Sem pretextos para a leitura

Franciele da Silva Nascimento 

Introdução 

A internet não é mais uma novidade, e sim uma realidade, e sua utilização em diferentes práticas faz parte do dia a dia das pessoas. Em sala de aula, os professores se deparam com a rejeição à leitura por parte dos alunos e é preciso recorrer a recursos, como a internet, através dos textos digitais, que interessem e que façam parte do cotidiano dos alunos, facilitando e permitindo a leitura não só no ambiente escolar, mas também fora dele. Mas para que o professor acerte na escolha do texto que pretende trabalhar, segundo Marisa Lajolo no seu texto “Texto não é pretexto” publicado no livro A leitura em crise na escola (1993, p. 51-62), é necessário que o professor tenha uma boa relação com o texto que, se não tiver significado para ele, consequentemente, não terá para os alunos. 

Um educador não precisa gostar de todos os tipos de texto, nem ao menos, trabalhar somente com textos agradáveis a ele, mas pode usar a imaginação quando se deparar com textos que atrofiam a sensibilidade do aluno, dando abertura ao texto como espaço de libertação de dogmatismos, pois mesmo com um texto ruim, pode-se fazer um bom trabalho. 

A forma como o texto se apresenta no livro didático contribui para a alienação da prática da leitura, portanto, encontrar maneiras diferentes das tradicionais e das sugeridas pelo livro didátido, para que o texto se torne bom para o aluno, é um jeito de fazer com que os alunos se interessem pelos textos. Mas o que se sabe é que isso, na maioria das vezes, não acontece no momento do trabalho com o texto. O preenchimento de questionários prontos, por exemplo, coloca uma verdade absoluta acerca do texto e acaba inviabilizando a construção de diferentes hipóteses de leitura. 

O texto não deve ser trabalhado somente para explorar questões de gramática e de ocorrências linguísticas ou para aumento de vocabulário. Isso acontece muito com os textos clássicos, considerados pelos alunos como textos chatos. Quando essas questões forem levadas à sala de aula, o professor deve fazer com que o texto seja contextualizado para e pelos alunos evitando que o texto seja violentado. 

Assim, o professor deve situar os educandos na época em que o texto utilizado foi escrito. Da mesma forma, levantar os porquês do uso de determinada linguagem, o limite histórico da norma culta, a relação entre o escrever antigamente e o escrever hoje, enfim, as diferenças entre os dias atuais e os tempos em que a língua ainda era arcaica. 

Ler não é decifrar, mas exige atribuir significado ao texto, relacioná-lo a outros textos significativos quanto ao tema, contexto abordado, etc. Com base nessas ideias de Marisa Lajolo, se sugere analisar o que as novas tecnologias podem proporcionar para a prática da leitura e ensino. 

O aluno deve estar exposto a uma gama variada de textos, não somente de um gênero para que possa identificar e estabelecer semelhanças e diferenças entre os textos e as características de cada um. O professor deve arejar o livro com a presença do artigo de jornal, da crônica, da letra da música, do texto contemporâneo, do texto digital, das opções oferecidas na internet através de inúmeros sites em que, realizando-se uma boa pesquisa, é possível encontrar boas sugestões de trabalhos para a sala de aula, que vão familiarizando o aluno para depois partir para textos mais complexos, estabelecendo, assim, laços mais estreitos entre o aluno e a leitura. 

ANÁLISE 

Para mostrar que podem ser encontradas fontes para estabelecer boa relação com a leitura na internet, analisa-se um site que traz textos literários de Machado de Assis e ainda disponibiliza links que direcionam a outros sites para pesquisas semelhantes. Ao acessar o Portal Domínio Público, biblioteca virtual disponível na rede, que se constitui em referência para professores, alunos, pesquisadores e para a população em geral, encontram-se alguns destaques que podem interessar ao leitor. Entre esses destaques há um link que segue para o site “Machado de Assis: obra completa”. O site é iniciativa do Ministério da Educação para homenagear os 100 anos do falecimento de Machado de Assis. 

O que se quer identificar nesta análise envolve alguns elementos da Semiologia dos Discursos, que considera os enunciados “como marcas efetivas de sujeitos humanos, que se buscam um ao outro, em situação de comunicação.” (PERUZZOLO, 2004, p. 132). Sendo enunciado a manifestação concreta de uma frase, a enuciação, enquanto ato, tem a função de “constituir a manifestação do discurso em forma de texto, isto é, sob a forma de signos e de relações entre signos.” (PERUZZOLO, 2004, p. 143). Busca-se, então, os procedimentos utilizados para constituir o discurso deste projeto em homenagem a Machado, os recursos de persuasão montados, a fim de identificar, através da análise discursiva, os efeitos (pretendidos) de sentidos do discurso, as modalidades do dizer e os efeitos de referencialidade (realidade). O discurso é uma organização situada para além da frase, é orientado, é uma forma de ação e é interativo (há troca no binômio eu-você). Além disso, o discurso é contextualizado e assumido por um sujeito, sempre considerado no bojo de um interdiscurso, pois está sempre e só pode ser entendido dentro de um contexto. “Analisar o discurso é, portanto, determinar as condições de produção do texto, verificando os procedimento utilizados para constituí-lo e os efeitos de sentido fabricados pelos mecanismos trabalhados.” (PERUZZOLO, 2004, p. 155-156). 

