Ivanda
Maria Martins Silva
Resumo:
Pretende-se discutir o papel da literatura em sala de aula, considerando o processo
de escolarização da leitura literária. Na escola, as estratégias de abordagem
ao texto literário, geralmente, não se apresentam diversificadas, contribuindo
para que o educando desenvolva uma compreensão mitificada e homogênea da
literatura. De que modo certas noções da teoria literária podem contribuir para
dinamizar as práticas de leitura literária no contexto escolar? O presente
artigo tem como objetivo primordial ampliar as reflexões sobre leitura,
literatura e escola, revelando como a teoria literária pode contribuir para
estreitar as inter-relações entre o texto literário e o leitor.
Palavras-chave:
Leitura, Literatura, Teoria da Literatura.
LEITURA
E LITERATURA NA ESCOLA: ENCONTROS E DESENCONTROS
Diversos
estudos já foram realizados, visando
investigar as inter-relações entre a leitura e a literatura no contexto
escolar. Como argumentam Chartier e Hébrard (1995), há a presença de dois
discursos: o da escola sobre a leitura e o da leitura sobre a escola.
Parece-nos que não há uma sintonia entre esses dois tipos de discursos, na
medida em que se observa um descompasso entre as práticas de leitura que
circulam na escola e as discussões sobre leitura recorrentes fora do espaço
escolar.
É
fato que as conexões entre leitura e literatura existem, tendo como suporte os
discursos teóricos, os quais investigam a inter-relação entre as concepções de leitura,
texto e literatura presentes em sala de
aula. Contudo, essas discussões teóricas geralmente perdem-se na prática de
sala de aula, havendo mais “desencontros” que “encontros” a respeito das conexões entre leitura, literatura e escola.
Leitura,
literatura e teoria literária deveriam estar estreitamente relacionadas no meio
escolar, devido a vários motivos, dentre os quais citamos:
•
a própria natureza interdisciplinar do ato de ler que envolve
contribuições de diversas áreas. No caso da leitura literária, o ato de ler é
influenciado por estratégias cognitivas, lingüísticas, metalingüísticas,
conhecimento do policódigo literário, noção de gênero literário, estilo de
época no qual o texto está inserido, enfim, um conjunto de noções determinantes
na interação do leitor com o texto;
•
o fato de a significação do texto literário ser construída a partir da participação
efetiva do receptor, o que torna
evidente as relações dinâmicas entre a literatura e o leitor;
•
a teoria literária só existe em função da leitura e da literatura: esse
é outro aspecto a ser considerado quando se trabalha o texto literário em sala
de aula. A teoria literária deve estar presente na escola, subsidiando a
prática do professor, no sentido de ampliar concepções críticas sobre o fazer
literário e a recriação do texto pelo leitor, o que só ocorre no ato da
leitura.
As
relações entre leitura e literatura nem
sempre são analisadas, reavaliadas e praticadas como deveriam no contexto
escolar. A leitura ― como atividade
atrelada à consciência crítica do mundo,
do contexto histórico-social em que o aluno está inserido ― ainda é uma prática
que precisa ser mais efetivada no espaço escolar.
O
papel da escola é o de formar leitores críticos e autônomos capazes de desenvolver
uma leitura crítica do mundo. Contudo, na prática, essa noção ainda parece
perder-se diante de outras concepções de leitura que ainda orientam as práticas
escolares.
Na escola, a leitura é praticada tendo em vista o consumo
rápido de textos, ao passo que a troca de experiências, as discussões sobre os
textos, a valorização das interpretações dos alunos tornam-se atividades
relegadas a segundo plano. A quantidade de textos “lidos” (será que de fato são “lidos” pelos alunos?) é supervalorizada
em detrimento da seleção qualitativa do material a ser trabalhado com os
alunos.
Concordamos
com Britto (In: EVANGELISTA E BRANDÃO, 1999:84), quando afirma que “a leitura
tem de ser pensada não apenas como procedimento cognitivo ou afetivo, mas
principalmente como ação cultural historicamente constituída”. Essa noção da
leitura como ato de posicionamento político diante do mundo precisa estar
presente
na prática de sala de aula. Os alunos deveriam ser capazes de “experienciar” o
ato de ler como uma ação cultural, em que o leitor tem papel dinâmico nas redes
de significação do texto.
