domingo, 22 de abril de 2012

Resenha do livro Asno de Ouro

São Paulo, 12 de julho de 1965 

Senhora Ruth Guimarães. 

Desde que li sua magistral tradução do “Asno de Ouro” De Apuleio, acalentava o desejo de resenhar seu trabalho na Revista de Letras da Faculdade, onde tenho a honra de reger a Cadeira de Língua e Literatura Latina. 

Cotejadas as traduções nos idiomas ao eu alcance, constatei sua honestidade intelectual, pelo que empreendi a resenha com aquele estado de alma que seu trabalho mereceu. E o fiz com tanto mais ardor quanto mais pobres e superficiais tem sido as lacônicas resenhas que um ou outro crítico literário lhe tem feito. Fato, aliás, compreensivo, caso os seus autores não conheçam profundamente a língua latina. 

Sua obra merece mais do que o distantismo de uma crítica eventualmente encomendada pelas Casas Editoras. 

Intentei assim realizar uma resenha criteriosa e objetiva porque julguei que seu trabalho não poderia ficar à margem dos seus reais méritos. 

Acolha, pois, minha crítica como prova de consideração e apreço, lamentando não poder contá-la nas lides de um corpo docente universitário. 

Com respeito e profunda deferência, subscrevo-me 

Dr. Enio Aloisio Fonda 

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis – SP (EFS) 


Resenha: APULEIO – O Asno de Ouro. Introdução, tradução e notas de RUTH GUIMARÃES. São Paulo, Editora Cultrix, 1963, 235 p. 

As letras latinas legaram-nos sob o tríplice e tradicional título Lúcio, Metamorfoses, Burro ou Asno de Ouro um dos romances mais curiosos, da autoria de Apuleio de Madaura, cujo encanto principal repousa, ao que parece, na sua composição. Apesar da sua antiguidade, o livro do madaurense continua extraordinariamente vivo e encantador. A parte mais extensa (8 livros) coincide na matéria com outro romance, atribuído a Luciano, escrito em grego, e também intitulado Lúcio. 

O romance de Apuleio é uma coleção de novelas, coligidas sob a forma de extensa narração do tipo do Satiricon de Petrônio, onde são narradas as façanhas de um certo Lúcio, transformado por magia em burro e finalmente levado à primitiva semelhança humana meses depois, quando devora uma grinalda de rosas consagradas à deusa Ísis. Ao argumento principal se juntam muitas outras aventuras, ora trágicas e austeras, ora cômicas e mundanas, ora fesceninas e devotas, oras sentimentais e líricas, mas sempre aventurosas. O último livro (XI) narra a iniciação do protagonista nos Mistérios de Ísis; é, por ventura, a fonte mais abundante de que dispomos para o conhecimento desse culto famoso. Enfim, na extensão de dois livros (parte do IV e do VI e todo o livro V) dá-nos Apuleio o único relato do mito de Eros e Payche. 

Na composição do Asno de Ouro tem incidido os mais diversos juízos críticos, prevalecendo, todavia, o que resulta da composição das versões de Apuleio e Luciano. Neste caso, a opinião da crítica, tanto desfavorece o escritor latino, censurando-o de haver desfigurado a fábula com impertinente misticismo, quanto louva o escritor grego porque soube convertê-la em deliciosa sátira dos costumes da sociedade antiga. 

Ao lermos o Lúcio latino, compreendemos que dificilmente se possa harmonizar o jeito grotesco das primeiras páginas com a solenidade hierática das últimas. Compreendemos, portanto, a censura que resulta da comparação com o Lúcio grego, onde a tonalidade humorística se mantém da primeira à última página, e que quanto mais se assemelham as aventuras do asno, paralelamente desenvolvidas nos dois romances, tanto mais díspares se nos afiguram o mito de Psique e a iniciação isíaca, de modo que no romance de Apuleio chegarão estes episódios a ser considerados como supérfluos e até artificiais e artificiosos. Sê-lo-iam, de fato, se o fito do escritor latino coincidisse com o do escritor grego; mas não se pode crer que Apuleio pretendesse apenas divertir os leitores. Correndo embora o risco de exceder o autêntico significado do romance, devemos presumir que as deficiências estruturais ocultam o propósito coesivo daquelas suas partes heterogêneas, e que sendo assim, o problema literário converte-se num problema fenomenológico. 

