As civilizações têm como marco inicial a palavra escrita, testemunho mais eloqüente de qualquer cultura. Na antiguidade, bibliotecas foram símbolo do prestígio das cidades que as abrigavam. Zelar por elas era tarefa das mais importantes, atribuída a um segmento nobiliárquico competente. Ainda não se distinguiam os papeis do escriba e do bibliotecário, como os entendemos hoje, mas o fato é que esses profissionais gozavam de alto prestígio e respondiam diretamente ao soberano.
A partir da invenção da prensa móvel por Gutenberg, aumenta exponencialmente o número de exemplares por livro, surgem os jornais, os fascículos, as revistas. Logo, as bibliotecas demandam profissionais especializados, na moderna figura do bibliotecário que desenvolverá sistemas mais eficazes de catalogação, disposição, conservação etc.
No Brasil, este marco foi estabelecido pelo engenheiro, bibliotecário, escritor e poeta Manuel Bastos Tigre. A importância de sua contribuição é reconhecida também pela legislação que elevou a data de seu nascimento, 12 de março, a Dia do Bibliotecário no Brasil.
Em 1906, Bastos Tigre foi para os EUA e conheceu Melvil Dewey que já instituira o Sistema de Classificação Decimal. A partir de 1945, trabalhou na Biblioteca Nacional e depois assumiu a direção da Biblioteca Central da Universidade do Brasil.
Fiéis ao espírito pioneiro de seu patrono, e aos inúmeros serviços que prestou ao país e ao livro, bibliotecários brasileiros clamam nesta data pelo reconhecimento social que, todavia, ainda não lhes faz justiça plena. De fato, predomina, entre nós, muito amadorismo na questão. Enquanto o bibliotecário é visto como um luxo dispensável, não raro outros profissionais são chamados a quebrar o galho, comprometendo-se, desta forma, a conservação de acervos importantes; sua disposição racional e acessibilidade.
Nas escolas a situação é de calamidade pública. Muitas sequer possuem bibliotecas e, não raro, é algum professor que se encarrega de organizar o acervo. Em outras, os livros se atulham sob escadas, corredores ou salas inadequadas. O impacto é extremamente negativo na formação dos alunos. Na idade em que a leitura precisa ser valorizada para que seu hábito se cristalize, o estudante vê livros tratados como entulho. Nada o convencerá mais tarde do contrário: o livro permanecerá entulho e sua leitura um ato despido de sentido.
Quanto ao ensino superior, as informações não são melhores. Boa parte dos grandes complexos educacionais privados costuma adquirir muitos livros. Mas, quantos? Uma centena de exemplares pode impressionar o leigo, mas está longe da suficiência se o número de alunos por curso passa da casa do milhar. Se isso é válido para uma política hipócrita em relação ao livro, imaginemos as proporções bibliotecário/usuário nessas instituições. Seu número é quase sempre insuficiente, como são precárias suas condições de trabalho.
No momento em que governo e sociedade no Brasil se dão conta de nossos vergonhosos níveis de leitura e se mobilizam para superá-los através de programas de incentivo, não é mais possível aceitarmos esses descalabros. É o momento de convocar-se o bibliotecário para, ao lado do educador, do escritor, do editor e outros, traçarem os rumos de uma política eficaz e duradoura para o livro e a biblioteca.
Entre os novos desafios o maior vem da tecnologia da informação, que cresce exponencialmente. Ajudar o pesquisador, o profissional e o cidadão a pinçar, dentre uma infinidade de informações, aquelas que realmente lhe interessam e são confiáveis é apenas a ponta do iceberg. De fato, a possibilidade de acesso mais democrático à informação, à literatura, à cultura em geral não permitirá que o bibliotecário se aliene em relação a desafios que trazem em seu bojo a histórica oportunidade de aliança entre cultura e consciência crítica; entre informação e emancipação.
Inicialmente, ele terá que interagir em equipes multidisciplinares, em processos de mútuo aprendizado. Aos poucos, sua formação específica haverá de impor-se naturalmente como peça-chave de funções socialmente tão relevantes. O bibliotecário se mostrará, assim, mais indispensável. E, quando isso ocorrer, a forma como este profissional vier a ser tratado por empregadores de quaisquer tipos, pela sociedade e pelo legislador, será o indicador do grau de civilização que poderemos projetar para nós mesmos.
VERA LUCIA STEFANOV, 56, bibliotecária documentalista, é presidente do SinBiesp (Sindicato dos Bibliotecários do Estado de São Paulo – presidência@sinbiesp.org.br
LEVI BUCALEM FERRARI, 63, cientista político, é ex-presidente da UBE (União Brasileira de Escritores).
(Artigo publicado na Folha de São Paulo em 12 de março de 2009).
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