A leitura e a literatura sofrem um processo de escolarização, no qual o artificialismo
revela-se de modo recorrente por meio de atividades, exercícios escolares isolados,
sem que o aluno perceba a leitura como “ação cultural historicamente
constituída”. Silva (1998a: 61) comenta
o tratamento dado ao texto literário na escola por meio das fichas de
interpretação, as quais desmotivam o aluno e incutem no educando a idéia de que
fruir o texto literário é elaborar a ficha encomendada pelo professor com
informações, tais como: título da obra, nome do autor, descrição das personagens
principais e secundárias, além de outros detalhes superficiais que não avaliam,
de fato, a compreensão do texto.
Vários autores analisam o processo de escolarização do
ato de ler, tendo em vista as concepções de leitura que norteiam o trabalho dos
professores em sala de aula. Kleiman
(1996), por exemplo, desenvolve uma análise crítica sobre as concepções de
leitura que circulam no espaço escolar. Conforme a autora, a escola ainda
prioriza a leitura como mera decodificação, pressupondo um leitor passivo, cuja
participação volta-se primordialmente para a superfície do texto. Além dessa concepção, a leitura é
trabalhada no espaço escolar tendo como objetivo final alguma estratégia de
avaliação, o que coloca o aluno diante de uma tarefa árdua: é preciso ler para
fazer exercícios, provas, fichas de leitura, resumos, enfim, o ato de ler visa
cumprir tarefas escolares.
Na
medida em que as leituras são impostas, objetivando o cumprimento de tarefas
puramente escolarizadas, o ato de ler
passa a ser compreendido pelos alunos como uma obrigação e as escolhas pessoais
dos leitores não são privilegiadas. Essa concepção autoritária da leitura
promove um apagamento da voz do aluno enquanto leitor e produtor de textos.
Segundo Kleiman (1996, p.24):
"é durante a interação que o
leitor mais inexperiente compreende o
texto: não é durante a leitura silenciosa, nem durante a leitura em voz alta, mas durante a conversa sobre aspectos
relevantes do texto".
É
justamente na troca de experiências e
histórias de leitura que, de fato, ocorre a interação entre textos e leitores.
Contudo, a escola parece não estimular a função interativa das práticas de
leitura, ao privilegiar atividades que desmotivam o aluno e provocam a aversão
dos educandos ao mundo dos livros.
Outro problema no espaço escolar diz respeito à
utilização do livro didático como um instrumento preponderante na exploração da
leitura. Os livros didáticos, ao apresentarem, em sua maioria, a compreensão
textual com base em esquemas de interpretação preestabelecidos, restringem a
recepção do aluno-leitor, uma vez que não lhe é dada a oportunidade de
manifestar a sua leitura. Conforme
Kleiman e Moraes (1999, p.66):
“o livro didático, quando usado como
única fonte de conhecimento na sala de aula, favorece a apreensão fragmentada
do material, a memorização de fatos desconexos e valida a concepção de que há apenas uma leitura
legítima para o texto.”
O
problema, na verdade, geralmente não está no material didático, mas, sobretudo,
no modo de utilização dos recursos que são trabalhados em sala de aula.
Vários
manuais didáticos já apresentam uma diversidade de atividades propostas aos
alunos, além da variedade de gêneros que são apresentados ao leitor na tentativa
de persuadi-lo à prática da análise textual.
Embora
vários manuais didáticos produzidos contemporaneamente discutam a literatura à
luz das contribuições da teoria e crítica literárias, muitos ainda revelam concepções
estigmatizadas acerca da literatura. Em alguns livros didáticos, por exemplo,
observam-se exercícios que exploram a leitura de textos literários com o predomínio
de perguntas que requerem apenas uma leitura
superficial, ou seja, o leitor não é estimulado a inferir, preencher as entrelinhas e reconstruir as pistas textuais
até atingir um nível maior de criticidade no ato de ler. Nesse sentido, o
leitor
não
consegue desenvolver uma compreensão mais ampla do texto literário, pois o papel
dinâmico do receptor é subestimado, sufocado pela leitura imposta pelos roteiros
de interpretação dos livros didáticos.
Na
escola, diante da imposição das leituras idealizadas pelos professores e pelos
livros didáticos, constrói-se o mito de que a leitura literária é difícil,
complexa e inacessível para os alunos, subestimando-se a capacidade
interpretativa dos educandos. Soma-se a isso o fato de a escola enfatizar a
leitura de textos clássicos, com o objetivo de, à primeira vista, “facilitar” o
contato do aluno com obras canônicas, para depois desenvolver a leitura de
textos mais contemporâneos e experimentais. A leitura de textos produzidos
contemporaneamente e a inclusão de obras que apresentam uma estruturação pouco
linear tornam-se práticas que ainda precisam ser mais valorizadas em sala de
aula. Não estamos querendo questionar a
importância
da leitura dos clássicos, mas sim o modo
como esses textos são impostos para os alunos no espaço escolar.