Luciano, ou outro que seja o autor de Lúcio grego, explorou somente o lado ridículo de um sortilégio malogrado e das subseqüentes aventuras de um mago aprendiz; mas o autor do Lúcio latino quis trazer à tona um dos abismais enigmas do ser. Os confins do cômico e do trágico, do riso e das lágrimas, da vida e da morte só se fixam no quotidiano. Mas o lado da “história” ficou sinalado no Asno de Ouro pelo mito de Amor e Psique: Lúcio e Psique, ambos vítimas da curiosidade e da ignorância, da ingênua aspiração humana ao “alargamento” e “aprofundamento” do horizonte natural, percorrem juntos trajetórias paralelas do Destino. 

A característica mais notável desse livro esquisito é a espontaneidade de um estilo vivacíssimo, harmônico e adaptado aos tipos dos diversos episódios. Seu autor, como a sua época, é cheio de contraste e contradições: sério e frívolo, devoto e libertino ao mesmo tempo, e grande apreciador dos jogos de palavras, custosos para se traduzirem. 

O leitor encontrava até bem pouco tempo o romance do ilustre africano de Madaura na única tradução de Francisco Antonio de Campos, Barão de Vila-Nova de Fóscoa, sob o título Burro de Ouro publicada anonimamente, em 1847, em Lisboa, e que escrevera quando homiziado por motivos políticos. Era, salvo grave erro do resenhista, a primeira tradução em vernáculo do romance apuleiano até o momento em que uma nova e magnífica tradução d’O Asno de Ouro veio surpreender de certa forma os amantes das letras latinas no Brasil. De fato, traduções de textos clássicos já não se faziam mais no Brasil desde que duas editoras, Atena e Cultura, tentaram, debalde, há alguns lustros, despertar o interesse pelas obras imortais dos mais eminentes escritores latinos. 

O romance de Apuleio lançado pela Editora Cultrix em tradução da conhecidíssima professora Ruth Guimarães é, indubitavelmente, um livro frívolo. Mas não é minha intenção enfrentar aqui a questão da moral na arte literária, nem pretendo demorar-me na definição daquilo que nas belas letras seja pornográfico, porque defendo a opinião de que se devam publicar obras de arte e de pensamento cuja excelência seja tal que consigam resistir ao tempo e que se presuma continuem a resistir. 

Está fora de dúvida que o romance do madaurense constitua, ainda hoje, uma notável e interessante obra de arte, porque, não se sentisse a necessidade presente de dar no Brasil divulgação em vernáculo de uma obra como esta, teríamos vastas provas nas inúmeras traduções que dela se fizeram e se fazem repetidamente nas principais línguas européias. 

Ruth Guimarães veio assim restabelecer em nossa terra o louvável empreendimento de traduzir páginas de literatura que inegavelmente perfazem a criação romanesca mais amena, intercalada com o erótico-fantastico e sensual-místico, e que junto com o Burro de Luciano, obra escrita em língua grega, e o Satiricon do romano Petrônio, representa para a crítica literária da atualidade o mais antigo modelo desta modalidade literária na longa história do romance universal. 

Escusar-me-ia em debater os problemas que a tradutora brasileira, sem dúvida, terá encontrado ao longo das páginas de Apuleio para reproduzi-las em linguagem moderna, mas, como poucos leitores talvez conheçam a espinhosa arte de traduzir, dificilmente distinguiriam os méritos ou os defeitos que a tradução duma obra clássica possa ter, caso não se lhes apresentassem os óbices que o romance de Apuleio oferece até ao mais exímio latinista. 

Na tradução de Ruth Guimarães encontrará o leitor não só uma narrativa de amor como também uma “história” romanceada. Encontrá-la-á com o vigor que só a proximidade da fonte proporciona, e sem as dificuldades do original latino. 