Assim, procura-se, operando sobre os elementos da narrativa, reconhecer, primeiramente, os modos de construção de dois sentidos básicos que fazem parte dos efeitos de enunciação: o de proximidade / afastamento (do sujeito em sua fala) e de realidade. Para isso, se considera para análise a seção “Apresentação”, onde é informado o propósito do site como um projeto em homenagem a Machado de Assis, também possibilita distinguir o público alvo que pretende alcançar e se desperta o interesse, a curiosidade ao ser oferecido como uma opção de estímulo à leitura para os alunos. 

Quanto aos efeitos de sentido, o sujeito utiliza o efeito de afastamento (1) por escolher fazer a narrativa em terceira pessoa, construindo um narrador que conta a história. Dá a ilusão de estar longe. Os efeitos de referencialidade (realidade) estão ligados ao procedimento de ancoragem para tornar o sentido mais real, concreto, denotativo, tornar sensível, iconizar, para o leitor ancorar na realidade. Trata-se de ancorar o dito em: pessoas (testemunhos), espaços geográficos conhecidos, números e datas, fatos históricos, fotografias e simulações computacionais. No discurso analisado, pode-se identificar ancoragem do dito em: pessoas (cronologia preparada por Galante de Souza), datas (informações introdutórias sobre a vida e a obra do autor, adaptadas de fontes confiáveis, como a cronologia preparada por Galante de Souza para a Revista do Livro (INL/MEC), em 1958). Além disso, na apresentação é mencionado o conteúdo presente nas seções que se apresentam na página, como “Cronologia”, que fazem referência às datas da história de vida de Machado, e “Bibliografia”, que apresenta os autores pesquisados; a seção “Obra Completa” permite a consulta por gênero e em ordem cronológica das obras de Machado de Assis. Como um recurso adicional, traz o vídeo “Machado de Assis: um mestre na periferia”; a seção “O autor e a obra” disponibiliza textos de autores contemporâneos a Machado e teses e dissertações relativas a Machado e sua obra. As seções “Postagens” e “Na Rede” viabilizam a publicação de mensagem no referido sítio e uma relação de endereços de outras páginas na internet com materiais relacinados a Machado. Tais informações disponíveis no sítio podem ser tratadas como ancoragem, pois apoiam-se em universidade e outros sites já conhecidos e renomados, que dão muita credibilidade: Portal Domínio Público - a biblioteca digital do MEC; Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística (NUPILL), da Universidade Federal de Santa Catarina; TV Escola. 

Em relação às modalidades do dizer, encontra-se a estratégia de distanciamento, pois há uma diferenciação entre enunciador e enunciatário, fundando-se na marcação de uma distância entre esses dois sujeitos. Este distanciamento é classificado como não-pedagógico pelo seu caráter e forma. 

Manifesta-se através de um discurso em que o enunciador não modaliza o que diz; limita-se a produzir afirmações de forma impessoal: não há marcas de interpelação, mas sim recursos produzidos em terceira pessoa, como ocorrem em alguns tipos de reportagens ditas objetivas; tampouco aparecem hierarquizações do universo do saber, há uma justaposição que não classifica ou hierarquiza os temas. (CASALI, 2011). 

Apesar de bastante diversificada, a página, disponível em , não mantém um discurso que se aproxime do leitor, principalmente do leitor mais jovem, o adolescente. Mas seu discurso direciona-se tanto para um público mais adulto, que necessita fontes de informações variadas para desenvolver uma pesquisa de graduação por exemplo, quanto para estudantes mais jovens, que utilizam o site para pesquisas sobre a vida e as obras do autor. Na seção “Obra Completa” já manifestam a intenção de ampliar o acesso da obra de Machado aos estudantes dos diferentes níveis e ao público leitor em geral. Assim, o discurso afastado, o distanciamento não-pedagógico do leitor, é uma estratégia para não limitar ou tornar restrito o público que pretende alcançar. Com estas características, o discurso está adequado para um público bem variado. Segundo Peruzzolo (2004, p. 157), “o sujeito da enunciação faz uso de recursos estratégicos nos modos de dizer para afirmar o seu dito, tendo em vista os efeitos de sentido que deseja produzir.” 