Na
verdade, a escola parece não conseguir instrumentalizar, de modo eficaz, o
aluno para a leitura dos clássicos. É
fato sabido que os alunos têm acesso a roteiros já prontos de
interpretação, além de praticarem as leituras de adaptações de clássicos que,
na maioria das vezes, deturpam a obra original. Desse modo, as dificuldades com
a leitura tornam-se intensas, pois os alunos não são adequadamente preparados
para o contato com textos clássicos ou contemporâneos, principalmente se
considerarmos os casos de textos que investemna desconstrução da linguagem, por
meio de uma organização discursiva pouco
linear.
Ao
desenvolver mais enfaticamente a leitura de obras “clássicas”, a escola não
apresenta aos alunos a diversidade de textos produzidos contemporaneamente, os
quais geralmente tentam subverter e criticar a produção literária já
canonizada.
Textos
que rompem com as estratégias discursivas tradicionais e inauguram novos padrões
tornam-se um desafio para os leitores acostumados à leitura de obras com estruturas
convencionais.
O
professor deve realizar seleção de textos literários, tendo em vista os interesses e a capacidade
interpretativa dos alunos. É preciso mostrar que qualquer obra literária é
formada por meio do entrelaçamento de registros lingüísticos e estéticos. Além
disso, é importante que o aluno tenha a liberdade de selecionar seus próprios
textos, a partir de suas experiências prévias de leitura, no sentido de descobrir
o prazer de ler.
O aluno deveria ser orientado para compreender
o papel estético da literatura, bem como a função social desta manifestação
artística. Não encontrando uma relação direta entre o texto literário e o seu
cotidiano, o aluno não percebe a literatura como espaço de construção de mundos possíveis que dialogam com a realidade.
É fundamental que a escola aborde a função social da literatura como uma
possibilidade de "ler o mundo", contribuindo, assim, para a formação
de leitores críticos, capazes de articular a leitura de mundo à leitura
produzida em sala de aula.
De
acordo com Silva (1998a:56),
“em certo sentido, a leitura de
textos se coloca como uma ‘janela para o
mundo’. Por isso mesmo, é importante que essa janela fique sempre aberta,
possibilitando desafios cada vez maiores para a compreensão e decisão do
leitor”.
A
leitura literária deveria ser trabalhada na escola como essa “janela para o
mundo”. A obra literária poderá, assim,
ser recriada e reinventada pelos leitores, tendo em vista as diferenças de
repertórios, de experiências prévias de leituras, bem como a diversidade e
heterogeneidade de expectativas dos leitores.
Defendendo a necessidade de o leitor “experienciar” a
obra literária, Matos (1987: 20) afirma:
“o ensino da
literatura é, em rigor, impossível, pela simples razão de que a experiência não
se ensina. Faz-se. Mas podem e devem criar-se as condições para essa
experiência: removendo obstáculos e proporcionando ocasiões.”
A experiência da literatura, conforme Hester (1972,
p.284), raramente ocorre em sala de aula. Segundo o autor, podemos preparar nossos alunos para “experienciar”
um texto literário e devemos intensificar
essa atividade. No entanto, não estamos plenamente aptos a produzir essa
experiência como uma realidade mútua para nós e outros leitores. Em outros
termos, a experiência da leitura literária é de natureza individual, varia de
leitor a leitor e deve ocorrer de forma
natural, considerando a privacidade do leitor em sua relação com o objeto
literário. Cabe à escola propiciar ou criar atividades que permitam ao aluno o
desenvolvimento dessa experiência estética.
Em
sala de aula, a leitura consolida-se cada vez mais como atividade atrelada à
obrigação da rotina de trabalho, ao passo que o ato de ler como forma lúdica e prazerosa
de reconstruir mundos possíveis revela-se uma prática pouco discutida e concretizada.
Como já referimos, a imposição da leitura do livro didático e das leituras
“prontas”, idealizadas pelo professor, sufocam a descoberta da leitura por prazer.
Tais fatores certamente inibem o aluno, direcionam sua compreensão no sentido
de ver a literatura como fenômeno que se pode decorar para se fazer um teste,
um exercício, ou para responder às
questões objetivas do vestibular. Os alunos afastam-se, assim, dos textos
literários, encaram a literatura como algo antiquado, complexo, distante de sua
realidade.
