domingo, 22 de abril de 2012

Tradições

Ruth Guimarães


“Lembra-te, homem, que és pó e em pó te tornarás, mas lembra-te também que és luz e luz tornarás a ser, porque o pó e a luz nasceram no mesmo dia e da mesma semente”. (O que não sei se é verdade, ninguém sabe, mas soa bem). 

Os santos se recolheram silenciosamente aos seus nichos e ali ficaram à espera de nova oportunidade. Não serão chamados tão cedo, uma peste está fora de cogitação devido às providências dos serviços de Higiene. Quando cai uma bomba atômica, não dá tempo de chamar. Tomar cinzas virou uma coisa tão fora de moda! 

A civilização está mudando demasiadamente depressa, amadurecendo, e não podemos apanhar com fidelidade o seu novo sentido. É como esses frutos temporões, sazonados com muito sol. Bonitos são, e nocivos. Frutos envenenados de bela casca brilhante, são até muito saborosos ao paladar afeito às dádivas levemente corrompidas da nossa cultura. Quem sabe lá o que se esconde na polpa macia e cheirosa? Quem sabe lá o que resulta de provar um fruto desses? 

Com todas essas alterações, os pobres dos santos se desatualizaram, se é que essa palavra existe. Santo Antonio ficou imortalizado nas palavras de Vieira que lhe relembrou o sermão aos peixes. O velho e profano Vieira. Demais servia à esperança das moças casadoiras (o padroeiro das velhas é São Gonçalo) e a sua própria função não deixa que o abandonem. A trezena das terças-feiras, na igreja do Patriarca é testemunha; mas os outros santos, que tristeza! Quem mais os chama? Quem se lembra de Santa Bárbara? Quem faz promessas a Santa Luzia? A Santa Luzia que passou por aqui sem cavalinho e comendo capim (o cavalo evidentemente). Senhoras de mais de 40 não desanimeis, primeiro porque a vida realmente começa aos 40, segundo porque São Gonçalo continua dispensando milagres. 

Conta-se de certa senhorita que depois de muitas rezas para Santo Antonio tinha já se passado para São Gonçalo, mas este se fazia de surdo a seus apelos e ela já estava perdendo a paciência. Meio cansada, meio desiludida, meio conformada. Estava viva, que diacho! E então num acesso de cólera e impávida, arrastou consigo o santo ofendido. Não arrumar noivo nenhum e ela ficar solteirona para sempre, que leve a breca! Mandou a imagem do santo pela janela. 

E os três gritos e três pulinhos a São Longuinho, era para encontrar o perdido? E o farelo de pão a Santa Clara, para fazer voltar o sol? E a palha benta queimada em dias de tempestade? E os pedidos absurdos a Santa Rita dos Impossíveis? E o jantar oferecido aos cachorros em honra de São Roque, que cura o mardelanço? E a invocação a São Bento contra mordedura de cobra? 

Todos nós sabemos que a igreja é a maior de todas as forças conservadoras. Pois ainda é menos conservadora do que o povo. Assim é que, enquanto ela aceita e modifica uma série de coisas, o povo ainda se empedra em tradições não raro milenares, não raro absurdas, pois perderam há muito tempo sua razão de ser – porém atuantes, receitas de vida para uma parte sensível da multidão, e válidas, como nada mais poderia fazê-las a não ser o tempo. Assim a ausência do hábito nos religiosos, trocado por roupa mais cômoda, que o próprio religioso considera útil e funcional, facilitando-lhes em muito a tarefa, é raro alguém aceitar isso com naturalidade. As mulheres, vestais dessas tradições, são as que mais protestam. As freiras resistem mais que os padres e ainda as vemos e as veremos por muito tempo levando com graça e dignidade os seus trajes tão lindos, mas tão inadequados. A missa em português encontra fortes opositores que não sabem sequer porque se opõem. Como resistem sem um motivo apresentável a qualquer alteração repentina às descobertas da ciência, às injeções, ao tratamento pré-natal, ao exame pré-nupcial, à vitória do Corinthians sobre o Santos, e a outras atualizações necessárias. Até a mudança de hora do relógio, uma hora só, que nem altera nada à ordem das coisas, é motivo de ataque. Uma das coisas que mais mereceu desaprovação do povo foi a mudança do sábado de aleluia para o domingo da ressurreição, embora em certa época deva ter havido alteração contrária, isto é, o domingo de ressurreição passou a começar no sábado ao meio-dia. Na capital essas comemorações há muito inexistem. Nos bairros há ainda um ou outro Judas malhado entre muitos gritos e algazarra muita. Mas era no interior que se faziam as, digamos, comemorações, com malhação de Judas, e molecada na rua pedindo aleluia. 

As festas iam pelo dia a fora, aleluia! 

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