quinta-feira, 14 de junho de 2012

A construção de conhecimentos na formação do profissional de letras

Um estudo sobre o uso de metáforas no discurso científico[1]

Karine Correia dos Santos de Oliveira[2]


Palavras-chave: metáfora; representações sociais; formação do professor. 


Resumo 

Este artigo busca, a partir de princípios orientados por uma perspectiva sociointeracionista do discurso (BAKHTIN, 1979) e com base nos estudos de Lakoff e Johnson (2002) sobre a metáfora, (i) refletir sobre as representações sociais (MOSCOVICI, 2003) de alunos ingressantes no curso de Letras, acerca de noções centrais em sua formação – texto, leitura e produção de textos – (ii), bem como flagrar pistas do processo de redimensionamento dessas noções, ao longo do desenvolvimento do primeiro semestre do curso. Interessa, sobretudo, examinar os recursos metafóricos de que os sujeitos se valem para discorrer sobre as noções em foco. 

1 Introdução 

Partindo do pressuposto de que a fase inicial da formação universitária coloca o estudante frente a um universo discursivo que não lhe é próprio, este artigo procura descrever e analisar as representações sociais iniciais, subjacentes aos discursos sobre texto, leitura e produção de textos – conceitos/noções fundamentais na formação inicial do aluno de licenciatura em Letras, tentando flagrar possíveis evidências de manutenção e mudanças das representações sociais iniciais e as relações destas com os conceitos científicos, estudados durante o primeiro semestre do curso de Letras. 

A geração dos dados da pesquisa teve início logo na primeira semana de ingresso dos estudantes[3] à universidade, quando estes foram convidados a responder a um questionário social[4] que foi aplicado na tentativa de mapear as suas práticas de leitura e escrita. No mesmo dia em que foi aplicado o questionário social, foi realizada uma entrevista semi-estruturada com perguntas destinadas a colher as concepções iniciais de cada entrevistado sobre as noções de interesse da investigação. Essa mesma entrevista foi também realizada, no final do primeiro período, com os mesmos sujeitos, a fim de perceber possíveis regularidades ou variações nas representações sociais, analisadas a partir dos dados colhidos na primeira semana de aula dos universitários. 

2 Considerações teóricas 

Segundo Zamponi (2005) a mudança no perfil dos estudantes universitários no decorrer da história ocorreu, em grande parte, influenciada por grandes alterações na estrutura das sociedades. O processo de democratização, a globalização e as inovações tecnológicas são apontados pela autora como alguns dos fatores que possibilitaram o aumento do acesso ao discurso científico. Essa realidade também influenciou os programas de pesquisa que passaram a indicar a renovação da formação do professor como uma das principais medidas necessárias para atender um novo perfil de aluno. 

Ao se referir à formação do professor de língua materna, Kleiman (2001) defende que os saberes pré-construídos pelo estudante sobre a linguagem não podem ser desconsiderados, no processo de ensino/aprendizagem deste. Essa concepção se vincula ao pressuposto de que a aprendizagem do sujeito não pode ser dissociada de suas experiências sociais e cognitivas (cf. BAKHTIN, 1979; ASSIS, MATENCIO e SILVA, 2001; VYGOTSKY, 1991). 

Na tentativa de compreender a relação estabelecida entre os saberes pré-construídos e o processo de formação inicial do professor de língua materna o conceito de representações sociais Moscovici (2000) constitui uma discussão importante a ser desenvolvida neste artigo. Moscovici (2000) adota o pressuposto de que as representações sociais são grandes estruturas organizadoras do saber cotidiano que englobam crenças, valores e conhecimentos sociais, partilhados pelos sujeitos ou por grupos. que estariam impregnados no pensamento humano. 

A metáfora neste trabalho é compreendida como estratégia textual-discursiva de construção de objetos de discurso, uma das principais estratégias de progressão referencial ou atividade discursiva (cf. KOCH, 2002). 