Além
desses fatores, a aversão de muitos
alunos à prática da leitura vivenciada no contexto escolar também é reflexo das concepções tradicionais de ensino
que ainda resistem em algumas escolas. A noção de língua como sistema abstrato
de signos, a compreensão de texto como mera soma de palavras ou de frases descontextualizadas,
como também o conceito de leitura como simples decodificação são perspectivas
que ainda orientam o ensino de língua/literatura em várias escolas.
Em
geral, as escolas formam o “leitor reprodutor”, já que há limitações na exploração
didática da leitura com o predomínio de
perguntas que incutem, no aluno, a noção de leitura como
"constatação" e não como construção ou negociação de sentidos. Desse
modo, as estratégias inferenciais são
pouco recorrentes e o aluno não consegue entender o lado lúdico e criativo da
leitura.
Silva
(1998a:11) afirma que a escola forma “ledores”, mas não consegue promover o
desenvolvimento de leitores críticos, uma vez que, no contexto de sala de aula,
a leitura é trabalhada como uma prática rotineira e mecânica. Ao sair da escola,
o indivíduo geralmente abandona o hábito
da leitura, pois encara tal atividade como algo atrelado aos exercícios
escolares.
É
de esperar-se, portanto, que a escola não consiga pleno êxito no projeto de formar
leitores críticos, pois é criado o mito de que a leitura é uma tarefa escolarizada
que só faz sentido dentro dos limites da sala de aula. Fora da escola, o propósito
da leitura como atividade obrigatória torna-se ineficaz e poucos são os que continuam
trilhando o caminho de ler o mundo dos textos e ler o mundo nos textos.
Diante das dificuldades no tratamento dado à leitura em
sala de aula, surgem alguns questionamentos: como desenvolver atividades com a
literatura num contexto escolar que não privilegia a formação de leitores críticos e autônomos? Como estimular
os alunos à leitura literária? Enquanto professores, somos “ledores” ou leitores?
Esses
e outros questionamentos somam-se aos desafios de se democratizar a leitura num
país repleto de desigualdades e
injustiças sociais que marcam um abismo intransponível entre os leitores e os
não-leitores.
Vivemos
uma situação paradoxal. Por um lado, no contexto de revolução tecnológica, a
Internet torna-se uma ferramenta importante para a socialização e crescente
divulgação do conhecimento. O indivíduo precisa cada vez mais ler, a fim de
aumentar sua bagagem cultural e suas experiências de leitura. Por outro lado, apesar
desses avanços nas novas tecnologias, enfrentamos um processo de massificação
cultural, em que a maioria dos indivíduos não consegue fazer uma leitura
crítica do mundo. Nesse contexto, a leitura é praticada de modo superficial, devido
à rapidez e à velocidade das informações que trafegam na Internet.
Estudos realizados por Jakob Nielsen (apud
Silva, 2003) mostram como os usuários leem na Internet, ou seja, 79% dos
leitores olham rapidamente o conteúdo da página e apenas 16% desse total fazem
a leitura do texto palavra por palavra.
Esses dados comprovam a superficialidade das práticas de leitura realizadas na web,
devido à própria natureza dinâmica do ciberespaço, caracterizado pelo cruzamento
de vários textos, linguagens, códigos,
entre outros recursos que despertam o interesse do leitor-navegador ao explorar
o universo oceânico de informações da Internet.
A leitura literária praticada na escola precisa se
adaptar rapidamente ao dinamismo do mundo digital. Usada como instrumento para a leitura crítica do mundo, a obra literária
tem importância capital quando, como numa espécie de jogo, simula os conflitos
da realidade e convida o leitor aos
desafios da leitura. Como afirmam Bordini e Aguiar (1993: 27), ler a obra literária é imergir num universo imaginário
organizado, carregado de pistas que o leitor deve seguir se quiser levar a leitura,
ou melhor, o “jogo literário” a termo. Nesse sentido, a literatura pode ser trabalhada
como um meio de os alunos ampliarem a compreensão crítica do mundo, investindo-se
na formação de leitores críticos e conscientes de seu papel no ato dinâmico da
leitura.
Não
é tarefa fácil estreitar as relações entre leitura, literatura e escola, mas é preciso
repensar a concepção de leitura norteadora da prática pedagógica, bem como
reavaliar a própria noção de literatura apresentada para os alunos a partir das
atividades desenvolvidas em sala de aula.
