Jorge Anthonio e Silva
Partidos estão os vasos harmoniosos,
Os pratos com a face grega,
As cabeças douradas dos clássicos.
Mas o barro e a água continuam a girar
Nos casebres dos oleiros.
(Brennand)
O que também individualiza Schiller na Alemanha do Século XVIII é sua capacidade de pensar multidisciplinarmente a arte, fazendo-a possibilidade analítica no sentido do julgamento ético da atitude histórica (Mary Stuart, Guilherme Tell, Joana D´Arc, A Conjuração de Fiesco, Dom Carlos) com personagens que, não poucas vezes, são postos em xeque entre o vício e a virtude.
A constante tendência a amalgamar a criação literária com o exercício reflexivo da filosofia em Schiller resulta em sua Poesia Filosófica na pequena obra que mais se justifica como tratado do pensamento: A Educação Estética do Homem numa série de Cartas (Über die ästhetische Erziehung des Menschen in Eine von Briefe). Trata-se de um ensaio escrito de fevereiro a dezembro de 1793 na forma de cartas ao seu mecenas, o príncipe dinamarquês Friedrich Christian von Schleswig-Holstein-Sondenburg-Augustemburg, as Cartas de Augustemburg, como comumente conhecidas, são um registro de excelência para a pesquisa sobre o Romantismo e o Idealismo alemão, tal a sua característica de composição filosófico-literária. O hábito do texto confessional e epistolar vinha sendo objeto da investigação intelectual e revelou em 1782 um primor de invenção narrativa com a magnificência da obra francesa Les Liaisons Dangereuses, do jacobino Choderlos de Laclos. O girondino Schiller, enfraquecido com a febre fria mas maduro como dramaturgo e poeta, adota essa forma de escritura e, sob a influência de Kant, Schelling (1775/1854), dos sensualistas ingleses, especialmente o Conde de Shaftesbury (1671/1713), tendo sempre presente a escritura de Goethe (1749/1832), produz um tratado estético como confessional agradecimento intelectual ao príncipe que, o subsidiou nos difíceis últimos anos com uma pensão de mil táleres. Com isso conforma seu estudo literário-filosófico sobre a possibilidade da educação ética da humanidade fundamentada no recurso estético, pautado na lógica das relações entre o sujeito e toda a sua alteridade, intermediados pelo belo, escopo da obra de arte, instrumento que aprimora. Fica aqui dada a sua contribuição analítica sobre os temas em voga em seu tempo; a Estética e a Educação. Trata-se de um pequeno roteiro analítico em 27 cartas que vieram a converter-se em possibilidade de direcionamento do caráter para a grandeza do belo viver, da bela recepção do mundo, do belo responder aos fenômenos da existência.
Estética e Educação
A Educação Estética do Homem é, inicialmente uma composição reflexiva
como proposta de se ver o homem como organismo vivo em constante transformação
no seu compromisso com a prática política. O caráter político fortemente
impresso nas nove primeiras cartas vai lentamente cedendo passo para a pesquisa
de âmbito metafísico, até tornar-se um estudo antropogênico sobre a liberdade
do sujeito. Para o endendimento de Schiller o homem deve ser lido como uma obra de arte porque é
nesta que está manifesta a totalidade de
todo o saber livre, fazendo vibrar no contingente logicamente produzido, a
universalidade da transcendência. O
grande objeto sensível, como Las Meninas,
de Velázquez, A Ronda Noturna, de
Rembrandt, Morte em Veneza, de Thomas
Mann, o Fausto, de Goethe e a sublime
teia de Arthur Bispo do Rosário exemplificam essa universalidade transformadora
do conhecimento através de objetos representativos, meros signos da liberdade e
da autonomia.