Também adotamos a concepção de metáfora proposta por Lakoff e Johnson (2002). Esses autores propõem que a metáfora faz parte da linguagem cotidiana e estrutura o modo de conceber a realidade. Através da metáfora o sujeito se ancora em características de uma situação já vivenciada, para atuar em um contexto desconhecido. 

A compreensão de conceitos abstratos como, por exemplo, amor e medo, segundo Lakoff e Johnson (2002), só é possível pela associação de algo existente no mundo físico àquilo que está no plano mental. Em outras palavras, é o processamento metafórico que possibilita relacionar amor a fogo, medo a escuro etc. 

3 Análise dos dados 

Conforme já anunciado neste artigo, pretendemos (i) refletir sobre as representações sociais sobre texto, leitura e produção de textos, construídas antes e depois do ingresso dos alunos de Letras à universidade tentando flagrar pistas do processo de redimensionamento dessas noções, ao longo do desenvolvimento do primeiro semestre do curso. Para efeitos deste artigo selecionamos a resposta apresentada pelo Sujeito E1 à pergunta: O que é um bom texto para você, nos dois momentos da formação do professor de língua materna focalizados na pesquisa.? 

Dados da entrevista realizada na primeira semana de ingresso de E1 à Universidade. 

Pesquisadora: “O que é um bom texto para você?” 

Sujeito E1: “Um bom texto… é... na minha opinião... é um texto que tem uma introdução de um assunto… um desenvolvimento e uma argumentação de uma opinião que o autor esteja colocando”. 

Note-se que, quando um bom texto é definido como aquele que “tem introdução de um assunto, um desenvolvimento e uma argumentação de uma opinião que o autor esteja colocando”, fica indiciada uma crença de que todo texto deve apresentar uma organização preestabelecida para ser bom. Nessa concepção, um bom leitor necessitaria somente reconhecer tal estrutura organizacional para fazer uma boa leitura. Ao final da resposta, a ação do autor na atividade de produção de textos é expressa através da expressão metafórica “colocando”. 

Se o autor apenas coloca suas idéias no papel um bom texto é uma materialização de idéias, segundo uma dada organização prévia ou segundo a aprendizagem de uma estrutura ideal, por apresentar introdução, desenvolvimento e conclusão. A imagem de um bom texto como aquele que deve apresentar uma estrutura fixa ainda parece estabelecer relação à experiência com textos escolares e de preparação para o vestibular, em que existe uma concepção de que uma redação só deve ser considerada bem escrita, quando ela apresenta a aprendizagem técnica de um modelo. 

Segue-se a resposta do mesmo sujeito à mesma pergunta, no final do primeiro semestre. 

Dados da entrevista realizada no final do primeiro período do curso com o mesmo sujeito. 

Pesquisadora: “O que é um bom texto para você?” 

Sujeito E1: “Na minha opinião… um bom texto é aquele que não se entrega fácil, ou seja, que tenha... no ponto de vista literário que eu estou falando, que tenha é... uma subjetividade que agente tem que ter uma inferência em alcançá-la… agora … tem vários tipos de textos … tem texto de artigo … tem o texto informativo… narrativo… não… literário… e ai... um bom texto de artigo é aquele que informa… que desenvolve um argumento e conclui uma opinião… um bom texto é isso… o literário é o que tem uma subjetividade e que não se entrega fácil… um bom texto na forma de artigo é aquele que informa bem e que argumenta bem.” 

O trecho “desenvolve um argumento e conclui uma opinião” parece retomar as representações sociais iniciais desse sujeito na entrevista realizada, logo no seu ingresso à universidade, quando este definiu todo bom texto como aquele que “Tem introdução de um assunto, um desenvolvimento e uma argumentação de uma opinião que o autor esteja colocando”. 

