e ao
trabalho pedagógico. É por meio da repetição e da continuidade que o trabalho
pedagógico funciona constantemente para inscrever “nos corpos o gênero e a sexualidade
‘legítimos’” (p.16). Mas, nesse cenário, há também os corpos desviantes, aqueles
que desestabilizam as normas sociais, há aqueles cruzam as fronteiras de gênero
e sexuais e, há ainda, aqueles sujeitos que decidem viver na própria fronteira
em transgressão permanente. “Esses sujeitos sugerem uma ampliação nas
possibilidades de ser e de viver. (...) Indicam que o processo de se ‘fazer’
como sujeito pode ser experimentado com intensidade e prazer. Fazem pensar para
além dos limites conhecidos, para além dos limites pensáveis” (p.23). E se
terminamos de ler Um corpo estranho... com dúvidas, inquietações e incômodos, isso quer dizer
que embarcamos na viagem proposta por Guacira Louro.
Acerca da Autora do Livro
Guacira Lopes Louro é doutora em Educação e professora do Programa de Pós-graduação
em educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Acerca da Autora da resenha
Ruth Sabat é doutora em Educação e professora/pesquisadora do Centro
Universitário Feevale – Novo Hamburgo/RS e da Faculdade Cenecista de
Osório, Facos – Osório/RS.
Muito bom!
ResponderExcluirGostei muito, excelente, linguagem clara e acessível.
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