Maximino Basso
Pretende-se, nesse
breve artigo, levantar algumas questões referentes à relação entre Ciências
Naturais e Ciências Humanas, tendo como fio condutor o pensamento de Boaventura
de Souza Santos. Trata-se de um tema muito importante, ao nosso ver, para todos
os que atuam em uma universidade.
E você, o que pensa sobre o assunto? Será que as ciências
dos fatos produzidos pelos homens têm o mesmo estatuto de cientificidade que o
das ciências dos fatos da natureza? Ou, ao contrário, teriam elas lógicas
complemente diferentes? Ou, ainda, não poderia haver um meio termo entre ambas?
O que você tem a dizer sobre essa questão? Como devemos conceber a relação
entre esses dois tipos de ciência?
Se
você adotar a tese de que há uma única maneira de fazer ciência, neste caso, a
nossa questão estaria resolvida. Pois, como as ciências naturais, há muitos
séculos, vêm mostrando sua fecundidade e sucesso, então, se as pesquisas dos
fatos humanos quiserem ter um estatuto científico - dentro dessa ótica -, isso
só será possível se elas se pautarem nos critérios de objetividade,
neutralidade, enfim, no método das ciências naturais. Essa é, em essência, a
posição de todos os autores ligados ao pensamento positivista.
Santos, contudo, vai sugerir-nos novos
caminhos. Ele parte, em seu estudo (Veja 1993, p. 9-119) da tese de Bachelard
de que tanto as ciências naturais como as humanas - inclusive a filosofia,
enquanto discurso articulado e rigoroso - comportam duas rupturas
epistemológicas.
A
primeira: todo processo
científico só pode acontecer quando o pesquisador sai da linguagem do senso
comum e busca uma linguagem técnica, própria de um saber rigoroso que busca
encontrar a verdade; pois a ciência, nesse momento, se opõe à opinião. Dentro
da linguagem do senso comum não é possível acontecer saber rigoroso e
concatenado.
Contudo, quando a ciência tiver acabado sua
pesquisa e discurso, se torna necessária a segunda ruptura: é preciso voltar à linguagem
do senso comum, para que os resultados de suas pesquisas sejam acessíveis a
todos os membros de sua comunidade. A ciência só pode ser constituída dentro de
uma linguagem rigorosa; entretanto, os resultados da ciência devem ser
traduzidos dentro da linguagem cotidiana, da linguagem própria dos que não
pertencem à comunidade científica. Os conhecimentos conquistados devem ser
divulgados ao público numa linguagem a ele acessível. Esse trabalho de
construção e desconstrução (próprio da hermenêutica) dos conhecimentos
alcançados, graças ao rigor do trabalho científico, é uma etapa essencial, pois
toda ciência é uma atividade social e, como tal, trará impacto e consequências
relativas à qualidade de vida dos membros da sociedade em que ela se exerce.
Os cidadãos comuns têm o direito e o dever
de conhecer o que fazem e pensam seus cientistas e filósofos, porque também
eles são co-responsáveis por tudo o que se faz e acontece no seio da sociedade
em que vivem. Os resultados da pesquisa científica sempre trarão impactos, ao
mesmo tempo, positivos e negativos sobre a vida dos cidadãos. A verdade da
ciência não é algo atemporal e acima de qualquer suspeita: ela pode ser usada
de modo abusivo, ideológico e autoritário; por isso, todos os cidadãos têm
direito a discutir, ao menos, as consequências positivas e negativas dos resultados
da pesquisa.. A verdade da ciência se dá sempre na e para a sociedade: ela é
prática e social.
Santos acentua o aspecto pragmático da verdade que,
segundo William James, consiste em saber "que diferença faz, para você e
para mim, em instantes precisos de nossa vida, se esta fórmula-mundo ou aquela
fórmula-mundo é verdadeira", (Santos, 1993, 44). A maneira como a ciência
ou a filosofia concebe o mundo traz conseqüências que mudam fundamentalmente
nosso modo de existir no mundo. Por isso, todos nós temos o dever e o direito
de discutir sobre o que implica tudo isso. Até hoje a filosofia, a ciência e a
tecnologia se impuseram autoritariamente às nossas vidas; mas ela é uma
atividade social e, portanto, só se justifica enquanto está a serviço dessa sociedade
e, com ela, discute as implicações de suas proposições.
Mas,
agora, quando compreendemos que todo saber tanto das ciências humanas quanto
das ciências naturais deve ser considerado como uma práxis da sociedade, resta
ainda falar sobre a relação entre elas.
Historicamente,
por fatores que não cabem aqui analisar, as ciências da natureza - não cabe
aqui analisar o motivo – como que naturalmente impuseram seu método
quantitativo e seu ideal de objetividade e neutralidade às ciências humanas,
pois aquelas tiveram um desenvolvimento muito maior que estas. E após o
positivismo, sobretudo, parte-se da pressuposta "superioridade", das
ciências naturais para explicar a "precariedade" das ciências humanas
ou sociais que, embora buscando seguir o modelo daquelas, nunca conseguem
alcançar a objetividade, a neutralidade e seus brilhantes resultados.
Ora, Santos julga que até hoje, ao colocar
a questão de saber se o estatuto científico das ciências humanas ou sociais é
igual ou diferente ao das ciências naturais, este questionamento, da forma com
foi colocado, não apenas é insolúvel, mas também constitui um obstáculo
epistemológico ao avanço do conhecimento científico, tanto para as ciências
sociais como para as ciências naturais.