Na
perspectiva de Magnani (1989: 29), discutir as conexões entre leitura, literatura
e escola é repensar a dicotomia entre prazer e saber, além de pensar essas
relações do ponto de vista de seu funcionamento sócio-histórico.
LEITURA,
LITERATURA E TEORIA DA LITERATURA NO ENSINO MÉDIO
Quando
se discute a presença da literatura na escola, é pertinente considerar as
idéias de alguns autores, como Beach e
Marshall, por exemplo, no sentido de estabelecer distinções entre a leitura da literatura e o ensino da literatura. A compreensão desses
dois níveis implica posturas distintas
em face do objeto literário, o que, conseqüentemente, influenciará a interação
texto-leitor na escola.
Segundo Beach e Marshall (1991: 38), a leitura da
literatura está relacionada à compreensão do texto, à experiência literária
vivenciada pelo leitor no ato da leitura, ao passo que o ensino da literatura configura-se como o
estudo da obra literária, tendo em vista a sua organização estética. Na
verdade, esses dois níveis estão imbricados, na medida em que ao experienciar o
texto, por meio da leitura literária, o aluno também deveria ser
instrumentalizado, a fim de reconhecer a literatura como objeto esteticamente
organizado. No entanto, a escola parece dissociar
esses dois níveis, desvinculando o prazer de ler o texto literário (produzido pela leitura da literatura) do reconhecimento das
singularidades estéticas da obra (proporcionado pelo estudo/ensino da
literatura).
É preciso que a escola amplie mais atividades, visando à
leitura da literatura como atividade lúdica de construção e reconstrução de
sentidos. O aluno-leitor deve sentir-se motivado a ler o texto, independentemente da imposição das tarefas escolares
requeridas pelos professores. Contudo, parece-nos que o contexto escolar privilegia
mais o ensino da literatura, no qual a leitura realizada pelos professores é diferente
daquela efetivada pelos alunos, pois a diversidade de repertórios, conhecimento
de mundo, experiências de leitura influenciam diretamente o contato do leitor
com o texto. Tanto a leitura da
literatura, quanto o ensino da
literatura deveriam estar presentes no contexto escolar de modo articulado,
pois são dois níveis dialogicamente relacionados.
Como
afirmam Beach e Marshall (1991: 39), o desafio do professor é ajudar os alunos a elaborar ou rever suas
interpretações iniciais, sem descartar totalmente suas primeiras leituras. O
professor deve colaborar com os alunos,
visando à construção/reconstrução de interpretações e não simplesmente
apresentando leituras já prontas. Conforme esses autores (1991: 09), uma das
formas de mapear alguns problemas relacionados ao ensino de literatura é
considerar a interação entre professor, alunos e texto.
É
preciso, ainda segundo Beach e Marshall, que o professor reconheça dois níveis
de leitura. Por um lado, há a leitura realizada pelo aluno que está construindo
sua interpretação a partir, muitas vezes, de um único contato com o texto. Por
outro lado, há a leitura do professor, em que entram fatores mais complexos
como o saber lingüístico, bem como o conhecimento de dados biográficos e do
contexto histórico, enfim, a noção de elementos instrumentais específicos da
teoria e crítica literárias.
Ainda
conforme os autores, o professor deve colocar o aluno frente à diversidade de
leituras
do texto literário, para que o educando reconheça que o sentido não está no texto,
mas é construído pelos leitores na interação com textos.
É
justamente a partir dessa interação do aluno com textos que o estudo da literatura
em sala de aula torna-se significativo. É fundamental valorizar o papel do leitor
e transformar a visão ainda tradicional que norteia a prática pedagógica de vários
professores, baseada em análises imanentes em face da obra literária.
Objeto
de análises superficiais, o texto literário é geralmente tratado em sala de
aula de modo isolado, como espécie de expressão artística que por si só já carrega
significação própria e independe da atualização do aluno-leitor. Além disso, como
afirma Rouxel (1996: 73), a escola cultiva uma visão tradicional da literatura,
considerada como um conjunto de textos a ser admirado, ou ainda, caracterizada por
um “bom estilo”, digno de ser imitado pelos alunos. A concepção de literatura como
objeto artístico ancorado num processo histórico-social precisa ter uma penetração
maior no espaço de sala de aula.
