quarta-feira, 27 de junho de 2012

Lei do inquilinato

Ruth Guimarães 

Meu avô era dono de uma vila de casinhas amarelas, com janelas azuis, como santas-cruzes do caminho, esplendorosas do ponto de vista da autenticidade, lindas como afrescos primitivos. E também dono de uns métodos abomináveis de despejo, como vou contar daqui a pouco. A vila era como um formigueiro, fervilhante, o velho colérico e para ele só havia duas espécies de inquilinos: os pontuais e os caloteiros. Se pagavam, muito bem, podiam fazer o que quisessem, e havia festas incríveis no cortiço, brigas, barulheiras, o diabo. Se não pagavam, rua! E se alguma vez protestava timidamente, negando ao velho o direito aos processos que usava, ele estrondeava com um vozeirão reboante: 

- As casas não são minhas? 

E respondia a si próprio, com um argumento assombroso e irretorquível: 

- E antão? 

Mandava chamar o Crispim, um negro solerte, muito ativo e risonho, seu factótum, e dizia: 

- Oh! Crispim! Descubra-me a casa da Isabel Pé-de-Gancho! 

- Não dá galho, seu Botelho!? 

- Qual! Que galho? Eu estou mandando, homem! 

E lá ficava a Isabel Pé-de-Gancho, com os tarecos no sereno, e às vezes na chuva, na casa destelhada. 

Soldado Nicácio era metido a valentão, conquistador de mulheres casadas e com certo sucesso. Veio morar no “correr”. Tinha mulher e um filho pequeno. Foi um dia, depois de esperar em vão por acerto de contas adiado de mês, o velho Botelho chamou o Crispim: 

- Mande vir o carro de boi. Vou fazer a mudança do Nicácio. 

Crispim olhou meio em dúvida, ria e não ria, ia e não ia cumprir o mandado. Aquela era forte. E com soldado de polícia ainda por cima. 

- Que é que há, oh! malandro? 

O “faz-tudo” se afobou. 

- Não é nada, seu Botelho. Eu já vou indo. 

E foi. Apareceu o carro de boi, com quatro juntas luzidias. Sob o olhar espantado da mulher do soldado, os seus trens foram empilhados no carro, depois que o velho Botelho comandou, ríspido: 

- Oh! Crispim! Vá à cadeia e chame aqui aquele cachorro. Ele que venha acompanhar a mudança. 

Num átimo, o estarrecido Crispim estava de volta, com Nicácio, espantadíssimo. Não houve cenas nem protestos. Mal o soldado tentou dizer alguma coisa, o velho Botelho gritou: 

- E cale a boca! 

- Mas... m... m... mas... 

- Cale a boca! 

O carreiro se achegou muito manso, muito humilde: 

- Seu Botelho, e agora? Toco pra onde? 

Aí o velho destemperou: 

- Toca pro inferno! Suma-se da minha vista! 

- E a mobília, seu Botelho? Eu... 

- Já disse que vá pro inferno! Jogue no Paraíba! 

Carreiro cutucou os bois de guia. Eia! Vamos! Amo! Amo! Tomou docilmente a rua do Aterro, para o lado de cima, virou a rua da ponte, e foi direto para o lado do Paraíba. Nicácio foi a pé andando atrás. E mais atrás a mulher com o filho no colo, na mais esquisita das procissões. Lá adiante, Nicácio pegou a criança, deu uma corridinha e sentou-se na beirada do carro. A mulher fez outro tanto. Eram moços. Havia muito de imprevisto, de aventuroso, de burlesco, em tudo aquilo. Começaram a rir. O carro chiava uma canção de uma nota só. Nhen-nheeen-nheeeen-nheen. 

Alguns dias mais tarde, o velho, intrigado, chamou Crispim, sacudindo o jornal. 

- Leia-me isto aqui, oh! Crispim. Não entendi bem. Diz aí que agora há uma tal Lei do Inquilinato...

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