CONCLUSÃO 

Mesmo a internet proporcionando diversificados textos, é importante haver um sentido crítico que oriente a atitude com que o professor e a classe se entregam ao jogo do textual. Todas as atividades escolares aí envolvidas precisam ter sentido, para que o texto conserve e resguarde seu significado maior. A leitura deve basear-se no desejo, pois ninguém gosta de fazer algo que é difícil demais ou sem sentido. As escolhas de textos devem levar em conta o gosto, o desejo, o conhecimento de mundo do aluno e para isso é preciso que o professor conheça as preferências e as leituras já realizadas pelo aluno. 

Uma sugestão para o trabalho com um texto do sítio “Machado de Assis: obra completa”, é para que o professor faça a escolha certa do texto: adequado ao nível da turma e também conhecer que texto pode despertar o interesse, a curiosidade do aluno. O fato de ser um texto digital não implica a adesão imediata do texto por parte do estudante. O vídeo disponível no sítio é uma boa opção para o professor começar abordar o tema relacionado ao autor e posteriormente indicar obras do autor para leitura. Indica-se, também, o site Porta-Curtas que, na seção “Memórias Cinematográficas de Machado de Assis”, contém adaptações de narrativas machadianas, como: Um Apólogo, A Cartomante, Um Homem Célebre e Missa do Galo (http://portacurtas.com.br/recomendados.asp?IdRecomendado=115). 

Com base nas ideias de Marisa Lajolo, se sugere comparar o conto O Caso da Vara, de Machado de Assis, com a narrativa curta Pai contra Mãe, do mesmo autor, e ainda, com a crônica publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888, na qual o escritor enfoca a abolição da escravatura. 

Com a linguagem, não pode haver pressa. Há o texto dos alunos, dos professores e os textos alheios. Todos se tecem de palavras, todos têm seu ritmo. É a partir do texto que cada um, a cada momento, vive a grande aventura. 

As atividades propostas fazem parte do mundo dos alunos, que, assim, podem se interessar mais pelos textos oferecidos à leitura. Passam a trabalhar com aquilo que, antes possivelmente negativo quando trabalhado como pretexto, torna-se mais aceitável. Como afirma Lajolo: 

O texto não é pretexto para nada. Ou melhor, não deve ser. Um texto existe apenas na medida em que constitui ponto de encontro entre dois sujeitos: o que escreve e o que lê; escritor e leitor, reunidos pelo ato radicalmente solidário da leitura, contrapartida do igualmente solitário ato da escritura (1993, p. 57). 

O aluno será, segundo Lajolo, um leitor maduro, ou seja: “ [...] aquele para quem cada nova leitura desloca e altera o significado de tudo o que le já leu, tornando mais profunda sua compreensão dos livros, das gentes e da vida” (1993, p. 53). Por isso tudo, definitivamente, texto não é pretexto. 

REFERÊNCIAS 

CAROL CASALI. Aula II – Discurso e efeitos de sentido. Material em documento de PowerPoint. 2011. 

LAJOLO, Marisa. Texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina (Org). A leitura em crise na escola. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. 

MACHADO DE ASSIS, José Maria. Contos escolhidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 

MACHADO DE ASSIS. Obra completa. Disponível em: . Acesso em: jun. 2011. 

MEMÓRIAS CINEMATOGRÁFICAS DE MACHADO DE ASSIS. Disponível em: . Acesso em: 02 maio 2008. 

NÚCLEO DE PESQUISAS EM INFORMÁTICA, LITERATURA E LINGÜÍSTICA. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2008. 

PORTAL DOMÍNIO PÚBLICO. Disponível em: . Acesso em: 05 mar. 2008. 

PERUZZOLO, Adair Caetano. Elementos de Semiótica da Comunicação: quando aprender é fazer. Bauru, SP: EDUSC, 2004. 

NOTAS

Artigo apresentado no 10º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural. Culturas, leituras e interações: das comunidades orais às redes sociais. 14ª Jornada de Literatura de Passo Fundo, de 23 a 26 de agosto de 2011, UPF, Passo Fundo (RS), Brasil. 

Franciele da Silva Nascimento: Pós-Graduanda em Especialização em Análise do Discurso - O discurso e suas interfaces: arte, comunicação e cultura, na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, URI - Campus de Frederico Wesphalen, Brasil. E-mail: franci.nascimento2021@yahoo.com.br. 

1 - São assinalados, no texto da Apresentação em anexo, de forma diferenciada os efeitos de sentido (sublinhado), as modalidades do dizer (itálico) e os efeitos de referencialidade (negrito).