“Para superar isso, é preciso inverter os termos da questão:
partir da precariedade do estatuto epistemológico das ciências naturais (o que
implica uma ruptura total com a filosofia positivista) e perguntar se as
ciências naturais são iguais ou diferentes das ciências sociais.” (Ibidem, 51).
Agora estão em questão, sobretudo, as próprias ciências naturais.
O autor afirma que hoje “as ciências naturais ainda são diferentes das ciências
sociais, mas aproximam-se cada vez mais destas e é previsível, em futuro não
muito distante, se dissolverem nelas" (Ibidem, 52). E isso graças a duas
razões teóricas. Primeiro, porque o avanço científico das ciências naturais é:
"o principal responsável pela crise do modelo positivista e,
em face dela, as características, que antes ditaram a precariedade do estatuto
das ciências sociais, são reconceptualizadas e passam a apontar o horizonte
epistemológico possível para as ciências no seu conjunto. E, em segundo lugar,
a materialidade tecnológica em que o avanço científico das ciências naturais se
plasmou não fez com que os objetos teóricos das ciências naturais e das
ciências sociais deixassem de ser distintos, mas fez com que aquilo em que são
distintos seja progressivamente menos importante do que aquilo em que são
iguais” (Ibidem, 52).
Portanto, se quisermos pensar a relação entre
ambas, devemos fazê-lo, não mais caminhando das ciências da natureza em direção
às ciências do homem, mas, inversamente, realizar o caminho inverso: partir das
ciências do homem para as ciências dos fatos naturais. E o porquê disso Santos
explica: "o impacto do desenvolvimento científico‑tecnológico faz com que
o mundo humano de hoje, seja cientificamente constituído. No entanto continua a
dominar uma concepção desse que é a do mundo não-humano. Se todo conhecimento
humano é social em sua constituição e nas consequências que o produz, só o
conhecimento científico da sociedade permite compreender o sentido da
explicação do mundo 'natural' que as ciências naturais produzem. Por outras
palavras, as ciências sociais proporcionam a compreensão que dá sentido e
justificação à explicação das ciências naturais. Sem tal compreensão não há
verdadeira explicação e, por isso as ciências sociais são
epistemologicamente prioritárias em relação às ciências naturais" (Ibidem, 68).
Essa posição implica, segundo Santos, a superação do
paradigma da ciência moderna. Mas não se trata de valorar, agora, as ciências
humanas como superiores às naturais, mas a hegemonia daquelas significa apenas
que seus modelos hermenêuticos serão cada vez mais usados pelas próprias
ciências da natureza.
Assim, se
quisermos sair do impasse imposto pelo positivismo às ciências humanas, temos
que superar o paradigma controlador e manipulador da ciência moderna. É preciso
ver que toda ciência é práxis social. E fenômenos sociais são estudados pelas
ciências sociais e não pelas ciências naturais. Na medida em que se toma consciência
dessa obviedade, a concepção de como se relacionam esses dois tipos de ciência
se transforma, os dogmatismos se esvaem e, desta forma, ciências sociais e as
ciências naturais - cada qual mantendo suas peculiaridades e objetos
específicos - caminham lado a lado na tentativa de propor a verdade a que elas
tiveram acesso, visando à construção de um mundo que proporcione, a todos seus
habitantes, condições de existência e qualidade de vida que sejam condizentes à
sua dignidade. Mas isso só acontecerá se o paradigma da ciência moderna for
superado.
Um outro elemento importante que o autor
desenvolve em seu livro é a questão da retórica. Nós sabemos que, desde
Aristóteles, o verdadeiro saber, por ser universal e necessário, devia excluir
toda forma de retórica e manifestações emotivas. A ciência moderna se esmerou
nessa preocupação. A ciência deve ser objetiva e neutra e, por isso, está
completamente excluído todo e qualquer argumento retórico. Ora, Santos,
reportando-se ao livro Nova
Retórica de Ch. Perelman,
mostra que embora oficialmente a ciência moderna exclua todo e qualquer
elemento retórico em seu discurso, na verdade, sempre que surge uma nova teoria
científica - como também mostrou Kuhn - essa só será aceita depois de um longo
trabalho de argumentação e persuasão de seus pares. Portanto, parece claro, que
todas as atividades sociais, inclusive as ciências naturais, sempre se dão
dentro de um contexto de discussão, onde o que estão em jogo não são apenas
argumentos que se dirigem à razão, mas o coração e os sentimentos também têm um
papel importante neste jogo.
Concluindo, seguindo a visão do autor, pode-se concluir
que toda ciência, seja referente aos feitos humanos como aos fatos naturais, é
práxis social. E, uma vez que o estudo da práxis social cabe às ciências
humanas, cabe a estas explicar as ciências naturais. E, deste modo, embora elas
sejam constituídas de modo distinto, tudo indica que não podem mais ser vistas
como dois tipos totalmente separados de saber. Se for superado o paradigma de
um conhecimento instrumentalista e dominador da natureza e do homem, serão mais
importantes as semelhanças que as dessemelhanças, nesses dois tipos de
pesquisa. E as ciências humanas não precisam deturpar seu objeto de estudo para
se adequar a exigências que só se justifica dentro do paradigma moderno de
ciência que, como o autor mostrou, deve ser superado.
Nossa! como eu gostei deste texto! sou da área cientifica e estou estudando as ciências sociais. O conflito existe e a harmonia dos conhecimentos só pode trazer benefícios...
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