A qualidade estética no homem é aquele bem novo que lhe permite a
auto-determinação, porque lhe restitui a liberdade de fazer de si instrumento
em evolução constante. Ser estético é superar a contingência dada pela natureza
das coisas e intoxicar de cada um os rastros, com a segunda criadora do ser; a
beleza. Se para Kant a beleza está
relacionada à ação teórica, à subjetividade, para Schiller ela se faz ato,
relaciona-se à ação prática, por isso pode-se falar de uma Estética Objetiva. O
homem físico deve tender ao moral, passando pelo estético. Para isso a condição
ideal do cidadão é a de munir-se de vontade, buscando em si a superação das
paixões que obnubilam os julgamentos e do homem não é outra a tarefa senão a de
emitir juízos. Quando Sartre afirma que o homem está condenado à própria
liberdade, fala como um antagonista pós-schilleriano, que acaba por confirmar
este último. Baseia-se no árduo castigo das escolhas que, fatalmente,
pressupõem um abandono. Se tenho isso, não posso ter aquilo, reza a leitura
rasa do pensador francês. Para Schiller,
ser estético é fazer realizar em si e no
coletivo a própria natureza do homem que é o apetite pela liberdade, onde
reside a justeza e o divino do caráter humano, ainda que das escolhas
sobrevenha o abandono. Tanto no sujeito quanto na cultura, a liberdade é um
ideal a ser conquistado pela razão e fruído. Na Carta VII, Schiller discute a
liberdade sob a égide do comportamento e do caráter alegando que onde o homem natural abusa de seu arbítrio
da maneira mais desregrada, mal se lhe pode mostrar sua liberdade; onde o homem
artificial quase não usa a sua liberdade, não se lhe pode tomar o arbítrio (§
2). O problema da liberdade, chave do sistema de Kant, vem da idéia cosmológica de uma absoluta espontaneidade,
resultante da elevação da categoria de causalidade à da incondicionalidade.[1] Kant
distingue dessa liberdade transcendental e que é a causalidade absolutamente
pensada, a liberdade prática que é autonomia da vontade. Toma a razão como
pressuposto da liberdade e tem esta como causa prática no homem, uma vez que
transformadora para o aprimoramento e
dotada de um caráter inteligível e capaz de dar ao homem a lei do seu agir.[2]
Mas a liberdade é anterior ao homem e está impressa no mundo como força
promotora do aperfeiçoamento da máquina do universo que tem em seus desígnios o
acaso. Diferente é a liberdade experimentada pelo homem: um efeito só possível
no que Schiller determina como homem in
totum. Entende que esse homem é o que já desenvolveu seus dois impulsos
fundamentais (§ 1) [3].
Na idéia de desenvolvimento está o
aspecto temporal de cada um, tanto no homem individual quanto em toda a
humanidade. Depreende-se que o percurso para a liberdade está prefigurado na
força mobilizadora da vontade sintonizada com
a harmonia desses impulsos [4]. Na
possibilidade de sua humanidade plena, o homem está por princípio determinado
pelo desequilíbrio natural entre esses impulsos e, embora sendo o domínio da
razão a sua maior conquista, está ainda sujeito à prevalência do sensível
porque a condição humana é a da contradição. Nos períodos da vida em que não
desenvolveu por completo sua liberdade (por isso está temporalidade e pode
evoluir) é um poder tornar-se pessoa
porque ainda determinado pelas sensações. Antropologicamente o homem é,
primeiro, sensível porque antes de ter todos os recursos da razão
desenvolvidos, vive sob a primazia das leis dos sentidos. Experimenta, sente,
responde fisicamente. A razão absoluta está nele, carecendo do trabalho
constante para o amadurecimento e nisso a educação, seja pela imitação, seja
pela construção no aprender, atua e desenvolve o papel constituidor do caráter.
