Ruth Guimarães
Não sei se com base folclórica ou religiosa, existe um costume com respeito aos moribundos: temos que lhes colocar uma vela.
Ninguém estaria bem assistido em seus últimos momentos, se se não segurasse mal e mal, entre os dedos já sem movimento uma vela acesa, isto é, uma luz, para alumiar-lhe o caminho na outra vida. E isto estava arraigado no povo. Morrer sem uma vela, nem pensar! E os caminhos? E a luz?
Conta-se de dois pretos, já de certa idade, arranchados numa clareira, carvoeiros que eram e lenhadores. Um deles se sentiu mal e começou a fazer termo para morrer. Eles tinham o seu machado , o facão, a bilha cheia d’água do riozinho, os mantimentos para a semana, a pedra de tirar fogo. Mas vela, nenhuma. Ninguém se lembrou desse utensílio. Não tem nada, não, que o preto comentou consigo mesmo. A gente dá jeito. Foi na touceira de taquaruçu, cortou um gomo bom de abarcar com os dedos, bolou um pavio de um pedaço de pano e pôs nas mãos do moribundo o precioso instrumento de encontrar o caminho no céu. Mas o companheiro, nada de morrer. Varou estertorando o resto do dia e a noite. E o fogo lavorando lento mas firme, gomo de taquaruçu abaixo.
Um parênteses para explicar: alguém já viu queimada de moita de taquaruçu? Quando o fogo pega e se o vento ajuda, é cada estrondo na touceira , que parece uma caçada ou uma guerra. E aquele foguinho descendo. E o compadre, coitado, desprevenido do que estava para acontecer. Ia baita de um susto. O outro desesperou.
- Compadre! – rogou – Pelo amor de Deus! Morra logo, antes que chegue no nó!
Vêm-me a lembrança as noites de tempestade, quanto estouram os gomos de taquaruçu, grávidos de sacis, um negrinho em cada gomo. De cada estouro vai saindo para o mundo, pulando e assobiando, a sacizada. O pipocar é de uma guerra. E é prevendo essa guerra esse aluvião de sacis, libertados em noite de tempestade, que o pobre velho, acompanhante da alma que agoniza sem vela, vai rezando e entremeando as palavras sagradas, com o acréscimo de palavras de sua intenção particular: “Morra logo, compadre, antes que chegue no nó!”
São Luiz do Paraitinga tem relações muito satisfatórias com o saci. De lá partiu uma campanha de fortificação do mito Pererê em contraposição ao halloween. Nessa campanha tomaram parte todos os artistas, dom Quixotes, da cidade. Empenharam-se a valer, inclusive insistindo numa pergunta a que os brasileiros teriam que responder:
- Você acredita em Saci?
A mim jamais fizeram tal indagação.
É sabido que eu brincava com o saci, nas moitas de perpétua em flor do jardim da minha avó.
Dali (de São Luís, digo), veio o quarteto Pererê. Veio a campanha de substituir o halloween americano pelo saci, duende-menino tão inofensivo e até divertido. Teve a sua graça e somente não vingou a excelente ideia, porque os caminhos do folk são outros caminhos.
Que podem contra eles os frágeis pensamentos dos homens?
Mas São Luís tem outras amáveis acontecências. Por exemplo as músicas dolentes de Elpídio dos Santos, de quem neste ano se comemora o centenário de nascimento. Tem o carnaval das marchinhas dos carnavais de antanho, que falam ao nosso coração brasileiro. E aqueles prédios que caíram, mas vão se erguer novamente, para gáudio dos paraitinganos, antigos e novos, a um tempo, numa demonstração de que todos carregam velas para a nova vida de São Luís do Paraitinga. Numa demonstração de que Deus vai acabar caminhando direito por linhas tortas.
Como sempre.
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