Foi árdua a missão da tradutora, porque a linguagem, a fraseologia e o estilo de Apuleio precisam de luzes exteriores para serem traduzidos e retransmitidos em sua plenitude original. Mas Ruth Guimarães soube refundir isso tudo e cristalizar o trinômio com uma interpretação genuína que reflete os sinais expressivos nos quais o romance apuleiano se atua. 

Palavras obsoletas e até ousadamente inventadas; arcaísmos, vulgarismos, diminutivos usados em profusão; circunlocuções por meio de abstratos; amplificação de adjetivos; aliterações, assonâncias e rimas; longa série de termos morfológica e harmonicamente paralelos; complexa articulação de fraseados, empolação, estilo desigual e barroco: esses são em geral os defeitos que os críticos atribuem ao original latino. Mas apesar disso reconhecem-lhe, contudo, virtudes compensatórias: parte descritiva de grande efeito, alcançado na busca e obtenção desejada pela riqueza de palavras que traduzem vivíssimo colorido, a luz que refletem certas frases, a agudeza surpreendente de certas expressões. 

Como se acaba de ver, defeitos e méritos estão de tal modo fundidos e amalgamados entre si que com fantasia quase oriental do conteúdo resultou dessa geminação um “todo” atraente, um “conjunto” genial e grandioso. 

A rigor, numa tradução deveriam se reproduzir inclusive os defeitos da obra, porque os defeitos e os próprios erros materiais fazem parte do conjunto estético duma composição literária e constituem sua própria característica; suprimi-los, pois, mesmo por juízo crítico, significaria mutilar, deformar, trair substancialmente o espírito integral do texto. Vê-se quão impossível seria pretender que a tradutora tivesse alcançado a meta no caso presente. Ricas em demasia são as criações léxicas de Apuleio para que a tradutora as reproduzisse ad litteram em condições filológicas bem diversas, e com faculdades emotivas e intelectuais díspares. 

Outro problema era a superabundância dos diminutivos que Ruth Guimarães soube resolver graças à riqueza e variedade das modalidades que a língua portuguesa oferece para produzir sensação idêntica à da pretendida no original. Compreensível é também a questão dos arcaísmos, e evidente a impotência da vernaculização em suas precisões léxicas das longas séries de termos morfológica e fonicamente paralelos e que se enquadram na categoria das aliterações, rimas e assonâncias; versos intercalados e fórmulas propiciatórias; os carmina e cantamina, e as palavras taumatúrgicas da arte mágica, tão difíceis enfiem de se conciliarem com as exigências do gosto moderno. 

Não fique, por ultimo, inobservado o insolúvel problema das cláusulas métricas com que os escritores latinos soíam fechar os períodos e às quais Apuleio consagrara toda a sua arte. Por ser isso propriedade “toda latina”, compreende-se a virtual impossibilidade de reproduzi-la. 

O que mais importava na presente tradução era a tonalidade original do texto latino em nada traída por Ruth Guimarães, porque Apuleio, logo na introdução diz: Lector laetaberis. A tradutora conseguiu-a através de um estilo puro, simples e fluente e, no limite do possível, correspondendo sempre à forma expressiva do original, sem contudo ater-se demasiadamente à letra, mas ao seu espírito. 

Com esta tradução, a palavra do escritor antigo veio até nós na manifestação escrita com bom gosto e senso e na disciplina mental e formal exigida de um tradutor que deseje tonar moderna uma obra antiga e clássica. 

Só quem conhece Apuleio no texto original do romance poderá sentir e perceber de perto as qualidades excepcionais desta tradução e honrar a infatigável Ruth Guimarães não só com a leitura, mas sobretudo com o apreço justo e merecido da obra que traduziu; os demais poderão, quando muito, gostar ou não do conteúdo do romance, sem jamais ver nele o intrincado problema que uma obra da Antiguidade Clássica como esta constitui para quem, como ela, se arrojou à uma tarefa que considero das mais árduas e difíceis. 

Esta resenha, à qual arrogo todas as limitações e deficiências humanas, seja para a tradutora o preito de gratidão, reconhecimento e apreço de um simples homem de letras, como também de estímulo para novos empreendimentos. 

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