Esta é a concepção estética de Schiller, uma teoria de fases evolutivas, na
qual a beleza não é objeto da experiência sensualizante e agradável aos
sentidos apenas, com também não é construída somente pela razão porque o
sensível e o racional devem estar postos em relação de equilíbrio harmônico no
sujeito livre e este em relação de homeostase com os fenômenos. Exemplo
concreto é dado no § 4 da Carta XX quando sustenta:
Todas as coisas que
de algum modo possam ocorrer no fenômeno são pensáveis sob quatro relações
diferentes. Uma coisa pode referir-se imediatamente a nosso estado sensível
(nossa existência e bem-estar); esta é sua
índole física. Ela pode, também, referir-se a nosso entendimento,
possibilitando-nos conhecimento: esta é sua índole lógica. Ela pode, ainda referir-se a nossa vontade e ser
considerada como objeto de escolha para um ser racional: esta é sua índole moral. Ou, finalmente, ela pode
referir-se ao todo de nossas diversas
faculdades sem ser objeto determinado para nenhuma isolada entre elas: esta é
sua índole estética. Um homem pode
ser-nos agradável por sua solicitude; pode, pelo diálogo dar-nos o que pensar,
pode incutir respeito pelo seu caráter; enfim, independentemente de tudo e sem
que tomemos em consideração alguma lei ou fim, ele pode aprazer-nos na mera
contemplação e apenas por seu modo de aparecer. Nessa última qualidade
julgamo-lo esteticamente. Existe, assim, uma educação para a saúde, uma
educação do pensamento, uma educação para a moralidade, uma educação para o
gosto e a beleza. [5]
A semelhança com as quatro fases de Aristóteles é clara,
um vez que para o estagirita os objetos do mundo compreendem quatro causas: a material, a eficiente, a final e a formal. A partir do objeto (causa material) Schiller propõe três
possibilidades de leitura ajuizadas pela
mente. Uma vez apresentado o objeto do conhecimento ao sujeito, irrompem os
juízos que são os três pilares constituidores de toda a intelecção do mundo.
Dado o fenômeno, pela Lógica é
reconhecido em sua constituição de materialidade. Sobre ele o sujeito
estabelece juízos de valores, instalando-o na métrica da Moral e, finalmente, pode ser lido em sua totalidade de bem pela Estética. O homem schilleriano é um universo em perene construção, um sujeito renovado
dentro da alteridade do mundo, fonte de renovos e instrumento em busca da
perfeição. Por mais aprisionado que esteja à ignorância é convocado pela sua
natureza racional a sair da imanência para transcender a tudo, tornando-se uma
divindade em si na medida da busca de sua plenitude duradoura. Se o homem não
quer o aprisionamento à natureza apenas, satisfazendo as necessidades básicas roussonianos; a perpetuação, o
descanso e a alimentação, é porque está dotado do livre-arbítrio e este é a
ante-sala do conhecimento verdadeiro, sem a mácula da crença apenas. Conhecer é
o destino do homem, por isso recusa-se a ser apenas natureza. Por isso desafiou
o Criador, porque quer a razão esclarecer os domínios da natureza,
universalizando o que conhece, tornando tudo uma possibilidade de discurso,
porque a linguagem é a substância do pensamento. É preciso indagar, nunca estar
satisfeito com o que se sabe, buscar na ordem da vontade o ilimitado porque a
razão faz habitar na espécie algo indizível que apenas se consegue chamar
pobremente de liberdade. Mas a liberdade existe como potência e deve ser transformada em ato pela razão. Como na semente a primeira está inserida, mas só se
corporifica no ato futuro de ser fruto, dependendo da ação, do cuidado, da
rega. Um fruto que carece da ação transformadora da natureza para que se
perpetue na constância do messidor. Significa, ainda, buscar a generalidade na
medida em que se rompem espaços, abrindo brechas através do motor secreto das
representações com as quais o homem cria universos de beleza inteligente como a
Lógica, a Política, a Metafísica, e a Teologia. Mas também realiza, em seu
lento processo em direção à infinitude, algo em muito inútil, em muito sem
função imediata como a poesia, a música, enfim, a arte dos belos quadros, das
leves esculturas, da leveza da dança.
Toda a arte é libertadora porque desaprisiona, elimina interditos pondo
o sujeito em sua condição divina, fazendo nele existir um continuum utópico porque vai idealisticamernte além do que é
meramente dado. Se a arte é um projeto de infinitude é porque em nada se
enquadra a não ser como relação aprimoradora entre si o artista e o fruidor. É
preciso educar-se esteticamente para que em cada um se garanta a justeza e o
rigor dignificante dos juízos inexoráveis.
