quinta-feira, 21 de março de 2013

Um tal de Zé


Por Júnia Botelho
(texto editado. Versão original vencedora do Prêmio Talentos da Maturidade, do Banco Real, hoje Santander, em 1997)

(...)
José.
Ficou velho. Odiou tanto essa condição, se “arrependeu” de ficar velho, dizia, que preferiu morrer. Abandonou os compromissos sociais “agora que sou velho não tenho obrigação de nada, posso tudo, eu faço o que eu quero”; despiu máscaras, despiu terno, despiu casca.
A velhice desnudou dignidade, desnudou condição humana. Só não conseguiu tirar-lhe essência: a vida que teve, reproduzida nas vidas que fez, biogenéticas ou não.

Esse é o tal de Zé
(...)
José ele se chamava. Fotógrafo. Sua máquina era seu terceiro olho, aquele que nos desvenda o mundo. Apreciava tudo com muito cuidado, meticulosamente. Esperava a luz apropriada, preocupava-se até mesmo com a direção do vento. Outro Zé, desta vez o “seu” Zé Barbeiro, homem simples, que entendia muito bem do seu métier de fazer barbas e cabelos, e só, estranhava o procedimento de procura de perfeição de seu homônimo:

dona Ruth, acho que o ‘seu’ Zizinho ‘tá ficando maluco. Ele ‘tá ali agachado no meio do mato, tirando retrato de pito-de-saci!”.

Sempre querida FATEA
(...) O instrumento de trabalho de José era o olhar, a máquina extensão. Ele piscava – a máquina piscava também, e produzia uma obra de arte. Que diafragma, que foco, que nada! eram retina e pupila, isso sim! Enquadrou a luz, enquadrou a sombra.

A tecnologia calçou as botas de 7 léguas e passou por cima de nossas cabeças, pensava José. O mundo da produção captação transmissão processamento armazenagem das imagens aperfeiçoa-se, permite uma construção tão perfeita que é difícil dizer se o que vemos é real ou uma reconstrução. Máquinas diferentes... “que história é essa de só apertar um botãozinho?” espantava-se José. Ele não admitia as simplificações, porém sua escolha não impedia os passos da tecnologia. Aos poucos foi sendo dispensado de suas funções, já não mais ensinava a ver. E cegou.

Rio Paraíba do Sul
1921 foi quando nasceu meu pai. No Vale das Cidades Mortas de Monteiro Lobato. No vale do rio que se chama Paraíba, rio que sai do Estado de São Paulo e chega ao Rio de Janeiro, acompanhando o viajante, volteando, ondeando, ilhando, cantando. Encantando o sol. Mas gritando de dor, pois está doente.
Meu pai e o rio. Entre rio e homem justapostos se estabeleceram afinidades, intimidades e conflitos que se efetivaram numa interação de profundos efeitos.

(...) Antes de cegar, meu pai enxergava as feridas do rio, fotografava homens que o sangraram.
Como não podia lutar contra Deus e Seus mandamentos, contra o câncer que lhe comia a carne, contra o Alzheimer que lhe carcomia o cérebro e também a alma, então dedicava-se a fotografar a miséria exposta do seu amigo rio. Viu o que matava o seu companheiro de desventuras no entanto esse homem não tinha mais tempo. O rio claro de sua infância sofria tanto quanto ele, chorava tanto quanto ele.

(...) Ah! Mas José estava morrendo... estava tão exangue, sentia-se tão inútil, não podia fazer mais nada.
Oras, mas o rio também tinha que tomar uma atitude! Tinha que ser fiel àquele que já não podia estar ao seu lado. Mas esse rio também envelhecia. E os finais de tarde eram cada vez mais purpúreos, manchando os olhos. Estavam os dois agonizando.

(...) O olhar que José tinha para seu rio era muito afetuoso.

 (...)
Mesmo se formos bons para o rio, às vezes ele pode ficar colérico. Ele enche, incha, transborda, atravessa seus limites e invade. Depois se arrepende, se acalma, volta, esvazia. Como se nada tivesse acontecido. Nem vê o que deixou para trás. Destroços não lhe dizem nada, somente coisas no caminho.

(...)
José era professor. Educador. Falava alto, dogmático, dono da verdade. E brigava por isso.
Ai! daquele que jogasse lixo no seu amigo rio! Não usava a palavra preservação porque rótulos não combinavam com ele; não queria saber de ecologismos, meioambientalismos.
Muito falatório e pouca mão na massa não adiantam nada. A casa está ruindo, todos estão vendo e quem é que pode fazer alguma coisa?
Os predadores estão no seu cérebro e no do rio, é preciso agir. “Eu não mudo nada no mundo, que minha presença ou ausência não faz diferença” diria José, “saio eu, daqui a pouco tem outro no meu lugar. Mas o rio morre e morre tudo em volta. Seca, esturrica, apodrece, cheira mal, faz adoecer e o círculo se fecha e então fica mais difícil de resolver. Quem é que pode ouvir este meu grito?”

(...)
É. Acredito que ele teria gostado de falar disso. E para finalizar tocaria uma modinha no seu violão, naquele jeito seresteiro e boêmio.
Foto de Sebastião Albano


Envelhecer tem certas vantagens, as pessoas mudam de opinião sobre o que é certo e o que é errado. Já não tem mais importância alguma ser seresteiro. Melhor dizendo: é até mesmo valorizado.




(...)
José não desistiu, não. Ele agora está morando na história de Guimarães Rosa, à terceira margem do rio. E só sai de lá depois que seu amigo rio parar de sangrar. Ele também sangrou. E sabe o quanto doeu. Então ele não pode se calar. Nós, os filhos todos do tal de Zé, aqueles que ele gerou, aqueles que ele criou, aqueles que ele educou, aqueles que ele ensinou a ver e a enxergar, pedimos: por favor, tirem nosso pai da terceira margem.

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