Na
perspectiva de Zilberman (2001), a escola, a crítica literária, a academia e a
imprensa são instituições capazes de
conferir e legitimar o estatuto de certas produções artísticas em detrimento de
outras. Segundo a autora (2001: 82):
Essas entidades estabeleceram e
fixaram a concepção de literatura enquanto “belas letras”, operada a partir da
consolidação da sociedade burguesa e do capitalismo, garantindo sua
permanência. A seguir, passaram a colocar normas e exigências aos criadores,
que eles devem adotar ou não para serem reconhecidos pelo meio e aceitos
enquanto artistas.
A
noção da literatura como “belas letras”, apontada por Zilberman (2001), ou como
um conjunto de textos marcados pelo uso de uma “bela linguagem”, conforme Rouxel
(1996), promove, a nosso ver, uma
elitização das obras literárias, supervalorizando o cânone literário, o
que pode distanciar a literatura do
aluno. A visão da escola sobre a literatura difere consideravelmente da noção
que o alunoleitor tem acerca do literário. É preciso repensar os julgamentos de
valores disseminados pelas instituições que abordam a literatura sob prismas distintos (a escola,
a crítica literária, a imprensa, etc..), quando consideramos que cabe ao leitor
construir o seu próprio “cânone literário”, valorizando seu repertório de
leituras.
Nesse
sentido, o texto literário não pode ser compreendido como objeto isolado, sem
as interferências do leitor, sem o conhecimento das condições de produção/recepção
em que o texto foi produzido, sem as contribuições das diversas disciplinas que
perpassam o ato da leitura literária, inter/multi/transdisciplinar pela própria
natureza plural do texto literário.
Retomamos
a conhecida citação de Barthes (In: LAJOLO, 1993: 15), na qual o autor
apresenta uma visão interdisciplinar da literatura:
“se, por não sei que excesso de
socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do
ensino, exceto uma, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as
ciências estão presentes no monumento literário.”
Mas
essa visão da literatura como disciplina que envolve e co-relaciona outras
áreas do conhecimento (História, Filosofia, Geografia etc.) ainda precisa ser
mais difundida no espaço escolar.
O
texto literário é plural, marcado pela
inter-relação entre diversos códigos (temáticos, ideológicos, lingüísticos,
estilísticos etc.) e o aluno deve compreender a interação entre literatura e outras áreas que
se inter-relacionam no momento da constituição do texto. Segundo Reuter (1986:
76), “a leitura é um objeto largamente transdisciplinar”, por isso qualquer
discussão teórica sobre o ato de ler deve considerar a reflexão sob uma
perspectiva mais ampla que envolva as diversas áreas atreladas à prática da
leitura como fenômeno sociocultural.
A literatura, concretizada a partir da leitura, também
permite uma abordagem interdisciplinar, capaz de revelar ao aluno o diálogo
entre as características estéticas do texto e as motivações históricas, sociais,
políticas, filosóficas e psicológicas que contribuíram para a constituição da
polissemia revelada no âmbito textual. No entanto, a literatura ainda parece ser tratada em sala de aula como
objeto decodificável, tendo como base os limites estreitos da superfície
textual e as noções do certo e do errado. A partir dessas noções, a escola
contesta a relatividade do erro na leitura literária, não levando em
consideração a natureza polissêmica do texto literário e o papel dinâmico do
aluno-leitor na recepção textual. (cf. ROUXEL, 1996: 81).
Vários são os fatores que dificultam o tratamento dado à
literatura em sala de aula, um deles refere-se à metodologia utilizada no
Ensino Médio, efetivamente orientada para o vestibular como um fim em si mesmo.
O objetivo principal de muitas escolas e diversos cursinhos é ensinar para o
vestibular, conquistar o maior índice de aprovação nos exames.
Como
explorar nos limites estreitos das questões objetivas, impostas nos vestibulares,
a plurissignificação do texto literário? Como exigir que o aluno leia as
entrelinhas,
estabeleça a relação entre
texto-contexto e perceba a dimensão simbólica da literatura, se a
metodologia usada no Ensino Médio volta-se para uma leitura do texto já
instituída pela escola, pelo professor e pelos livros didáticos?
Pode-se
constatar que, embora muito discutido do
ponto de vista teórico, o ensino de literatura continua sendo um desafio para
pesquisadores e professores. É preciso que as discussões teóricas não se percam
no vazio, mas que apresentem contribuições significativas para propostas
metodológicas sobre o tratamento do texto literário em sala de aula. A escola tem papel primordial na
formação de leitores/produtores de textos e a literatura pode contribuir para o
desenvolvimento dos alunos como usuários da língua que ampliarão as estratégias
comunicativas, a partir da leitura crítica, compreensão e produção de textos
diversos.