O pensador de Marbach pensa a educação de forma contrária a Rousseau (1712/1778) e semelhante a Kant. Ela deve ser um instrumento de construção do sujeito pautado na liberdade da vontade para o aprimorar-se. Mais que isso, deve ser um exercício constante que busca equilibrar os sentidos e a razão, ambos fonte de todo o julgamento realizado pelo sujeito e em desarmonia, com a sujeição de um ao outro. Quando o sentidos impõem-se unilateralmente como determinação da conduta, quando as paixões determinam a ação, a possibilidade de erro nos juízos sobre os fenômenos do mundo é evidente porque o saber empírico apenas, obscurece a razão. Mas só a razão apartada das humanidades sensíveis não dá conta do homem em sua completude, porque aniquila a amorosidade transcendente do caráter. Elimina aquilo que no homem é o repertório de sua própria humanidade; o belo sentimento. Nesse caso, ignorar a amorosidade do outro desfaz toda a beleza que dignifica o homem em seu destino de colocar-se positivamente em todas as suas dimensões de conhecimento no cosmos. Educar-se significa buscar o equilíbrio entre essas duas instâncias antagônicas, fazendo-as plasmar-se em homeostase para que o mundo e seus fenômenos sejam constantemente o palco da serenidade, do equilíbrio e da justeza humana. É como olhar as estrelas à noite e perceber a harmonia do Cosmos, o movimento plástico sereno e firme dos astros, o equilíbrio dos movimentos que se complementam e perpetuam no grande teatro da escuridão. Se a razão e os sentidos constroem a subjetividade, a interioridade humana, que assim o façam tomando-se a bela humanidade como um caminho evolutivo para o ideal da perfeição. O ser schilleriano, portanto, é ético porque se auto-regula dentro de uma verdadeira ciência do comportamento, pondo-se no mundo como motor de uma ética universal em sua plena humanidade. É quando a arte é vista como um caminho educativo sem precedentes. O homem, ele mesmo é o próprio modelo de arte, porque aos olhos de sua humanidade é belo e, consequentemente, bom e verdadeiro. O modelo justifica a assertiva de que a experiência da beleza extingue toda a instabilidade inscrita numa desarmonia interior recorrente, uma vez que a beleza promove a interação livre de todas as forças psíquicas.
Schiller não legou um sistema educacional, de base antropológica, (como o Emílio), que desse conta de uma prática empírica dessa eticidade. Sua reflexão não se esgota no tempo porque é hipótese de uma ética social de matiz clássico com a busca de totalidades na inserção humana no mundo, para ele esquecida quando a poesia separou-se da vida cotidiana. Acredita que a possibilidade de um mundo fundamentado nesses princípios humanizadores pode existir, uma vez que já existiu na história. A Polis de Epicuro, a Metempsicose, ou transmigração das almas platônica, a música das esferas de Pitágoras, a beleza racional da Matemática e a democracia garantida pela Gerúsia ou Conselho dos Anciães foram construções estéticas na metafísica e na convivialidade grega. Se a arte está contaminando toda a ação humana, ela pode ser um princípio ético a todo procedimento, agregando no mundo da diversidade e de fragmentos, um princípio e um fim de beleza totalizadora. Nada mais adequado a todas as épocas, pois todas as épocas e todos os povos, ainda que na dureza da vida primitiva, desenvolveram sistemas de representações artísticas. Podem carecer de uma ciência particular, de uma observação astronômica sistematizada, de uma matemática plena, mas uma arte e formas particulares de crença na sacralidade, nunca lhes faltoui. Por isso a beleza no conhecer. Qualquer ele, e por isso, também, as meigas e fortes palavras proféticas da Carta XXV.
Quando surge a luz no homem, deixa de
haver noite fora dele; quando se faz silêncio nele, a tempestade amaina no mundo,
e as forças conflituosas da natureza encontram repouso em limites duradouros. [6]
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PUGH,
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VAYSSE,
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[1] Vaysse, Jean Marie (1998) Le
Vocabulaire de Kant, Ellipses, Paris, França, p. 32
[2]
Idem
[3]
Schiller, Fridrich von, A Educação Estética do Homem, 1995, Iluminuras, SP, p.
105
[4]
São potências coexistentes na mente (impulso
sensível e impulso formal) e separadas pelo próprio ato humano de se estar inteligentemente no mundo. É pulsão
natural no sujeito e somente nele existe. São as duas possibilidades para se
abarcar o fenômeno, a sensibilidade e a forma racional. A eles Schiller agrega
uma terceira instância; o impulso lúdico, com intermediação estética.
[5]
Idem, pg. 107
[6]
Schiller, Friedrich von, A Educação Estética do Homem, Iluminuras, SP, 1995, p.
130
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