No trecho “no ponto de vista literário que eu estou falando” há uma tentativa de definição e, ao mesmo tempo, de distinção do gênero literário de outros gêneros textuais, relacionados pelo entrevistado como: artigo, informativo, narrativo, não literário. Convém salientar que a inclusão do gênero “artigo” demonstra a apropriação de uma linguagem que é própria do discurso científico. Em “Agora, tem vários tipos de textos”, flagra-se uma preocupação com a demonstração do conhecimento sobre a existência de vários gêneros textuais, o que dialoga com o projeto de ensino da universidade que prioriza o estudo do funcionamento e significação de um texto e não de sua estrutura. A metáfora “não se entrega fácil”, é utilizada tanto para definir um bom texto como para definir o texto literário. 

4 Conclusões 

As conclusões a respeito das representações sociais de bom texto do Sujeito E1, analisadas e comparadas em dois momentos de formação, demonstraram traços das representações sociais que se materializaram, ora apresentando um movimento de mudança – quando ele afirma existir vários “tipos de textos” – , ora apresentando movimentos de manutenção das representações sociais iniciais – quando ele tenta definir todo “bom artigo” como aquele “que informa bem e argumenta bem” –, o que revela que o processo de integração do professor de língua materna, em formação inicial , ao discurso científico ocorre por meio de uma correlação entre os conhecimentos já apropriados e os novos saberes construídos na universidade. Outro fator importante é a presença das metáforas “colocar idéias” e “não se entrega fácil” o que parece revelar uma imagem de produção textual e leituras românticas, literárias. Como se produzir um texto fosse materializar idéias prontas e acabadas que devem ser de difícil compreensão, para serem decifradas por um bom leitor. 

Referências 

ASSIS, Juliana A. MATENCIO, Maria de Lourdes e SILVA, Jane Quintiliano. G. Formação inicial e letramento do professor: uma proposta em implantação. In: KLEIMAN, A B. (org.) A formação do professor: perspectivas da Lingüística Aplicada: Mercado de Letras, 2001. 
BAKHTIN, M. M; VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979. 
KLEIMAN, A B. (org.) A formação do professor: perspectivas da linguística aplicada. Campinas: Mercado das Letras, 2001. 
KOCH, Ingedore Villaça. Referenciação e orientação argumentativa. In: KOCH, I.V., MORATO, E. M. e BENTES, A. C. (Orgs.). Referenciação e Discurso. São Paulo: Contexto, p.33-52, 2005. 
LAKOFF, G. e JOHNSON, M. (1980). Metaphors we live by. Chicago, The University of Chicago Press Trad. Bras. De M. Zanotto e V. Maluf, Metáforas da vida cotidiana. Campinas, Educ/Mercado de Letras, 2002. 
MOSCOVICI, Serge, Representações sociais: Investigações em psicologia social. Rio de Janeiro, Vozes, 2003. 
VIGOTSKY, Lev S, Pensamento e Linguagem. Tradução Jeferson Camargo. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1991. 
ZAMPONI, G. Estratégias de construção da referência no gênero de popularização da ciência. In: KOCH, I. V., MORATO, E. M. e BENTES, A. C. (Orgs.). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, p. 169-198, 2005. 

[1] A pesquisa de iniciação científica que deu origem ao presente artigo foi financiada pelo FIP/PUC Minas 2007/2479-S2, de 01/09/2007 a 31/08/2008, sob orientação da Profª Drª Juliana Alves Assis. 
[2] Atualmente aluna do 6º. Período do curso de Letras da PUC Minas do São Gabriel; vinculada ao grupo de pesquisa Leitura, produção de textos e construção de conhecimento, LePTeCCo, coordenado pela Profª Drª Maria de Lourdes Meirelles Matencio. Endereço eletrônico: karineletras@yahoo.com.br 
[3] A pesquisa contou com sete alunos do primeiro período do curso de Letras de uma Universidade Mineira como informantes. 
[4] O questionário social referido foi elaborado pelo grupo de pesquisa Leitura, produção de textos e construção de conhecimentos, coordenado por Maria de Lourdes Meirelles Matencio.

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