É
necessário que o aluno compreenda a
literatura como fenômeno cultural, histórico e social, como instrumento
político capaz de revelar as contradições e conflitos da realidade. No diálogo
entre o mundo empírico e o universo ficcional, a literatura pode produzir um
significado para o contexto em que vivemos.
Ao
trabalhar com a leitura literária, o professor deve orientar os alunos para a função
ideológica dos textos literários, na medida em que:
“antes de se transformar em discurso
estático, subverter a ordem provável da língua para alcançar determinados
efeitos de comunicação, a literatura ‘se alimenta’ na fonte de valores de
cultura”. (GONÇALVES FILHO, 2000: 104).
Na
maioria das vezes, o aluno não entende que a obra literária é produto de um contexto amplo e, por
conseguinte, visões de mundo, valores ideológicos de uma época, costumes,
enfim, a diversidade de elementos culturais participa ativamente da
constituição do texto.
Concordamos
com Lopes (1994: 368):
“ensinar literatura não pode deixar
de ter em conta esta dupla dimensão dos textos literários pela qual, ao mesmo
tempo que fazem parte da cultura, e por
conseguinte do campo da opinião ou das significações consensuais, são
sobretudo o abalar destas.”
Assim,
ensinar literatura não é apenas elencar uma série de textos ou autores e
classificá-los num determinado período literário, mas sim revelar para o aluno
o caráter atemporal, bem como a função
simbólica e social da obra literária.
Retomamos
aqui as considerações de Beach e Marshall (1991: 17):
“o estudo da literatura
poderia ser justificado por sua habilidade para ajudar os alunos a compreenderem
a si próprios, sua comunidade e seu mundo mais profundamente”.
É
essa integração entre o texto literário e a dimensão sociocultural que a escola
deve proporcionar aos alunos, levando-os a perceber as possibilidades de significação
que o texto literário permite, enquanto objeto artístico polissêmico que transgride
normas e regras, envolvendo o leitor num
jogo de construção /reconstrução de sentidos. No entanto, a tarefa de apresentar ao aluno o caráter polissêmico
da leitura literária, valorizando a recepção do leitor na significação textual,
ainda parece ser um desafio no contexto escolar. Conforme Kramsch (In: JACOBUS, 1996: 134), os
alunos precisam entender o texto literário como uma forma de (re)descoberta de
sua própria identidade, por meio da reescrita que se concretiza no ato de ler,
momento em que o leitor responde ativamente ao texto.
Rosenblatt (In: JACOBUS, 1996: 141) afirma que a obra
literária oferece uma oportunidade de o leitor se envolver numa experiência de
reconstrução dos acontecimentos vividos pelas personagens. Enquanto alguns
críticos acreditam que é perigoso deixar o texto à mercê simplesmente da
concentração exclusiva das opiniões pessoais dos alunos, Rosenblatt argumenta
que precisamos ajudar o aluno a desenvolver uma leitura estética da obra. Os
professores precisam encorajar os alunos para que estes desenvolvam autonomia
no ato da leitura. O papel do professor é crítico ao selecionar obras que
permitam uma interação mais produtiva, além de utilizar questões que possam deixar
clara a relação entre a experiência do aluno e o texto.
Com base nessas reflexões, insistimos que a teoria
literária precisa subsidiar a prática pedagógica dos professores, no sentido de transformar os alunos em leitores
críticos da literatura. A sala de aula ainda é um espaço marcado pelas abordagens
formalistas e estruturalistas que analisam o texto literário como produto acabado,
sem valorizar a interferência do leitor
na atualização da significação textual. As abordagens que priorizam a interação
texto-leitor precisam ter mais penetração no contexto escolar, a fim de se
valorizar mais o papel dinâmico do leitor na recepção textual.
A
educação literária proposta pela escola merece ser reavaliada, a fim de que nossos
alunos-leitores possam encontrar razões
concretas para o estudo da literatura como fenômeno artístico atrelado às transformações históricas, sociais e culturais.
Retomando as considerações de Leahy-Dios (2001), de que adianta “ensinar” os
alunos a memorizar características dos diferentes estilos de época, situando-se
a produção literária em “blocos monolíticos de períodos literários”, se os educandos
não conseguem ter uma compreensão mais ampla do objeto literário?
Talvez
uma forma de repensar o processo de
ensino-aprendizagem da literatura na escola seria a busca de sintonia entre a prática pedagógica dos professores
e as contribuições da teoria literária. Elencamos, a seguir, alguns objetivos
que podem subsidiar o trabalho com o texto literário em sala de aula:
• articular leitura crítica, análise e
interpretação do texto literário, visando atingir um discurso crítico
desenvolvido pelo aluno, a partir do reconhecimento das singularidades
estéticas do fazer literário;
• apresentar distinções entre os gêneros
literários, percebendo também o diálogo entre características de diversos
gêneros numa mesma obra literária;
• analisar a obra literária sob uma ótica interdisciplinar, reconhecendo
as relações entre Literatura e Sociologia, Literatura e História, Literatura e Psicanálise,
entre outras;
• desenvolver estudos da obra literária
baseados no interculturalismo;
• considerar as diversas correntes teóricas que
se debruçaram sobre o fazer literário com perspectivas diferentes (Formalismo,
Estruturalismo, Pósestruturalismo, Sociologia da Literatura, Sociocrítica,
Fenomenologia da Leitura, etc.);
• estabelecer distinções entre Teoria da
Literatura, Crítica Literária e História da Literatura;
• desenvolver estudos intersemióticos,
considerando as relações entre literatura e outras expressões artísticas
(literatura e pintura, literatura e música, etc.).
Os
tópicos levantados são apenas um breve resumo de alguns subsídios teóricos que
podem contribuir para minimizar as distâncias que ainda existem entre a
literatura e o leitor no espaço escolar. O fato de a teoria literária refletir
sobre o ato da leitura também pode trazer repercussões significativas na
escola, no sentido de estreitar as relações entre texto-leitor,
literatura-leitor, teoria-prática.
O
não-reconhecimento das convergências entre leitura, literatura e teoria literária
é um obstáculo que, certamente, dificulta o trabalho dos professores. É fundamental
que se promova uma reavaliação das metodologias direcionadas ao ensino de
literatura, visando à exploração de alternativas didáticas de
ensinoaprendizagem capazes de motivar os alunos à leitura por prazer, à busca
de conhecimento, à leitura crítica do texto
articulada com a compreensão crítica do mundo.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Enquanto não houver uma articulação entre leitura,
literatura e teoria literária, as aulas de literatura no Ensino Médio, por
exemplo, continuarão a ser ministradas, tendo em vista, primordialmente, o
reconhecimento das características estéticas dos períodos literários. As aulas
de literatura ficarão restritas ao âmbito da História da Literatura, sem que o
aluno consiga, de fato, “experienciar” o texto literário de modo eficaz.
É preciso que o ensino de literatura busque meios de
persuadir o aluno-leitor a encontrar, na leitura do texto literário, um espaço
lúdico de reconstrução de sentidos, em que a imaginação do leitor é guiada pelos indícios textuais no ato dinâmico
da leitura.
A
escola ainda parece enfatizar uma
"educação pela literatura", quando o texto torna-se espaço
intermediário para atividades outras que não consideram a polissemia da obra
literária. Na verdade, concordamos com Lajolo (apud AMARAL,
1986:
05) quando propõe uma "educação para a literatura", despertando o
aluno para a compreensão do texto enquanto multiplicidade de significados
dentro das esferas cultural, ideológica, social, histórica e política.
A
teoria literária é capaz de fornecer instrumentos ao professor do Ensino Médio,
no sentido de ampliar o conceito da literatura enquanto instrumento de transformação
social. É importante, pois, estreitar as relações entre teoria literária e ensino
de literatura, pois enquanto a teoria não ultrapassar os “muros” da academia e
não penetrar consideravelmente no contexto escolar, as aulas de literatura continuarão
restritas ao estudo biográfico, às questões puramente formais, gramaticais ou à
História da Literatura, ao passo que a multissignificação do texto será
relegada a um segundo plano de análise.
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Sobre
a autora:
Ivanda
Maria Martins Silva (ivanda@fir.br) - Doutora em Letras pela UFPE (2003), é
professora de Língua Portuguesa da Faculdade Integrada do Recife (FIR) e de Prática
Pedagógica das Faculdades Integradas da Vitória de Santo Antão (FAINTVISA). Tem
publicações nas áreas de: ensino de literatura, letramento digital, leitura
literária e novas tecnologias, literatura pernambucana. Atua como supervisora do
Núcleo de Divulgação Científica da Coordenação de Pesquisa, Pós-graduação e Empreendedorismo
(COPPE/FIR) e coordena a publicação
científica CETEC. Revista de Ciência,
Empreendedorismo e Tecnologia (revista_cetec@fir.br).